quarta-feira, 22 de julho de 2015

fios de barba e de memória

            há quem deseje apagar da memória uma lembrança, esta sendo geralmente triste, associada à dor emocional ou física, relacionada a abalos psicológicos, uma vez que lidar com o sofrimento é uma arte para a qual nascemos sem aptidão. entretanto, existem pessoas cuja vontade seria a de eliminar da memórias traços vividos em êxtase de alegria e contentamento, como se fosse possível, então, reviver aquelas energias positivas na mesma – ou talvez até em maior – intensidade, como se fosse a primeira vez.

            “brilho eterno de uma mente sem lembranças” me levou a pensar nisso. e então lancei uma pergunta, no facebook e no twitter: “se você pudesse apagar de sua memória uma lembrança, qual você apagaria?”. uma pergunta capciosa, obviamente, digna de não ser respondida, pois quem é que vai abrir-se nas redes sociais para responder a algo íntimo? mas justo por esse motivo a lancei, a pergunta, envolta em uma tênue linha de esperança de me deparar com algo sincero e corajoso.
            recebi, pois, algumas poucas respostas, a maioria apontando o não-apagar das memórias, sejam boas ou ruins, sob o argumento de, assim, não excluir da vida as experiências vividas, sendo estas constituintes da formação do indivíduo enquanto sujeito. respostas, portanto, fluidas, contornando a pergunta, porém não a respondendo, afinal, conforme argumentado acima, ao respondê-la, escancara-se uma individualidade por si só subjetiva e, nesses momentos, a timidez assume o lugar da autopromoção.

            ainda, no mesmo dia em que terminei de assistir ao filme no qual jim carrey e kate winslet lindamente protagonizam o amor e seu entorno – eu costumo dormir ao assistir a filmes, então, faço isso em etapas – eu finalizei a leitura do “barba ensopada de sangue”, do daniel galera, cujo resultado foi um despertar desta croniqueta, partindo do pressuposto de que a tentativa de apagar da memória a existência da pessoa amada – o ponto central da película – apresenta-se como oposta à busca protagonizada pelo personagem barbudo do romance livresco, focado no objetivo de acrescentar vivências à sua memória: no caso, descobrir mais sobre o avô, a ele desconhecido a não ser pelas palavras proferidas pelo próprio pai, um dia antes de suicidar-se.
            é esse o mote da narrativa tensa desenvolvida pelo escritor gaúcho, na qual me senti mergulhado, ora identificando-me com a reclusão do personagem principal, ora sendo tomado pela curiosidade oriunda do suspense em torno justamente desse desejo do personagem em encontrar o avô e, por consequência, acrescentar vivências, emoções e informações à sua memória. de fato, o professor de natação – o protagonista do romance – quer experimentar algo como sendo a primeira vez. nem mesmo a sua face ser semelhante à do avô o satisfaz, ele pressente a necessidade – ainda que somente intuitiva, sem certeza concreta de algo – de ver o pai de seu pai para então compreender-se. e, independente dos acontecimentos futuros – não vou lançar spoilers – o personagem não deseja apagar da memória suas vivências, e nesse contexto se insere sua segurança em não exercer o perdão, por exemplo.  
            essa contradição, a meu ver presente nas duas histórias – o desejo em apagar algo da memória e o instinto em viver descobertas familiares – apontou-me algum caminho para pensar o ato de reler um livro e de assistir novamente a um filme, peça teatral ou espetáculo musical, destacando a quantidade de vezes nas quais nossa intenção é a de voltar a uma história já conhecida, seja para lembrar de detalhes narrados ou até mesmo com o objetivo de reviver aqueles sentimentos vividos enquanto nos deparávamos (pela primeira vez) com tal referência cultural. como se fosse possível vivenciar exatamente tais sentires.
digo isso porque tenho comigo a crença de que novamente deparar-se com uma obra de arte se configura como uma nova primeira vez, afinal, constituímo-nos diariamente enquanto sujeitos, ou seja, somos formados por nosso entorno, concomitantemente modelando-o – ideia filosófica do materialismo dialético concebido por nosso amigo marx – e, assim, a cada nova interpretação construída junto a algum elemento artístico, é um novo eu a ler ou assistir àquele elemento. portanto, não existe em mim o desejo de, por exemplo, apagar da memória romances já lidos ou assistidos, porque o ato de reler ou rever é, por si só, inovador. 
a primeira vez é sempre.
       finalizando momentaneamente esta conversa: recordar vem do latim “re-cordis”, ou seja, tornar a passar pelo coração – frase presente no “livro dos abraços”, do eduardo galeano – o que ratifica o argumento central desta croniqueta. sendo assim, logo, logo eu voltarei ao brilho eterno e ao barba ensopada, do mesmo modo como há pouco tempo entrei novamente na trama de “os meninos da rua paulo” e de “apenas uma vez”, ressignificando-os, pela primeira vez.

ítalo puccini 

sexta-feira, 20 de março de 2015

cãimbra

uma crônica em forma de poema eu escrevi pros meus amigos do
grupo “udesc ou itapema?” que eu criei essa semana no whatsap
depois que eu comprei um iphone rosa
grupo composto por três pessoas um grupo aliás fonte de inspiração
por exemplo para esta espécie de crônica em forma de poema
que eu disse a eles que escreveria depois de lhes fazer a seguinte pergunta
vcs já sentiram cãimbra na uretra
assim mesmo com til e m e palavra abreviada
porque eu me recuso a escrever formal ou corretamente em chats
na verdade eu me liberto nesses espaços de interação virtual
eu que sempre fui fechado à ideia de modernidade tecnológica
agora percebo o quanto minha produção escrita advém de tais veículos
mas também muito disso se deve à intimidade que tenho
com algumas pessoas com as quais dialogo por ali
inclusive acho que vou falar disso na análise
é uma contradição interessante
mistura repulsa com criação poética
eu tou há meses querendo escrever um poema e nada consigo
agora com cinco dias de whatsap este poema mesmo que quase narrativo
assim me brota
uma aberração poética na verdade fonte de críticas por parte dos críticos literários
online
é um pessoal que deve sentir cãimbra na uretra ao mijar
para o qual eu não dou a mínima afinal se eu fosse escrever pensando em quem vai ler
eu jamais escreveria algo eu iria sei lá lecionar literatura
então que a minha escrita não se preocupa com o leitor
ao contrário de brás cubas que se dirigia aos seus de maneira agressiva
eu faço pouco caso eu sou displicente
eu escrevo poemas enquanto assisto a jogos de futebol
eu escrevo poemas com versos clichês
enquanto vejo o meu ídolo messi fazer poesia com a bola nos pés
mas esta metalinguagem da qual me utilizo é apenas recurso estilístico para desconversar
para tergiversar
para irritar
para não pensar na cãimbra que sinto na uretra
vcs também a sentem
ponto de interrogação

ítalo puccini

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

um macuco

“é um tinamiforme da família tinamidae. nome de origem tupi-guarani: mogoico-erê. é o maior representante dos tinamídeos na mata atlântica. é espécie cinegética (caçada). seu nome, em latim, é solitarius, ou seja, solitário. atinge até 52 cm e entre 1,5 a 2,0 kg de peso médio. habita a mata atlântica primária, sempre próximo a riachos. sua vocalização principal consiste em um único pio, meio agudo e bem espaçado, sendo o pio do macho mais curto que o da fêmea. as fêmeas são dominantes e territoriais”.
isto segundo a “wikiaves”.
porque um macuco também pode ser um título em um torneio de sinuca familiar. assim: nós nos reuníamos semanalmente para jogarmos sinuca – eu, meu pai, meu irmão fran e o fox (que minha mãe diz ser o filho ruivo que ela nunca teve – minha barba não preenche esta lacuna na vida dela). geralmente aos finais de semana, passávamos cerca de duas a três horas em torno de uma mesa de bilhar, daquelas de inserir a ficha e ouvir o estalo da bola ao ser encaçapada, lá no extinto bar do paludo, em jaraguá do sul, revezando as duplas e, consequentemente, os confrontos. da seguinte forma: todos jogavam com todos e contra todos. eu e o pai versus o fox e o fran. eu e o fox versus o pai e o fran. eu e o fran versus o pai e o fox. assim por cinco vezes, mais ou menos. a cada vitória de uma dupla, marcávamos um ponto para os vencedores. logo, ao término de toda a bagunça giratória, havia um campeão e um lanterna.
pois bem, um dia o pai levou uma lanterna para o bar. e o fox se revoltou com aquilo. uma lanterna pequena, daquelas de 1,99, um singelo símbolo da brincadeira. dessa maneira, o último colocado naquele dia levava a lanterna pra casa e ficava com ela durante toda a semana, até o próximo sábado ou domingo, e, caso o mesmo jogador terminasse três semanas seguidas em último, ficava em definitivo com o objeto simbólico e tinha a obrigatoriedade de trazer uma nova lanterna para o próximo jogo.
as novas lanternas compradas eram mais modernas ao longo dos meses. foi bonito de ver.
e o campeão de cada jogatina? aquele que mais vencesse no rodízio de duplas sagrava-se campeão – quando dois alcançavam o mesmo número de vitórias, jogava-se uma partida individual, uma só, para definir o vencedor da semana. e daí, não é mesmo? bom, e daí que um dia o fox venceu pela quinta vez a brincadeira e disse: agora eu tenho um macuco. e a inveja disseminou-se pelo grupo. porque o ruivo simpático, a cada final de semana, repetia: eu tenho um macuco, seguido por uma risada sarcástica: ha ha. e seria difícil alcançar o tal macuco, afinal, vencer cinco campeonatos assim disputados não era algo que se alcançasse em um mês. eu, por exemplo, ao longo de pouco mais de um ano de diversão, nunca consegui. mas o meu irmão já, ele conquistou a palavra-símbolo-da-destreza-sinucal, e meu pai até hoje não entendeu o tal do macuco, logo, não faz questão dele.
    justamente por isso, por esta perda que carrego comigo, propus retomarmos a brincadeira, nem que eu leve uma década para alcançá-lo, o macuco, este vocábulo cujo significado, para nós, não apresenta relação com a significação formal da palavra – e por isso eu iniciei esta croniqueta com aquela definição. um macuco, para nós, é muito mais do que um troféu, do que um valor em dinheiro, do que uma foto de campeão ou um pássaro. um macuco é uma frase: eu tenho um macuco. uma frase que especifica o lugar ocupado por cada um de nós quatro ao redor daquela mesa de sinuca: o fox foi quem primeiro conquistou um macuco. o fran em seguida. eu e o pai, portanto, somos os reservas. mesmo que eu nunca tenha levado uma lanterna pra casa, mesmo que o fran e o fox tenham acumulado lanternas em casa. eles têm um macuco. ponto. e eu tenho uma inveja.

ítalo puccini 

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

a elegância de clara

            


           clara é o nome da nossa vira-lata, que há vinte dias está conosco, presente recebido da mãe da amanda, da própria amanda e do marco vasques – isto porque sobram cães e gatos na casa da dona maria, e, num domingo qualquer, almoçando por lá uma deliciosa carne preparada pelo chef literário, batemos o olho nessa princesa de apenas quatro meses, de pelagem preta, com as patas, o peito e os traços da cabeça em tom amarronzado e uma barriguinha saliente, rosada, um charme a mais nesse corpinho miúdo de patas grandes, que dia a dia vem espichando, parecendo uma mistura de rottweiler com basset, sendo na verdade uma vira-lata puríssima, de pai e mãe vira-latas, ambos de tamanho médio.
            uma das orelhas dela insiste em ficar dobrada para trás.
inicialmente, demos a ela um nome composto: clara nunes. porém, a referência é muito forte, cuja história de vida contém marcas que, a nosso ver, não caberiam a esse tisco de cão. assim, abreviamos. chama-se, agora, clara. nos momentos de puro-amor ela é clarinha, cuti-cuti, ai mo deuzo, amor da minha vida; entretanto, quando apronta, o tom de voz aumenta, e a chamada é: clara, não!alternância esta que ocorre com bastante frequência ao longo do dia, por exemplo: quando ela desembesta a correr pra lá e pra cá, pulando, latindo, devido às provocações que fazemos, ou quando ela dorme, tão linda, aninhada aos nossos pés, ela é a clarinha; diferentemente dos momentos em que cava buracos no gramado, tenta morder chinelos, tapetes ou almofadas ou faz manha para dormir, deixando de ser a 'inha' e tornando-se uma simples cachorra que merece ficar de castigo.
porque o amor e o ódio se imanam nas fogueiras das paixões, já cantava a elis.
e agora durante as férias um pouco da rotina – sobre dormir e acordar – tem sido assim: clara dorme no nosso quarto, amarrada a guia à coleira e ao cabideiro, deitada sobre um tapete, aninhada a um ursinho igualzinho a ela, de cor preta com manchas em marrom. clara dorme presa à guia devido a uma simples razão: não ficar durante a madrugada andando pelo apê, fazendo tec-tec-tec-tec com as compridas unhas, barulho este realçado pelo piso amadeirado cá de casa. e ela dorme que é uma beleza, até umas 6h ou 7h da manhã, quando uns baixinhos sons de choro podem ser ouvidos: é o momento de levantar, tirá-la da guia e ir com ela para a parte externa, o gramado. enquanto ela come a ração e bebe a água e depois faz suas necessidades, eu preparo umas torradas com geleia e me sento também lá fora, a ler e a comer, lutando bravamente contra os mosquitos ainda presentes ao raiar do dia. minutos depois, é hora de voltarmos a dormir. ela entra sozinha em casa e já se dirige ao quarto, para onde também vou. assim temos mais umas horas de sono, até ela começar a algazarra do dia.
bola de meia, bola de gude, o solitário não quer solidão.
e a clarinha muito menos. onde nós estamos, lá está ela – agora que escrevo, por exemplo, está deitada sobre meu pé, dormindo profundamente; enquanto preparamos o café, o almoço ou a janta: deitada no tapete ao pé da pia; enquanto assistimos às séries e aos filmes na televisão da sala: deitada nos nossos pés, no chão, no pufe ou no sofá, entre nós; quando nos levantamos para ir a outro cômodo: tec-tec-tec-tec, lá vem ela atrás. paramos de andar, ela para e senta. voltamos aonde estávamos, ela volta também. vou lá fora jogar o lixo, ela chora dentro de casa. houve uma manhã, inclusive, em que eu, caindo de sono, deixei-a na parte externa do apê, fechei a porta e voltei a dormir. levantei-me perto das dez, fui procurá-la e cadê? aí vem o desespero: tum-tum-tum! corri pelo prédio, a procurá-la. em poucos minutos a encontramos, quando a vizinha do apartamento ao lado abriu a porta e a trouxe. disse que a encontrou presa na grade que divide nossos jardins, tentando passar para o lado de lá. ou seja, quando se viu sozinha, bateu o desespero do abandono, fugiu para a família ao lado – não sem antes muito chorar e latir.
agora, ela vai lá fora, senta e olha.
e o título desta croniqueta-quase-ensaio é oriundo do livro que tou lendo nessas duas semanas de rotinas-com-a-clara: a elegância do ouriço, de muriel barbery, cuja história envolve duas narradoras: paloma, adolescente de 12 anos que promete suicidar-se no dia do seu próximo aniversário, e renée, zeladora do prédio onde paloma e outras tantas personagens vivem, no centro de paris. o objetivo de vida de ambas é o mesmo: apagar os traços de suas existências. os capítulos se alternam entre essas duas vozes narrativas que tão bem escrevem e conversam com o leitor, propondo uma série de reflexões existenciais, a partir da realidade frívola que as cerca, isto através de ironias e descrições divertidas sobre o comportamento de cada personagem, coincidências que envolvem variadas manifestações artísticas e cenas cotidianas junto às quais o leitor pode muitas vezes se reconhecer. é, a meu ver, um livro que pede uma leitura mais lenta, espaçada, um pouco por dia. senti isso desde que comecei a lê-lo e dessa forma tenho feito, aproveitando-me do despertar matinal de clara para isso, para ler algumas páginas e então parar, voltar a dormir, quem sabe durante o dia ler mais. parece-me que há livros para serem lidos assim, a partir do ato de levantar a cabeça após a leitura, proposto por barthes, o mesmo movimento que faz clara ao ir para a área externa do apartamento: ela anda um pouco, para diante da comida, olha, sente o cheiro, senta e então começa a comer; a seguir, levanta-se, anda outro pouco e senta-se no limiar do piso com o gramado, olha, sente o cheiro, para só depois andar pelo próprio gramado.
eis a elegância de clara.

ítalo puccini.