sexta-feira, 18 de setembro de 2009

sobre contar histórias e galinhas


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“O segredo do poder da história é a compreensão essencial de que o importante não é o que acontece na história. O que vale é o que acontece dentro de nós, que a ouvimos. Na verdade, o personagem não existe a não ser em nossa invenção. Fomos nós que manifestamos todos os personagens e mesmo a paisagem, a partir de nosso interior, como um discípulo materializa a energia de uma divindade dentro de si durante a prática e a oração”. ("Através do terror da história", Laura Simms, no livro "Baús e chaves da narração de histórias", editora do SESC/SC, 2006, p. 64)
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     esse trechinho, que aqui tem pretensão de epígrafe, me remeteu a duas histórias recentes que li e reli. duas histórias sobre galinhas. duas histórias que convidam o leitor a, não só ouvi-las, mas também a recriá-las.
     eu já tinha escrito aqui sobre o livro “As frangas”, do caio fernando abreu. na verdade, havia copiado aqui um trechinho do livro. e agora copio outro, bem pequenininho, que diz assim: “Acho que a melhor história sobre galinhas que eu conheço chama-se A vida íntima de Laura. Laura era uma galinha, claro. Lendo esse livro você vai descobrir que as galinhas também têm uma vida íntima. Quem contou a história de Laura foi uma grande escritora, a Clarice Lispector. Ela entendia muito de galinhas. De gente também”.
      aí, eis que me deparei com “A vida íntima de Laura”. não tive recusar a leitura. a vida da galinha Laura é contada tão lindamente pela clarice! é como se ela, a autora, conversasse com o leitor.
      ela começa explicando o que é vida íntima, e pede ao leitor para que faça o favor de gostar de Laura. aí, clarice conta algumas coisas sobre Laura, como por exemplo: é casada com o galo luís, tem o pescoço mais feio do mundo, é burrinha, tem pensamentozinhos e sentimentozinhos, não gosta de pessoa alguma, “na maioria das vezes tem o mesmo sentimento que deve ter uma caixa de sapatos”, e é a galinha que mais bota ovos. ah, ela ainda se torna mãe na história.
     e a história de laura termina assim: “Acabou-se aqui a história de Laura e de suas aventuras. Afinal de contas, Laura tem uma vidinha muito gostosa. Se você conhece alguma história de galinha, quero saber. Ou invente uma bem boazinha e me conte. Laura é bem vivinha”.
     e foi daí que o caio fernando abreu resolveu inventar a sua história sobre galinhas: “Foi por isso que resolvi escrever esta história. Eu gostava muito da Clarice e queria agradar um pouco a ela”. e na história do caio, ao invés de uma só galinha, ele fala sobre oito franguinhas, que é como ele chamas as galinhas. as franguinhas são a ulla, a gabi, as três irmãs (maria rosa, maria rita, e maria ruth), a otília, a juçara, e a blondie. são aquelas franguinhas de se colocar em geladeiras, de porcelana, sabe? todas franguinhas que o caio ganhou de pessoas próximas. e ele conta essa história da mesma forma que a clarice conta a da laura, conversando com o leitor, como se tivesse contando assim, na frente de quem tá lendo e ouvindo. ó um trechinho pra mostrar: “(...) eu não inventei quase nada da Ulla, da Gabi, da Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, da Otília, da Juçara, da Blondie. Elas existem mesmo, são bem como eu disse. Estão em cima da geladeira aqui de casa pra quem quiser ver. Vem tomar um guaraná comigo que eu te mostro”.
     e o caio também encerra a história convidando o leitor-ouvinte a contar uma história, seja de franguinhas, ou não: “Se você quiser, invente uma história e mande para mim. Se for história de franga, melhor ainda. Prometo ler pra elas ouvirem. (...) A coisa que uma pessoa mais precisa na vida é gostar das outras pessoas e ser gostada, também. Aí, pra ser gostado, a gente escreve histórias. Você gostou dessa? Daí está tudo certo, porque então você gostou de mim e eu gostei de você também”.
      tá feito o convite. da clarice, do caio, e meu. mas eu ainda não contei minha história, não. preciso pensar numa.

ítalo puccini

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

mais de marcelino freire






















     no momento em que fui guardar “rasif, mar que arrebenta”, do marcelino freire, na estante da biblio do sesc, encontrei outros dois livros dele, também de contos. Foi um movimento só, colocar lá “rasif”, e tirar de lá “angu de sangue” e “baléralé”.
     outros dois livros com contos fortes, escritos com precisão, com coragem, com sensibilidade cruel. "angu de sangue" apresenta caroços sociais dos mais reais (perdoem-me a frase cacófona), com uma linguagem que explora os limites do gênero. Ora são diálogos indiretos e ferventes, ora é uma conversa truncada, repleta de vazios, de incompletude; como a vida.
     escreveu assim o marcelo mirisola, na orelha do livro: “Taí. O ‘estar fudido’ é o único destino honesto que um autor pode desejar aos seus personagens e leitores”. e é preciso aceitar essa oferenda. como é preciso sentir o que vem por aí ao se deparar com a epígrafe do livro. cortantes palavras do ariano suassuna: “Eu precisaria de alguém / que me ouvisse. Mas que / me ouvisse sentindo cada / palavra como um tiro ou / uma facada. Cada palavra / e seu significado / sangrento”. angu de sangue é bom para ouvi-las.
     já “baléralé” é um livro em que nos contos são exploradas questões como a individualidade das personagens: confusões mentais, estados emocionais, opções sexuais (êta frase horrível! de novo!).
      se em “angu de sangue” é perceptível uma denúncia social através de personagens escancarados ao leitor, em “baléralé” os contos exploram muito mais as identidades sexuais das personagens. há cenas fortes de sexo, intimidadoras, que podem assustar algum leitor mais desavisado. e a força da escrita do marcelino freire fica ainda mais evidente neste livro. não há um desgaste no trato com as palavras. os contos são em sua maioria curtos, precisos, sem mais nem menos. chegam e socam o leitor. simples e cortantes.

ítalo puccini

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

cores e passarinhos

     na quarta passada, no prolij, a sueli cagneti leu o livro “para criar passarinhos”, do bartolomeu campos de queirós. é edição nova do livro, feita pela global, agora em 2009, com ilustrações do guto lacaz. coisa mais linda do mundo o livro! de um cuidado extremo, belíssimo!
     é um livro de cores e passarinhos. cores vivas, que causam no leitor uma sensação boa, gostosa, alegre. e o texto do bartolomeu é também cheio de vida. há coisas assim lá, ó: “Para bem criar passarinhos é necessário ter o corpo capaz de escutar o silêncio das pedras, o som do vento nas folhas, o ruído de soluços preso em garganta”.
     as páginas duplas do livro são compostas, no lado esquerdo, pelo texto, e no lado direito, por figuras geométricas. pequenininhas, em grande quantidade. mas em cada conjunto de figuras geométricas há uma só com um detalhezinho de diferença para as demais. tive que tirar foto disso pra deixar mais claro, tamanha beleza! cada página dupla é de uma cor.
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     e os textos, ao lado esquerdo, começam sempre assim “Para bem criar passarinho”, e seguem com um dizer do que é preciso ter para criá-los, e do como fazer isso. ó um exemplo: “Para bem criar passarinho é essencial possuir um arco-íris, ilusão de água e sol, rabiscando no céu para passarinho pousar depois da chuva. E isso se faz possível colhendo nas nuvens as sete cores, ao entardecer”.
     o livro é de uma delicadeza só. apresenta ao leitor o contato com o nada, com aquilo que não tem um porquê de ser, com algo sem utilidade. lembrou-me muito os livros do maneca, o manoel de barros. quer ver só (pra quem já leu bastante o manoel, há de perceber o mesmo, creio): “Para bem criar passarinho há que se sonhar borboleta, anjo ou estrela cadente. É importante ter imensas intimidades com o nada, admirar o vazio e um especial encantamento pelo azul que existe muito depois das nuvens, infinito adentro”.
     para ler o bartolomeu não é preciso saber criar passarinho. é possível aprender, sim, a fazer isso, mas não é imprescindível que se saiba. é necesssário, sim, sentir a leveza do voo das palavras, buscá-las pelos arredores de cada esconderijo, explorar o que elas contém de mais singelo e secreto.

ítalo puccini