segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

sagrada rotina felina


    "Sagrada rotina / a ti me arrocho" é o início de um poema de maria lúcia alvim, presente no livro "batendo pasto". mas se gatos escrevessem seria também o início de um poema escrito por algum felino. 

    iniciou janeiro e eu adotei dois gatos filhotes. irmãos. marquei a instalação de telas nas janelas e sacadas do apartamento, comprei ração, areia e serragem, brinquedos, tesoura e arranhador. e eles chegaram, o baden powell e o guimarães rosa - este de uma cor alaranjada mais forte e com manchas brancas, aquele de um alaranjado mais fraco porém de um mesmo tom em toda a pelagem. é a primeira vez que convivo com gatos, simbolizando afetiva e efetivamente o início de uma nova fase da minha vida. o dia 8 de janeiro representa o meu ano novo. 

    voltando aos versos da maria lúcia alvim, eles seriam escritos por gatos porque é da natureza desses animais o apego a uma rotina da maneira mais arrochada possível. arrochar que, pelo dicionário oxford, significa “atar-se; aperta-se muito; comprimir-se com força”. é basicamente o cotidiano dos gatos, atados, apertados e comprimidos a uma sequência de ações quase mecanicamente programadas: por volta das 5h e perto das 22h, por exemplo, eles estão no auge da agitação; enquanto pelas 10h e durante toda a tarde se entregam ao sono profundo. o sono, inclusive, é o que eu mais invejo nos gatos. isto porque eles dormem quando lhes apetece, independente do que aconteça no entorno: dormem em qualquer posição, em diferentes lugares e em variados horários. fico pensando nesse ideal de vida e alimento a utopia de que na minha velhice ele me será possível. 

    por ora, parece-me que a natureza animal continua vencendo a nossa limitada natureza humana. o que me faz pensar aleatoriamente em augusto dos anjos e a associar um comportamento dos felinos a um verso do poeta: a cama é, para baden e guima, um ringue, onde se duelam todos os dias, atacando-se mutuamente. são mordidas, tapas, empurrões, mas também lambidas e carinhos. um comportamento muito próximo ao verso “a mão que afaga é a mesma que apedreja”, do poema “versos íntimos”, do augusto. até mesmo porque a cama também é o local onde pela manhã eles se deitam para tomarem um banho de sol. 

    além disso, a rotina dos dois manos envolve características peculiares: o guima, por exemplo, quando acorda adora "amassar o pãozinho", como se diz para o movimento de esticar e dobrar as patinhas, abrindo-as e fechando-as. ele amassa o pãozinho no cobertor, no próprio mano e em mim. especialmente no meu pescoço, enquanto esfrega o focinho na minha barba e mia e baba. guima é um gato babão. é o seu ritual pós-soneca. eu por vezes me engasgo com aquelas patas na minha garganta, mas não vou privá-lo desse prazer apenas por eu não conseguir respirar direito; já o baden demonstra menos carência, porém, quando não quer ficar sozinho ele se senta ao meu lado, olha bem nos meus olhos – estando eu dormindo ou acordado – e mia. mas mia o mais alto que ele pode. é um miado-grito, cuja formação da boca inclusive lembra a do famoso quadro do munch. e eu sempre me assusto, mas também dou risada. 

    assim como me divirto com as escolhas aleatórias de cada um por brinquedos e lugares do apê: enquanto o baden adora brincar com um amarrador de cabelos solto pelo chão, o guima se diverte mesmo é com uma bolinha que pinga e faz barulho. ainda, o guima por enquanto escolheu a cama para dormir a maior parte do dia, enquanto o baden determinou que a cadeira do escritório agora é dele. ou seja, diariamente eu e ele estabelecemos uma negociação prolongada sobre o tempo de uso da cadeira, visto que nela ele dorme e nela eu trabalho quando estou em casa. assim, como forma de ele demonstrar toda a insatisfação por esse ato de dividir aquele espaço/objeto, quando me sento nela, baden transita pela mesa do escritório, na qual está meu computador, e faz de tudo para atrapalhar minhas atividades: morde meus dedos e minhas mãos; mexe no mouse; caminha por sobre o teclado; e eventualmente pisa no botão que desliga o computador. guima só me interrompe durante meu expediente em casa para esfregar a fuça na minha barba e pedir carinho por alguns minutos, comportamento igual ao da madrugada, o que me faz pensar que para os gatos talvez não haja distinção entre dia e noite e talvez por isso durmam leves e livres como dormem.

    por fim, a fixação do baden é pela água, de preferência mais suja: a tampa do vaso, no banheiro, não pode ficar levantada, por exemplo; no balde que fica na lavanderia, no qual deixo de molho panos usados, ele se despe de toda e qualquer dignidade ao apoiar-se na borda e enfiar a fuça naquela água, na qual parei de colocar sabão por temor de que esse gato se intoxicasse; ele também é meu companheiro no momento de lavar a louça: senta-se na bancada da pia, ao lado do escorredor, e acompanha fixamente a água escorrer da torneira. assim como faz quando vou para o banho, momento em que ele se senta no tapete do banheiro e olha esperançosamente para o volume de água - chego a pensar que ele seria muito feliz no filme “a forma d'água”, em especial naquela cena do banheiro inundado, enquanto o guima apenas observaria tudo de longe, com um olhar incrédulo, como costuma fazer enquanto o mano se entrega a essa modernidade líquida. 

    agora, em fevereiro, estão os dois com seis meses, castrados e com as doses de vacinação completas, o que os torna claramente mais inteligentes que os antivacinas. mas talvez igualmente teimosos, pois insistem em morder a bromélia e a zamiculca, mesmo com as ervinhas de gato disponíveis para eles nas sacadas do apê. enfim. cada humano com sua limitação, cada gato com sua mania. o verão logo terminará, quiçá a covid também, e iniciaremos uma nova estação de uma sagrada rotina felina. 


ítalo puccini