domingo, 28 de abril de 2019

o que é saudade?


     um dia a josi me disse que o sentimento de saudade, pra ela, representa paz, porque, ao sentir saudade de alguém, ela se sente em sintonia com este alguém, como se um vivesse em estado de plenitude dentro do outro, de modo que esse sentimento – a saudade – pra ela nunca é dor ou sofrimento, mas aconchego e reciprocidade. e, assim, diferenciamos saudade de falta, esta responsável por machucar porque associada à perda e ao distanciamento eterno, como se cortassem um pedaço de nosso corpo, como se arrancassem de nós o sentido da existência. 
      e essa confusão de sentires e conceitos se dissemina socialmente muito em virtude da quantidade de músicas que discorrem sobre a saudade enquanto sinônimo daquilo que é falta e carência – segundo a definição do dicionário, inclusive, “saudade é sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, acontecimento ou lugar”, mas eu prefiro a definição da josi. e talvez a letra de música que melhor exemplifique esse conceito social seja “pedaço de mim”, do chico, na qual ele repetidas vezes se refere à pessoa amada assim “oh, pedaço de mim, oh, metade afastada/arrancada/exilada/amputada/adorada de mim”, definindo saudade como “pior tormento, pior que o esquecimento, dói como um barco, dor latejada, uma fisgada, o pior castigo”. 
     há de se cuidar também com a errônea crença de que saudade é exclusividade da língua portuguesa, pois, derivada do latim, existe em outras línguas românicas, envolvendo outros conceitos semânticos: no espanhol, soledad, e em catalão, soletad, ambas com sentido de nostalgia de casa; e na romena, saudade tem o mesmo conceito semântico de dor – diz-se durere – mais próximo do nosso significado usual. ou seja, na língua portuguesa se romantizou tanto esse sentimento que se popularizou o apego a ele como se exclusivo: somos possessivos até com as palavras. 
     de modo que lá fui eu novamente mexer com as pessoas mais ou menos próximas a mim, indagando-lhes: o que é saudade? e mais uma vez me senti em êxtase diante das respostas e de tudo o que as envolve, porque não é somente na resposta que presto atenção, mas também na escolha das palavras, no tempo em que elas vêm, na reação de cada um diante das minhas provocações, quando inclusive o silêncio, ou seja, a não-resposta, representa muito. e adorei a analogia que me apresentaram, de que saudade é como quando se assiste a um show do artista preferido, e ele não volta para o bis: você espera vivenciar mais daquilo que foi tão maravilhoso, mas, mesmo diante da ausência desse a mais, você se sente preenchido em felicidade e plenitude pelo que recém-viveu.
     ainda, gostei de quem me respondeu com outra pergunta: “o que não é mais saudade?” – fiquei pensando no quanto é horrível querer se livrar de um sentimento do qual não se consegue – e também agradeço a quem demonstrou preocupação comigo: “tá tudo bem, ítalo?”. assim como foram divertidas as três respostas irônicas: “nunca senti pra saber”; “é o que você sente por mim”; e “é meu coração palpitando quando ítalo lembra que eu existo”. eu gosto da ironia enquanto demonstração de carinho.
      carinho às vezes é coincidência: uma pessoa me disse justamente estar escrevendo sobre saudade, e do texto dela eu destaco o dizer de que “saudade é o lado bom da falta”, pois essa ideia se aproxima do conceito proposto pela josi, e também apareceu em outras duas respostas: “saudade é bom, a despeito de toda dor que carrega” e “saudade é uma falta que move, uma ausência que faz companhia”. e dessa maneira eu me despertei para outra definição, igualmente distante da ideia de dor associada a esse sentimento, de que saudade é uma aposta e só existe enquanto virtualidade: no encontro ela já deixa de ser e se transforma em prazer ou decepção. 
      e decepção é a acepção mais comum sobre saudade, sempre associada à falta, em especial na literatura, no cinema e na música. responderam-me ser a saudade: “formigamento no peito, um aperto que sufoca e queima um pouco a garganta”; “é um negócio completamente desnecessário”; “falta de algo que fez parte, que se confundiu um dia com aquilo que eu era”; “vontade de ter pra vida toda o que já não se pode mais”; “desejar o que se sabe que não existe mais”; “uma falta que a gente cria”; e “é prego, e o coração, martelo”. definição dolorosa e de igual viés poético essa última, reverberada em outras três: saudade “é o revés de um parto”; “é reflexo do meu eu de mim apartado”; e “é uma pétala a menos de flor”. 
      nessa perspectiva metafórica, canta o lenine que “saudade é um bicho grande / muito maior do que eu penso / quanto mais se expande, mais denso / quão mais denso, mais se expande / saudade é um bicho imenso”, em”bicho saudade”, letra na qual ainda se versa ser a saudade “um lindo bicho / que da fome se orienta” – inclusive, uma pessoa a mim respondeu associando saudade à fome, quem sabe significando serem ambas inerentes a nós humanos. 
      e sentem os animais saudade? também perguntei aos queridos e queridas. e a maioria acredita que sim, principalmente quando há vínculo de convivência com humanos e filhotes; há quem tenha certeza da presença desse sentimento nos demais seres – isto porque sentimento envolve alma, e alma os animais têm – mas também houve quem assegurasse que não, porque estudos indicam que por exemplo os cães, quando veem seus donos saírem, sentem como se estes nunca mais fossem voltar, de tal forma que a alegria no reencontro é um renascimento, não uma saudade. porém, duas pessoas consideraram a saudade nos bichos presente justo no momento do reencontro, e não enquanto um sentir a distância. 
      na próxima croniqueta, pois, direcionarei perguntas aos animais, afinal, conforme versa drummond, “o homem não é assim tão importante” – drummond, aliás, morreu doze dias após a morte da filha, diz-se que de saudade. 
      finalizo, portanto, novamente com a promessa de enviar a cada um dos participantes dessa entrevista uma playlist criada por eles mesmos, a partir das músicas que sugeriram a mim, momento no qual solicitei a cada um: envie-me uma ou mais músicas sobre saudade. afinal, conforme diz a pitty, em vinheta no novo disco, “saudade é vontade daquilo que já se sabe que gosta”, constatação à qual eu acrescento esta, de uma das pessoas a quem dirigi a pergunta-tema deste texto: “saudade é o desejo de reviver momentos de prazer e alegria com aqueles que nos fazem bem”.

https://open.spotify.com/playlist/0teWmczLxRt4aJRED199aQ?si=RbqMZMXrSUCcN9B37y_1xg

ítalo puccini

segunda-feira, 22 de abril de 2019

a casa da doença i

eu quero causar nela
a dor entranhada em mim

provocá-la em fúria
despi-la de si
desprezá-la em atenção

é o cheiro dela o meu ódio
represado em amargura
e ânsia

desde quando silenciei
meu câncer
e de repente me tornei
a casa da doença

ítalo puccini

segunda-feira, 15 de abril de 2019

ad infinitum

as perspectivas
são as piores
e ainda assim
todo dia nos levantamos
vamos ao banheiro
comemos
às vezes conversamos
empurramos o dia com ansiedade
e à noite nos deitamos
com a sensação de que amanhã
será pior do que hoje
e ainda assim
nos levantaremos
iremos
ad infinitum

ítalo puccini

domingo, 7 de abril de 2019

tierra debaixo d'água

      hoje uma música morou em mim, levou-me à praia, ao mar, àquilo de que mais sinto falta, àquilo de que me afastei há anos. eu me afastei de mim mesmo há anos, e quando a consciência disso atravessou o esconderijo e se estabeleceu diante de mim eu esmoreci. então, planejei uma maneira de fugir da minha memória: fumei um cigarro, caminhei, fiz compras, pintei, assisti a uma partida de futebol. e ouvi: “o mar promete terra seca ao viajante exausto”.
      porém não há facilidade em se alcançar o mar.
      eu era o viajante exausto, que não visitava mais o mar, logo, sem a promessa da terra seca. eu olhava para mim e para o universo de símbolos e pessoas ao meu entorno como se estivesse ausente, todo dia, vagando pela história da minha própria vida, “sonhando a cada dia em alcançar a praia”. e a mim, ao contrário do que canta a canção, sempre me acontece pensar que nada é para sempre, então eu me deixava mergulhado em frieza e infelicidade. eu desisti e me deixei, sabendo que “o mundo seguirá girando quando já não há mais nada”. 
     eu esperava pela “vida que sempre guarda algo que supera a melhor das fantasias”, mas era preciso que viesse de dentro de mim o inesperado. foi quando toda a dor me existente eu direcionei ao outro, a quem me alimentou dor – a dor que advém do desejo de não sentirmos dor. disparei, pois, “partes de poemas que eu tinha abandonado”, rimas de uma mente fatigada, melodias perdidas, e descobri que a vingança – principalmente retórica e silenciosa – é sentimento libertador. 
     entretanto não suficiente. 
     às vezes, o trauma, vestido de lembrança esporádica, rouba-nos a coragem de viver o presente e exerce sobre nós dúvidas capciosas, originadoras de angústias outrora escondidas. assim, sentindo-me manipulado pelo passado, embaralho os quereres e desvirtuo a realidade, visualizando por exemplo maldade em ações nas quais ela não existe. e a desconfiança diante daquilo que se vive é sentimento corrosivo e sufocante, é pior que amígdala inchada e unha encravada ao mesmo tempo.
      escrevo, pois, para alcançar a praia, entrar no mar e debaixo d’água gritar até renascer, feito fênix, formando-me novamente um feto: sereno, confortável, amável, completo, em especial sem contato com o ar. porque o ar me faz provar um gosto de final, ele peca em excesso de seriedade e aqui fora sufoca e dificulta a mim inclusive o engolir a saliva – lugar onde o trauma faz morada também e alimenta a insegurança. e debaixo d’água tudo é mais bonito mais azul mais colorido: só nos falta respirar. 
      mas temos de respirar.
      e a escrita a mim é como um aparelho médico que auxilia esse processo automático – e portanto inconsciente, no entanto de tanta exigência – denominado respirar, é ela quem me conduz à tierra, ao mar, ao debaixo d’água, a um lugar por agora desconhecido, que me lembra de freud: não é nossa a casa onde moramos. e eu ainda não me tornei morada de mim mesmo, por enquanto, “porque faz tempo que eu já me fui, pois sempre estou partindo” e reconheço o erro em ansiar esse desejo, pois o vazio não apenas está em mim, ele é elemento constituinte do ser. 
      logo, é importante aprender o exercício da resiliência, e para isso nesse momento eu vivo com o objetivo de não saber, ou seja, de desconhecer o que acontece ao meu entorno, uma vez que o ato de saber me causa temor, associado ao trauma de me sentir manipulado, usado e traído. assim, quando eu não vejo, não ouço e não sei, eu me defendo, e essa defesa não é do outro, mas de mim mesmo, do meu passado, de marcas ainda indeléveis, amenizadas quando entro no mar e escrevo. 

ítalo puccini