sábado, 27 de dezembro de 2008

A palavra, quando vibra


O corpo conjuga o verbo palavra
(Viviane Mosé, Toda palavra, p. 30).
     Encarei outro livro de Viviane Mosé. Toda palavra. Mais um soco. Na boca. Na boca por onde sai a palavra. De onde ela sai esmagada, estrangulada. Não degustada, mas remoída: “Palavra nasce no corpo. / (...) Palavra precisa de adubo de passarinho”. Conforme o dito na orelha do livro, por Chacal, "Viviane tem um caso com as palavras, na medida do impossível, um caso muito bem resolvido".
     E, ao lê-la, quem acaba estreitando um caso mais profundo com as palavras, é o leitor. Se bem ou mal resolvido esse caso, depende de cada leitor. No meu caso, na medida do possível, mal resolvido. Ou melhor, nunca resolvido.
     Pensar a palavra nunca deverá ser solução para algo. Estrangular a palavra é saída. É fuga. Fazê-la vibrar dentro de nós é o que nos resta. Sentir a vida através dela. Para daí sentir nossa própria vida. Não há mais o que se fazer.
     E é isso que Viviane desanda a fazer em Toda palavra. Com a epígrafe de Arthur Bispo do Rosário, “Eu preciso dessas palavras. Escrita”, tem início o livro. A partir daí, há todo um desenrolar de palavras em linhas curvas. Em linhas com desníveis. Em linhas entrecortadas por facas: “O adubo de palavras mortas prepara palavras novas / (...) Uma palavra limpa é uma palavra possível”. É preciso lavar a palavra suja. Sem esquecer de que “Palavra não serve pra escrever cartas de amor. / Nem pra falar ao telefone. / Palavra não serve pra chorar. / Palavra só serve pra fazer poemas”.
     Viviane diz procurar “uma palavra que me salve”. Eu também. Achá-la? Prefiro que não. Para em nenhum momento deixar de continuar procurando-a. Porque procurar por uma palavra que salve é alimento diário. É fuga e é sustentação. É contradição. É vida. Para isso, versa Viviane, “Toda palavra deve ser anunciada e ouvida”.
     “Quem escreve escava / O que o silêncio palavra”. O silêncio palavra, sim. Palavra é verbo também: “Os verbos são duros por isso o abraço ao samba”. Palavrar é unir o distante: “Amor são palavras cruzadas”. É aproximar o que não se bica. É recriar sentidos. É vida, outra vez: “De todas as palavras que trago gravadas na pele / Amor é a que me assalta de madrugada. / O amor tem fome, muita fome. / Meu corpo são bocas abertas. / A madrugada me atravessa”.
     Porém, ressalta Viviane, “(...) a palavra não sabe o que diz / (...) A verdade é que a palavra, ela mesma, em si própria, não diz nada. / Quem diz é o acordo estabelecido entre quem fala / e quem ouve”. A palavra é roupa que vestimos. E com quais palavras nos despimos, pergunta a autora?
     Eu, assim como Viviane, “Escorro entre palavras, como quem navega um barco / sem remo. Um fluxo de líquidos. Um côncavo silêncio”. Não me basta. Nunca me bastará. Mas não vivo sem. Sentar na calçada e virar a vida do avesso: “A vida ao avesso não tem fundo nem fim”.

Ítalo Puccini

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

esvaziar a palavra, desatá-la


     Não havia lido nada de Viviane Mosé até aportar por uns dias no apê da Regininha . Tenho dela Pensamento chão e Toda palavra, mas, por acúmulo de outras leituras, ainda não os pude folhear. E, fuçando os livros da Rê, resolvi pegar Desato para ler antes de dormir. Resolvi encarar a escrita de Viviane, há tanto tempo adiada. Livro fininho, escrito em versos. Não foi surpresa contentar-me tanto com o que li.
     Como o livro não é meu, fiz um esforço danado para não sublinhá-lo, para não interagir com ele dessa forma. Consegui. Mas foi difícil.
     Deparei-me, nos versos de Desato, com uma escrita muito próxima a um fluxo de consciência em torno de barcos e rios, do corpo, de palavras e de coisas; de vida. Ficam nas linhas abaixo um pouco de versos que não servem para nada. É a insignificância deles que me atrai.
     Coisas: "Coisas que eu sei e que não. Eu sei muitas coisas/ (...) Eu tenho muitas coisas, quero dizer, tenho muitas camadas". Eu também. De livros e de nomes, como há no texto. De corpos também. "Queria escrever pessoas inteiras. Mas não hão". Sim. Porque "Pessoas são embarcações sujeitas a afundamentos".
     Palavras: "As palavras ainda não ditas são as únicas coisas / Que têm mais consistência do que uma xícara de café quente / (...) palavras derramam das mãos". Neste momento me escorrem. "A palavra quando escrita ela se firma. / Quando dita ela sem som. / Quando pensada ela sem corpo". "As palavras em gestação escolhem as bocas / e mãos por onde dizer. // Ando à procura das minhas palavras". Ando mesmo. Perdido. Sempre. Por isso continuo. "Acho que a palavra nasce de mim agora como água / Brotando pelas unhas. Há um rio nas letras. Na junção delas. / Na música que fazem. Há um rio". "Palavras insistem como vespas em meus ouvidos. / E eu sou toda ouvidos. Daquilo que não tem corpo. / Nem precisa ter. // Palavras são pedaços de tempo. / Falar é soltar instantes pela boca. // Escrevo. As letras caminham sobre suas próprias perdas. / A palavra cala consigo mesma. A palavra consente. / A mim a palavra consente". A mim não sei.
     Vida: "Viver é um exercício de contenção. // A vida é uma pausa do jorro. Um instante de duração". "Vida é corrente sanguínea pulsando no corpo como um rio. / E pele envolvendo tudo em contornos". "Viver não é só ser comido pelo tempo. Viver é também comer / Com os olhos, com a boca, com o corpo todo, com as mãos. / Eu como a vida e ela me come". Eu sinto prazer nisso.
Barcos e pessoas: "Barcos podem flutuar sobre as águas. // Pessoas são barcos que se confundem com as águas / Quando choram". São.
     Não servir: "Eu não sei pra que servem aquários, guarda-chuvas, aviões, / Mas eu gosto. / (...) Eu gosto de não saber pra que servem tantas coisas / Como escorpiões e baratas / (...) Mesmo sem saber eu gosto / Do sem saber eu gosto". Por não saber eu vivo.
     Poema: "Poema é o estado em que as palavras falam sozinhas. / (...) O poema é a música do pensamento / E as asas". E o corpo, eu digo. "Vou pegar poemas distraídos, pensei. / Poemas em banhos de sol e mar. / Poemas descansando ou nadando. / Poemas dormindo. / Quero pegar poemas sambando". "Estou começando a estar aprisionada de poemas / E poemas gostam de vibrações. Não de emoções". Porque a vida vibra. "Depois de escrever poemas eu melhoro pras coisas. / Mas não sei mais o que é poema e o que não".
     Mar: "Queria me mudar para bem perto do mar. Pensei. / Mas o mar é aqui. Queria me mudar para bem perto daqui". "Um rio transborda de mim como uma fonte no mar / Me amar agora eu poderia". Belo e traiçoeiro, eis o mar. Eis o humano.
     Escrever: "Se pudesse saber o certo não escreveria. / Escrevo pra descrever o que não cabe em lugar nenhum. // Escrevo palavras em vez de sentidos. Escrevo letras. // As letras têm sua morada própria e ninguém / Consegue saber onde". "Escrevo é uma palavra que se impõe em meus princípios". Persegue-me.
     Dor: "Dor é uma contração da vida. / Uma retração, um encolhimento. / Algumas dores chegam a se constituir como um nó / Que o corpo faz com ele mesmo".
     Para fechar, a necessidade: "Mais uma vez na dor encontrei a palavra. A alegria me cala. / Ela é o descanso das letras. Mas eu não vivo pra letras / Eu vivo pra vida. // (...) Eu preciso morrer pra encontrar palavra eu preciso perder / Eu preciso Palavra".

Ítalo Puccini

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O leitor que move a utilidade literária

     A relação de afeto que a literatura demanda por parte do sujeito-leitor, daquele que se encoraja ao desconforto e a despir-se em uma relação íntima com o texto, maravilhosamente apresentada por Artur de Vargas Giorgi no DC Cultura de 14/06/2008, evocaram neste sujeito-leitor aqui um (re) pensar duas condições, a meu ver, inerentes à literatura: sua (in) utilidade no contexto escolar, e a condição de ser leitor desta literatura.
     Gosto muito de pensar e de sentir que as melhores coisas da vida não servem para nada, e nem precisam disso. Mas também sinto a necessidade de pensar na utilidade de algumas coisas, como, por exemplo a utilidade da escola e a utilidade da literatura enquanto disciplina escolar. Posso até amar que as diversas formas de arte sejam vistas como coisas-sem-serventia neste mundo consumista e utilitarista em que se vive hoje em dia, mas também preciso pensar a arte como sendo útil, pois para mim ela tem uma utilidade maravilhosa, que é a de me permitir sonhar, crer em algo, encontrar algum sentido para o viver. E, se em mim a arte provocou uma mudança no meu modo de ser/pensar/agir, eu preciso crer que o contato com ela poderá também provocar mudanças em outras pessoas, e aí eu me deparo com o útil que posso encontrar nela, e o aceito.
     Nessa contextualização é que vejo como possível indagar a importância e a utilidade da disciplina literatura dentro da escola. Sinto-me instigado a pensar nela como essencial. Não de uma maneira grosseira e prepotente, mas sim como uma convicção, uma segurança de que ela pode contribuir, e muito, no processo de formação dos sujeitos-alunos.
     A literatura é a arte da palavra escrita. É a manifestação do real e do imaginário através da palavra escrita. A literatura envolve, impreterivelmente, o ato de ler, uma prática de leitura. A leitura pode ser apontada como o meio mais eficiente para se alcançar o senso crítico. O ato de ler – independentemente do como e do o que se lê – está diretamente relacionado ao desenvolvimento da consciência do ser humano como cidadão participante de uma sociedade, dentro da qual ele possui direitos e deveres a cumprir, como também ao desenvolvimento do ser humano enquanto sujeito, enquanto um ser histórico, subjetivo, singular.
    Se a literatura é o trabalho desenvolvido com a prática da leitura do texto escrito (não só, mas principalmente), e se a leitura é condição sinequanom para a formação e o desenvolvimento do ser humano como um sujeito-social, a finalidade da literatura é a de contribuir, através de uma prática constante do ato de ler, para essa formação social e subjetiva do sujeito-aluno (a quem ela é primeiramente destinada na escola).
     Diante disso, qualquer indagação do porquê de se trabalhar a literatura na escola perde o sentido. Conforme as palavras apresentadas por Ana Maria Machado em seu Balaio: livros e leituras, As obras literárias nos convidam a um exercício de liberdade de interpretação e de respeito pelas diferenças. Colocam diante de nós o desafio de enveredar por um discurso que oferece diversos planos de leitura, numa linguagem rica em potencialidade inesperadas, cheia de ambigüidades. Como a vida.
     Neste quadro da utilidade da literatura há, então, um sujeito-leitor, proposto pelo filósofo e lingüista Umberto Eco em seus Seis passeios pelo bosque da ficção como um ingrediente fundamental não só do processo de contar uma história, como também da própria história.
     Um leitor perspicaz, sensível ao que existe ao seu redor, que constrói junto ao texto um sentido próprio, este que traz imbricadas em si dimensões de ler, de viver, e de estar no mundo deste sujeito-leitor. Um leitor que trata a leitura como interação com o mundo e consigo mesmo. Um leitor corajoso, que a todo o momento se vê diante de escolhas a fazer, que vive a batalha em busca do sentido apresentada por Marta Morais da Costa em seu Mapa do mundo: crônicas sobre leitura, na qual escritor e leitor, irmanados lutam a mesma luta vã, derrotados pela força da palavra, vingam-se espalhando seus sentidos em muitas e múltiplas interpretações.
     Este sujeito-leitor aqui discutido também pode ser o leitor trazido por Piglia, em O último leitor. O leitor extremo, sempre apaixonado e compulsivo; viciado, que não consegue deixar de ler, insone, sempre desperto, para quem a leitura é uma forma de vida, para quem a literatura dá um nome e uma história, retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser parte integrante de uma narração específica.
     Assim, o leitor dessa literatura útil é o leitor que interage com o texto, que cria e recria sentidos, que relaciona o texto a outros já lidos, a situações já vividas, que compreende as ideologias presentes em cada texto, e o fato de um texto nunca apresentar sentidos completos. É o leitor que Manguel, em Uma história da leitura, defende como aquele que lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo.
     É o último leitor, aquele leitor em busca do sentido experiência perdida, que dá à literatura uma utilidade inimaginável.

Ítalo Puccini

quinta-feira, 22 de maio de 2008

O sabor do saber

     Dois artigos publicados recentemente por "A Notícia" colocam uma importante reflexão sobre a forma como nós, seres humanos, temos vivido em sociedade nesse início de século 21. A influência midiática sobre a vida e o comportamento humano, proposta pela acadêmica Marilene Anacleto ("Big Brother da vida real", 18/4, página 10), e o ritmo de vida apressado que levamos, exposto pelo articulista Apolinário Ternes ("No lugar da pressa", 18/4, página 11), oportunizam um pensar mais atento ao humano que existe em cada um de nós e à forma como somos levados a nos comportar diariamente.
     Tudo é tão rápido e dura tão pouco. Vomitam-se lançamentos de produtos, seja de qual linha, estilo ou utilidade for. Um detalhezinho altera o preço do produto e joga o recém-lançado na vala do ultrapassado. Consome-se muito em tempo recorde. Não se digere nada.Tem-se não para usufruto próprio, mas para apreciação coletiva. A imagem vista aos olhos de outrem é a mais importante de se preservar. O interno perde espaço para o externo. A vida particular escancara as portas para o "grande irmão" sempre presente. Não se pode ficar fora do padrão social: beleza, pertences, saberes.
     Vivemos em uma sociedade anoréxica. Não é só a comida regurgitada visando a um padrão de beleza. Regurgitam-se sentimentos e notícias. Ficamos com um aqui, com um outro ali. Um morre aqui e é anunciado no jornal, o outro é preso com drogas no bolso e amanhã ninguém mais se lembra de nada. Já temos novos "ficantes", novos mortos para não fazer diferença, novos presos para serem soltos.
     O saber é regurgitado também. Não tem sabor este saber do qual fingimos fazer uso. Não há como bem fazer uso dele. Em tão poucos minutos já está defasado. Tudo é simplificado para rápida absorção. Saber podre. Saber que, digerido, torna-se rapidamente escasso.Há necessidade de se sentir o sabor do saber.
     Há necessidade de se degustar cada palavra apreendida, cada significado incorporado, cada sentimento correndo a pele. Caso contrário, a fugacidade do viver continuará ditando seu impiedoso ritmo, comprometendo, com isso, nossa rara sensibilidade e nossa capacidade de apreender.
    Saborear o saber aos poucos, eis o caminho nessa falsa fome de cultura. Um livro pode oferecer isso. Um poema também pode. Uma imagem, mais ainda, uma vez que as cores atraem muito mais do que o preto-e-branco das palavras e do papel. O ato de ler, independentemente do que se lê, é um caminho frutífero em possibilidades para esse enriquecimento gustativo e cultural.
     O ser humano, ao fazer uso constante da leitura, passa, com o tempo de prática, a desenvolver em si virtudes e aptidões conscientes, tudo isso pelo fato de que, ao adotar a leitura como atividade de prática constante em sua vida, ele, ser humano, passa a melhor conhecer-se e a compreender-se, assim como a compreender o mundo e o que realmente quer significar esse ato de ler que ele pratica. Compreensão é fruto de leitura, assim como consciência crítica. Elementos indissociáveis; alimentos do espírito para o humano.
Bom apetite para nós.

Ítalo Puccini
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Artigo publicado no jornal A Notícia de 22-05-08, p. 11

domingo, 10 de fevereiro de 2008

O mundo que transborda de si


A sensibilidade e a força de “Aço e Nada”, de Rubens da Cunha

     No livro que mandou a mim, o poeta e cronista do Anexo Rubens da Cunha agradeceu minhas leituras sempre atentas para seus olhares sobre o mundo. Olhares tão bem registrados pelas palavras. Retratos da consciência, que em seus escritos Rubens demonstra ter, de ser um sujeito imerso numa realidade mundano-social aprisionadora do próprio ser humano, da qual tenta ao máximo extrair algo que o alimente, que se junte aos alimentos diários da leitura e da escrita ou que sirva de alimento para um desses dois “vícios” que apresenta ter. O escritor de “Aço e Nada”, livro lançado pela Design Editora, de Jaraguá do Sul, é um sujeito dividido em diversos modos de ser/pensar/agir, presentes em diferentes crônicas-quase-contos do livro, que se complementam num só.
     Para mim, e creio que para muitos outros leitores, são releituras a se fazer das crônicas presentes no livro. Ora mais densas, ora mais suaves, ora críticas, ora não, ora mais poéticas, ora mais objetivas em determinados assuntos, ora também quase-contos. Transbordando sensibilidade e poesia, as crônicas foram separadas no livro em quatro diferentes partes, com as últimas crônicas de cada parte dando nome à mesma correspondente: “Os Animais Dentro”, “Olho Vigiador”, “O Corpo da Gratidão”, “O Morador das Palavras”, que bem estariam encaixadas se não houvesse divisão, uma vez que a escrita em si do autor apresenta um traço muito bem caracterizado, sendo possível reconhecê-la à distância, encontrá-la, por exemplo, nos poemas-aço que formam sua “Casa de Paragens”: nos cômodos da sua casa-corpo, nos mínimos detalhes da natureza, e nos animais-moradores-de-seu-corpo: na dor corpórea da alma; na fragilidade de ser.
     Um olhar sempre constante nas crônicas do livro (e também nos poemas do “Casa”) dirige-se aos animais. Estão eles dentro do escritor Rubens, ao redor, nos olhares, nos sonhos, na memória: “São imagens recorrentes, já que ainda não descobri elemento mais poético na natureza e mais propício às buscas metafóricas que pratico”. As crônicas de “Os Animais Dentro” trazem um pouco dessa relação, além de apresentar ao leitor outros modos de ser animal, com o ser humano e suas formas de pensar, sentir e agir.
     Nas crônicas de “Olho Vigiador”, Rubens apresenta seus olhares atentos para os habitantes e para a sua, até o momento, casa de paragem, cidade na qual nasceu e em que vive, por onde o Rubens cronista busca o assunto para suas crônicas semanais. O corpo da gratidão é a mãe, é a noite, é um poço de contrários, “é uma inutilidade feita apenas para aguentar o peso do mundo: um poema perdido entre os cadernos; flores nos beirais das casas; fotografias”. É o fluxo inexorável do cotidiano, passando por cima do tempo e do espaço, de amizades antes fortalecidas; é o sentir que animaliza o humano; é a natureza, recoberta de poesia, que, “sem avisar, põe sobre a cidade um lençol branco”.
     Rubens da Cunha é o escritor morador da palavra exílio (ou seria apenas mais um dos personagens marcantes no livro?). Escritor por prazer, por sentir o sangue correr em seus abismos. Escritor pela dor: “O papel me dá seus ouvidos e demais buracos gratuitamente. O papel é uma prostituta apaixonada. Escrevo para gozar e porque tenho bom vocabulário”. Pelo poder de ser escritor, pelas máscaras que colocam sob os escritores. Escritor por maldade, por instinto, por covardia, por alegria, “por estar preso nesse cárcere e porque aprendi a mentir desde cedo”. A escrita de Rubens nos leva a desejar mais mentirosos assim.

Ítalo Puccini
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Texto publicado no caderno Idéias do jornal A Notícia de domingo (10-02) e na Germina Literatura

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Estante



     Mexer em livros, para mim, é mergulhar dentro do que sou e de como me construo, e por lá me perder.
     Quando vou a sebus e/ou livrarias, empilho em minhas duas mãos tudo o que considero interessante levar para casa, seja para uma leitura imediata, seja para uma leitura futura. E por lá fico, estante por estante, livro por livro, sumindo por trás de suas formas, cores e palavras, até o momento em que encerro minha visita. É quando relembro tudo o que peguei, folheio cada livro para melhor conhecê-lo, equilibro o pensamento entre a necessidade, o desejo e a exceção (além dos recursos financeiros que me acompanham no momento), e faço uma dolorida triagem, acabando por levar sempre menos da metade do que gostaria. Nas primeiras vezes esse momento era mais difícil. Agora me resigno a ele, ajudando-me para isso a memória, trazendo à mente os livros que ainda me esperam em casa, saudosos de um contato mais próximo com minhas mãos e com meus olhos.
     Dor foi o que senti ao organizar meus livros em casa, espalhados que estavam pela prateleira que tenho sobre a cabeça aqui onde escrevo e pela cama que sobra em meu quarto, útil justamente para acomodar meus materiais de pesquisa e de leitura. Mas foi uma dor gostosa de sentir, e aqui o paradoxo é proposital por refletir o que foi sentido.
     No dia anterior mexi e remexi em meus cd´s e dvd´s. Todos organizados por aproximação, no que diz respeito aos estilos musicais. E, empolgado pelos momentos ali vividos, encarei uma reorganização dos livros, já ciente de que a entrega emocional seria mais intensa.
     Gosto de olhar para meus livros. Gosto de senti-los pelo tato. Gosto de folheá-los e de relembrar o exato momento em que foram lidos ou comprados, sendo que de alguns ainda não conheço seus interiores, seus poros de vida, os espaços entre palavras – e as próprias palavras – que os fazem ser o que são, para as quais construo os significados que me tornam quem sou.
     Nessa breve atividade de fim de tarde (ainda não tenho tantas estantes e tantos livros espalhados pela casa) voltei aos meus 14 anos, com a leitura que fiz de “O rádio, o futebol e a vida”, de Flávio Araújo, e de “Zico, 50 anos de futebol”, num mês de julho, na praia de Itaguaçu, durante as férias escolares de meio de ano, durante manhãs e tardes chuvosas e frias, enrolado entre cobertas e travesseiros, numa época em que eu respirava futebol.
     Memórias mais recentes também resgatei. Ao passar o pano em “O inventor da solidão”, de Paul Auster, comprado despretensiosamente numa feira do livro de Joinville; ao reler algumas crônicas sensíveis e marcantes de “Por que os homens não voam?”, do sensível e marcante Pablo Morenno; e ao encaixar “Uma história da leitura”, de Alberto Manguel, sempre tão recorrente aos meus textos sobre leitura, num novo lugar na estante, rodeados por novos livros sobre práticas de leitura, e com um espaço ainda disponível aos que no momento leio para o término de minha atual pesquisa, que daqui a pouco rumarão aos seus novos lares em meu quarto.
     Costumo dar aos livros, em meus escritos e falas, tratamento de como se tivessem personalidades e vidas próprias, pois acredito muito em que eles tenham, sim, suas vidas próprias, suas personalidades que os caracterizam como livros (sem contar as especificidades de gênero às quais eles dão vida e das quais recebem vida). Mais vivos ainda eles se tornam quando em contato com os olhos, a boca, os ouvidos, o tato, e todos os sentidos do ser humano, que a eles dá novos significados, que a partir deles forma-se enquanto ser humano e cidadão social, que sem eles e seus registros (ficcionais ou não) não existiria.
     Nessa breve atividade de fim de tarde ainda fiz uma pilha da qual irei me desfazer. Sem choro, sem lamentações. Livros espíritas, romances água-com-açucar, receitas de auto-ajuda. Já tiveram sua importância. Já encerraram seus ciclos por aqui. Agora seguirão adiante, conhecendo novos donos, novas prateleiras, sentindo novos cheiros, oportunizando novos aprendizados. Assim ocorre conosco, pessoas de carne, osso e cérebro. Assim ocorre com os livros, alimentos da mente humana.
    Até a próxima reorganização livresca, as biografias abrirão os espaços (ou a falta dos mesmos) na estante, seguidas pelos de filosofia, anteriores aos de educação/leitura, que abrem caminho para as crônicas e os contos, tendo como seqüência as poesias e os infanto-juvenis, seguidos pelos romances e pelos de literatura brasileira, que encerram a prateleira e levam à porta do armário, no qual dormem tranqüilos os best-sellers e mais alguns romances.

Ítalo Puccini