há
quem deseje apagar da memória uma lembrança, esta sendo geralmente triste,
associada à dor emocional ou física, relacionada a abalos psicológicos, uma vez
que lidar com o sofrimento é uma arte para a qual nascemos sem aptidão.
entretanto, existem pessoas cuja vontade seria a de eliminar da memórias traços
vividos em êxtase de alegria e contentamento, como se fosse possível, então,
reviver aquelas energias positivas, na mesma – ou talvez até em maior –
intensidade, como se fosse a primeira vez.
“brilho
eterno de uma mente sem lembranças” me levou a pensar nisso. e então lancei uma
pergunta, no facebook e no twitter: “se você pudesse apagar de sua memória uma
lembrança, qual você apagaria?”. uma pergunta capciosa, obviamente, digna de
não ser respondida, pois quem é que vai abrir-se nas redes sociais para responder
a algo íntimo? mas justo por esse motivo a lancei, a pergunta, envolta em uma
tênue linha de esperança, de me deparar com algo sincero e corajoso.
recebi,
pois, algumas poucas respostas, a maioria apontando o não-apagar das memórias,
sejam boas ou ruins, sob o argumento de, assim, não excluir da vida as
experiências vividas, sendo estas constituintes da formação do indivíduo
enquanto sujeito. respostas, portanto, fluidas, contornando a pergunta, porém
não a respondendo, afinal, conforme argumentado acima, ao respondê-la,
escancara-se uma individualidade por si só subjetiva e, nesses momentos, a
timidez assume o lugar da autopromoção, característica humana acentuada pelas
redes sociais.
ainda,
no mesmo dia em que terminei de assistir ao filme no qual jim carrey e kate
winslet lindamente protagonizam o amor e seu entorno – eu costumo dormir ao
assistir a filmes, então, faço isso em etapas – eu finalizei a leitura do
“barba ensopada de sangue”, do daniel galera, cujo resultado foi um despertar
desta croniqueta, partindo do pressuposto de que a tentativa de apagar da
memória a existência da pessoa amada – o ponto central da película – se
apresenta como oposta à busca protagonizada pelo personagem barbudo do romance
livresco, focado no objetivo de acrescentar vivências à sua memória; no caso,
descobrir mais sobre o avô, a ele desconhecido a não ser pelas palavras
proferidas pelo próprio pai, um dia antes de suicidar-se.
é
esse o mote da narrativa tensa desenvolvida pelo escritor gaúcho, na qual me
senti mergulhado, ora identificando-me com a reclusão do personagem principal,
ora sendo tomado pela curiosidade oriunda do suspense em torno justamente desse
desejo do personagem em encontrar o avô e, por consequência, acrescentar
vivências, emoções e informações à sua memória. de fato, o professor de natação
– o protagonista do romance – quer experimentar algo como sendo a primeira vez.
nem mesmo a sua face ser semelhante à do avô o satisfaz, ele pressente a
necessidade – ainda que somente intuitiva, sem certeza concreta de algo – de
ver o pai de seu pai para então compreender-se. e, independente dos
acontecimentos futuros – não vou lançar spoilers –, o personagem não deseja
apagar da memória suas vivências, e nesse contexto se insere sua segurança em
não exercer o perdão, por exemplo.
essa
contradição, a meu ver presente nas duas histórias – o desejo em apagar algo da
memória e o instinto em viver descobertas familiares –, apontou-me algum
caminho para pensar o ato de reler um livro e de assistir novamente a um filme,
peça teatral ou espetáculo musical, destacando a quantidade de vezes nas quais nossa
intenção é a de voltar a uma história já conhecida, seja para lembrar de
detalhes narrados, ou até mesmo com o objetivo de reviver aqueles sentimentos
vividos enquanto nos deparávamos (pela primeira vez) com tal referência
cultural. como se fosse possível vivenciar exatamente tais sentires.
digo isso porque tenho
comigo a crença de que novamente deparar-se com uma obra de arte acaba sendo
uma nova primeira vez, afinal, constituímo-nos diariamente enquanto sujeitos,
ou seja, somos formados por nosso entorno, concomitantemente modelando-o – ideia
filosófica do materialismo dialético concebido por nosso amigo marx – e, assim,
a cada nova interpretação construída junto a algum elemento artístico, é um
novo eu a ler ou assistir àquele elemento. portanto, não existe em mim o desejo
de, por exemplo, apagar da memória romances já lidos ou assistidos, porque o
ato de reler ou rever é, por si só, inovador, a primeira vez é sempre.
e, finalizando momentaneamente esta conversa, a rafa bem lembrou: recordar vem do latim “re-cordis”, ou seja, tornar a passar pelo coração – frase presente no “livro dos abraços”, do eduardo galeano – o que ratifica o argumento central desta croniqueta. sendo assim, logo, logo eu voltarei ao brilho eterno e ao barba ensopada, do mesmo modo como há pouco tempo entrei novamente na trama de “os meninos da rua paulo” e de “apenas uma vez”, ressignificando-os, pela primeira vez.
e, finalizando momentaneamente esta conversa, a rafa bem lembrou: recordar vem do latim “re-cordis”, ou seja, tornar a passar pelo coração – frase presente no “livro dos abraços”, do eduardo galeano – o que ratifica o argumento central desta croniqueta. sendo assim, logo, logo eu voltarei ao brilho eterno e ao barba ensopada, do mesmo modo como há pouco tempo entrei novamente na trama de “os meninos da rua paulo” e de “apenas uma vez”, ressignificando-os, pela primeira vez.
ítalo puccini