quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

o samba engana



com o perdão da sonoridade ruim do título, escrevo esta croniqueta para evidenciar a contradição que o samba apresenta: um ziriguidum a disfarçar tristezas. por exemplo, cartola canta “alegria era o que faltava em mim”, e nós já estamos a vibrar o corpo ao som do cavaco, enquanto o cantor depois emenda “já que tu não és sincera / eu vou te abandonar um dia”. e nós sambando. e sorrindo. é o “samba no sangue daquele que sabe sambar”, como canta o seu jorge. e até dos que não sabem, ainda bem. porque não curte samba só quem samba; há quem seja apenas um bamba, a arriscar uma trocada de pernas e uma gingada, quase sempre errando e nem por isso menos contente. escrevo com conhecimento de causa e de causos. 

mas quem é que se atreve a dizer do que é feito o samba? os los hermanos não – e aqui não há nenhum desmerecimento ao conjunto carioca de nome argentino e sim apenas uma observação: eles não são peritos em samba. mas compuseram uma beleza de música, com esta indagação acima. e acrescentaram que se samba por gostar de alguém. e que um bom samba não tem um lugar em específico para aparecer. só não existe na escola, segundo noel rosa cantava: “batuque é um privilégio / ninguém aprende samba no colégio / sambar é chorar de alegria / é sorrir de nostalgia / dentro da melodia”. ou seja, um feitio de oração.

caetano é de cantar que o samba é pai do prazer e filho da dor, sendo a tristeza senhora desde que o samba é samba. pois então eu retomo o título: o samba engana. engana porque, ao apresentar um ritmo envolvente-gostoso, faz o sujeito que é bom da cabeça sentir uma alegria contraditória à letra cantada; faz vibrar de prazer o corpo que saracoteia ao som de trem das onze sem perceber que não se pode mais ficar um minuto com a pessoa amada, pois, perdendo o trem que sairá às onze horas, só amanhã de manhã.

amanhã de manhã, inclusive, cuja letra de tom zé mostra uma outra forma de o samba enganar, não mais pela tristeza, mas sim como crítica implícita - contra a ditadura, no caso dessa música: “na hora ninguém escapa / debaixo da cama / ninguém se esconde / a felicidade vai / desabar sobre os homens / vai”. e será noticiada no jornal da morte, esse samba de miguel gustavo, eternizado na voz de roberto silva, cujos primeiros versos cantam: sangue, sangue, sangue, sangue. em um ritmo de samba sobre um “escândalo amoroso (...) / um bicheiro assassinado em decúbito dorsal / cada página é um grito, (...) / só falta alguém espremer jornal”. 

são sambas críticos, evidenciados também por joão nogueira, um dos mensageiros desse gênero musical, o samba guerreiro, não mais prisioneiro do desespero e da resignação. mas ainda do amor. as tristezas amorosas que se tornam alegre cantar, conforme versado pelos originais do samba. assim como por centenas de outros compositores, de versos com esperanças perdidas, especialmente sobre as mulheres, cantadas em todos os sentidos no samba. ainda mais: são cantadas as dores que elas provocam nos sambistas. essas moças tão diferentes, não é mesmo, chico? fica fácil embalar-se no ritmo dessa canção, sem atentar-se para a dor da moça que, diferente, está passando-o pra trás, por mais que no fundo ainda lhe queira bem.

o samba é aquilo que nos leva a andar com a cabeça já pelas tabelas. porque um samba leva a uma lembrança – ou a uma cerveja – que leva a outra, que leva a uma roda de pernas a bambar, que leva a um samba e então se batem panelas e palmas. e de repente as mãos são erguidas, a voz vai alta, e o coração não dá o alerta de que se está cantando com a teresa cristina “tu te lembras da partida / acenaste um pano branco / mãos ao ar, fala contida / choro preso em acalanto”.

tá legal, eu e o paulinho da viola aceitamos outros argumentos, mas que não se altere um samba tanto assim, como os de letra entusiasmada, sobre viver e não ter a vergonha de ser feliz, e os que são lentos, feitos para curar o abandono ou até mesmo para torná-lo mais grave. são os sambas da benção, lembrando-nos de que, apesar de ser preciso um bocado de tristeza pra fazer um samba com beleza, é melhor ser alegre que ser triste.

e, para não deixarmos o samba morrer, nem se acabar, por mais enganador que ele seja, criei uma playlist com mais de 500 músicas e 30 horas de duração, comprovando essa arte do me engana que eu gosto. afinal, se for para sofrer, melhor sambando. 


https://open.spotify.com/playlist/6aQEUhO7IyeeYcvdh8VfsT?si=a926d7b86d6d4cbd


ítalo puccini


quinta-feira, 8 de julho de 2021

da euforia ao vitimismo: nuances da ausência de um nome


gol da alemanha: o passado é uma roupa

que não deveria mais nos servir, belchior. mas à qual milhões de brasileiros ainda se mantêm apegados. de maneira que, diante daquele contexto de absurdo misturado a nonsense, no jogo entre brasil e alemanha, na semifinal da copa do mundo de 2014, o meu sentimento, a cada gol, foi um misto de espanto e de esperança: não no sentido de vibrar com uma goleada e querer mais gols, mas sim de que quem sabe ali estivesse o divisor de águas para o futebol nacional. neste, pois, muito já se evoluiu – organização e estabilidade dos principais campeonatos, fortalecimento econômico de alguns clubes, nível de jogo inclusive da seleção atual – apesar de ainda pouco, paradoxo aqui proposital de quem visualiza o brasil enquanto utopia: esta, segundo thomas more, filósofo do século xvi, significa o lugar inexistente e portanto feliz; ou seja, feliz porque inexistente; ou seja, é o brasil a tentativa de personificação do ideal de felicidade mundana, uma vez dono por exemplo de uma extensa e inigualável variedade cultural, porém, quanto mais inserido na modernidade, mais retrógrado; ou seja, o muito que se avança nesse país, no futebol ou em qualquer outra esfera, pouco se acrescenta ao todo, pois é essa a terra onde se vive o presente como se estando no passado, onde o discurso esportivo massivamente insiste na sobreposição de vocábulos antiquados, tais quais tradição, história e camisa – o “verdadeiro futebol brasileiro” – em detrimento de variação tática, estudo e conhecimento de mundo; ou seja, vive-se aqui, a cada copa do mundo, um estado de felicidade plena, que na verdade inexiste enquanto realidade, a não ser que se faça do presente o passado, onde tudo já aconteceu e por isso é possível ser feliz. 


gol da alemanha: para viver em estado de poesia 

há que se entranhar nos sertões de viver, chico césar. no que há de mais antigo e interior do ser humano. e sertão, para o riobaldo, no grande sertão de guimarães rosa, “é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. sertão é quando menos se espera”. é o dentro da gente, ainda diz o jagunço. e o futebol manifesta o sertão que há dentro de cada torcedor – a gente empurra para trás quando na derrota, e de repente ele nos rodeia de esperança na próxima vitória – logo, sendo elemento integrante de uma cultura: é paixão e identidade. e o sertão de poesia por esse esporte vai dentro dessa gente torcedora brasileira enquanto euforia, essa identidade nacional do improviso e da alegria nas pernas do jogador canarinho, cantada popularmente – a copa do mundo é nossa / com brasileiro não há quem possa / êta esquadrão de ouro / é bom no samba é bom no couro – e construída no decorrer das copas do mundo: o tricampeonato mundial conquistado numa sequência de quatro copas – 1958/62/70 – impôs estados de êxtase e orgulho coletivos, uma catarse contra aquela que se considera até hoje a primeira tragédia da seleção brasileira de futebol: a derrota para o uruguai na final da copa de 1950, num maracanã com mais de 200 mil pessoas, denominada “maracanazo” – e nomear algo significa justamente conferir identidade. oito anos após o tri, nova frustração: a derrota de sarriá, ao perder por 3x2 para uma itália que vinha de três empates seguidos e um estilo de jogo burocrático. mas havia orgulho pelo futebol nacional apresentado até ali, de toque de bola envolvente, coragem e variação tática desfiladas por craques consagrados. de modo que pouco importou nas copas seguintes a postura mais pragmática e menos envolvente da seleção, pois o estado de euforia se incorporara ao torcedor brasileiro enquanto identidade nacional. porém, não a antropofágica dos modernistas de cem anos atrás, que, para exaltar as características essenciais do país, criaram novas formas de expressão artística e cultural depois de “comerem” o melhor da produção internacional, assim reinserindo o brasil no exterior; a identidade futebolística brasileira apresenta mais traços do romantismo do século xix, construída sob o prisma da idealização de uma nação perfeita e feliz em natureza, povo e, desde meados do século xx, futebol. é o tal sertão de poesia dentro de cada torcedor brasileiro.


gol da alemanha: o brilho cego da paixão

é fé, milton. uma faca amolada, paixão afiada e atacada, típica de um torcedor de futebol. ainda mais o eufórico. e, em respeito a essa identidade nacional de euforia e paixão, eu não torci contra o brasil naquele jogo inominável. eu não gosto de torcer contra algum time – no máximo sou capaz de ser a favor de outro que não seja o meu, mas torcer contra eu aprendi a não fazer, afinal, é um gasto de energia burro, direcionado àquilo com o qual não há identificação. e, naquele dia, há seis anos, também não torci a favor da alemanha. consciente de que o mais provável era a vitória alemã, fiquei neutro. a escalação do brasil para a semifinal, com julio césar, maicon, dante, david luiz, marcelo, luiz gustavo, fernandinho, hulk, bernard, oscar e fred, era no mínimo triste – o insosso jogador oscar seria o cérebro do time – sem dizer, conforme observou tostão, supersticiosa – bernard, do galo, jogando no mineirão – e onipotente, expondo a equipe à abertura de uma cratera no meio-campo, justo contra a seleção que privilegiava o jogo naquele setor e atuava de modo compacto, com kroos, schweinsteiger e khedira regendo as ações. e isso da neutralidade em partidas de futebol é costume desenvolvido por mim a partir do ato de assistir a esse esporte por exemplo enquanto manifestação estética de beleza, ainda um exercício, estabelecida a dificuldade em me dissociar da paixão intrínseca a essa prática. de forma que consigo exercê-la ao assistir a jogos de campeonatos nacionais de outros países e a jogos de seleções, mas, no futebol brasileiro, eu me sinto bastante preso ao flamengo – deve ser a força do hino, “uma vez / sempre” – e assim amargurado com outros times que já me fizeram me sentir derrotado. contudo, essa paixão carregada de dor eu questiono há bastante tempo, inspirado em especial pelo martelo de nietzsche, impulsionando-me a desconstruir valores culturais impostos socialmente e arraigados no nosso inconsciente coletivo, responsáveis também por nos afastarem da construção de uma individualidade própria e de nos causarem sofrimento desnecessário porque não verdadeiro e sim quase institucionalizado. e justo por isto: 1) para desfazer o sofrimento enquanto vínculo entre mim e o futebol, aproveitei a quarentena para reassistir a partidas até então guardadas íntima e erroneamente como traumas, nas quais, diante das derrotas sofridas, o sono e a fome perdi; 2) iniciei há quase uma década um processo de acompanhar partidas de outros locais do mundo, às vezes escolhendo clubes e seleções pelos quais torcer, mas de maneira pontual e mutável: amanhã, não sei, mas por exemplo nessa última década torço por messi e guardiola, porque com aquilo que entregam eu me deleito – inclusive, se um dia guardiola assume a seleção brasileira, de canarinho me visto, entusiasmado. todavia sem paixão, uma vez que o sofrimento enquanto verdade faz mal à saúde.

     

gol da alemanha: a tristeza é senhora

e desde que o samba é samba e o futebol é futebol é assim, caetano. e triste vivemos, talvez em mais dias do que deveríamos, talvez com a sensação similar à de policarpo quaresma, do lima barreto, para quem “a vida é variada e diversa, mais rica de aspectos tristes que de alegres”. até que, um dia, surge-nos uma ideia, uma paixão, uma promoção, uma vitória, e a elas nos agarramos. no entanto, de repente, sentimos em nós vinícius e tom cantando que tristeza não tem fim, pois sim a felicidade o tem. e sofremos novamente. isto porque, em uma perspectiva freudiana e psicanalítica, o sofrimento é a valeta onde escoa tudo o que ficou reprimido, a partir do qual advém o recalque, ou seja, o mecanismo de defesa do inconsciente ao eliminar da consciência momentos vividos em experiência de sofrimento. ouroboros: somos, então, a serpente que devora a própria cauda. e é a partir desse viés que proponho a ressignificação da memória esportiva enquanto um trauma, sendo este, segundo definição básica da psicologia, qualquer ato ou acontecimento que, ao remeter a um movimento vivido, desperte sofrimento psíquico no sujeito e se transforme em um sintoma, ou seja, na ausência da capacidade de sublimação – pode ser, talvez, ouvir a frase “lá vêm eles de nooovo”, repetida por galvão bueno durante a sequência de gols alemães, mas não deveria. nesse sentido, acrescento a definição proposta por contardo calligaris, no livro “cartas a um jovem terapeuta”, segundo o qual “o caráter traumático de um acontecimento não depende de alguma qualidade específica da experiência vivida” – por exemplo, uma partida de futebol ou uma desilusão amorosa – “mas é um efeito de como, mais tarde, essa experiência pode ou não integrar uma história que faça sentido para o sujeito”. e o exemplo citado pelo psicanalista italiano radicado no brasil há décadas aborda os veteranos da guerra do vietnã, que, tal qual demais combatentes em outras guerras, vivenciaram o horror e a iminência da morte, porém, os do vietnã, ao regressarem aos eua, depararam-se com um país indignado perante uma guerra sem sentido para ninguém, configurando-se uma experiência traumática a eles aquela participação. diante disso, proponho dois questionamentos: 1) de que forma considerar trauma uma derrota como aquela do brasil para a alemanha se um ano depois estava o torcedor brasileiro ou torcendo ou no mínimo assistindo despretensiosamente à seleção nacional na copa américa, e assim no ano seguinte também, e se quatro anos após a goleada o país novamente parou para acompanhar mais uma copa do mundo e torcer enlouquecidamente para os convocados do então e atual técnico tite? 2) que espécie de indignação e ausência de sentido se observam numa derrota em cujo esporte o sobrenatural de almeida, apresentado por nelson rodrigues, participa ativamente, quer para a alegria hoje quer para a tristeza amanhã ou vasco-versa? eu entendo o tamanho do buraco no estômago do torcedor brasileiro, afinal, custa uma partida terminar com sete gols para um time e custa mais ainda se estabelecer uma vantagem de cinco em meia hora. entretanto, incorporar um sentimento patriótico em um evento esportivo e sentir doer enquanto experiência traumática por exemplo de guerra eu considero patológico, uma vez que representa não conseguir se desvincular da cena original, logo, passível de tratamento e recuperação. e nesta talvez se incluam a sátira e o humor, tal qual do falha de cobertura, ao propor uma análise esportiva pautada em nonsense e deboche, porque o futebol merece receber a atenção devida de entretenimento cultural. de modo que, similar ao charuto às vezes sendo apenas um charuto, uma reprise daquela semifinal deveria ser apenas uma reprise de uma semifinal de copa do mundo – inclusive transmitida em live por craque daniel e cerginho da pereira nunes, com intervenções do repórter edvaldo – igualmente às diversas partidas de copa e outros torneios, de variadas seleções e times, retransmitidas durante mais de três meses, nos canais abertos e fechados, enquanto na ausência de jogos ao vivo devido à paralisação mundial dos esportes pela pandemia do covid-19. 


gol da alemanha: lá vem o brasil descendo a ladeira

na bola, no samba, na sola, no salto, moraes moreira. mas não no sentido da sua música, de quem desce para aqui embaixo acordar a cidade e arriscar um verso; desceu o brasil, naquela tarde, há seis anos, a ladeira da tragédia, dizem os traumatizados – equivocadamente porque se apoiam na muleta metafísica criticada por nietzsche, aquela que necrosa a vida, representada pelo medo do sujeito, submetido à crença cega em estereótipos culturais, de estabelecer por e para si mesmo uma vontade potencial própria e assumi-la e vivê-la. e agora, com um ainda incipiente distanciamento para aquela partida, considero válida toda forma de riso sobre o resultado, afinal, não foi um trauma, não foi uma partida fatídica, não foi uma tragédia. o viés precisa ser outro, mas não também o da expiação, proposto por nuno ramos, porque tornar bode expiatório o resultado de um jogo é conferir a este um significado maior que o saudável, é considerá-lo um sofrimento compensatório de culpa, e dessa forma continua a ser doentio. de maneira que vexame me parece o termo mais correto para se pensar uma derrota esportiva, porém desprovido de vitimismo. pois vexame, segundo o dicionário aurélio, pode ser “tudo o que causa vergonha ou afronta; desonra; humilhação; rebaixamento moral”, definições possíveis para se sentir esse exemplo de derrota, apesar de ainda exageradas, às quais eu confessadamente me incluo e as incorporo quando me fragilizo, no entanto sempre de maneira a afastar-me do vitimismo, sentimento este, por mais que o senso comum futebolístico os associe, que não é consequência de trauma, muito menos uma patologia. é sim uma postura de desamparo e vulnerabilidade de quem se diz sofredor de algo de que não necessariamente foi vítima. parece-me o torcedor brasileiro quando diante da reprise dessa partida inominável, comportamento não só contrário à identidade eufórica nacional como reafirmador de discursos sensacionalistas responsáveis por esvaziarem o sentido da crítica e o estudo do jogo, propagados, à época da goleada, por felipões e parreiras e donas lúcias, cuja base simplificada se dividia em duas: uma do eu versus quem pensa diferente de mim, representada pela comissão técnica no momento em que solicitaram “unir o país e parar de falar mal da gente”; e outra que justificava aquela derrota como um apagão, ou seja, um acontecimento carente de explicação ou culpados, designado pelo acaso, pelos deuses do futebol ou pelo azar da contusão de neymar, esta a materialização do drama e da instabilidade emocional daquele grupo de jogadores, do capitão thiago silva chorando durante uma disputa de pênaltis à comoção coletiva pela ausência do craque do time, presente na semifinal a partir da camisa levantada por julio césar e o então capitão david luiz durante o hino nacional, simbolizando a derrota antes mesmo de a partida começar e desconsiderando – conforme lembrado por pvc, em capítulo do livro “o raio-x do 7x1” – a conquista da copa de 1962, na qual pelé se contundiu no segundo jogo e foi substituído por amarildo, um dos protagonistas do título, junto com garrincha. 


gol da alemanha: abençoado por deus 

e bonito por natureza é o brasil, jorge ben. a razão da simpatia, do poder, do algo mais, da alegria. é também o país da piada pronta, de josé simão, onde é pelo humor que se comenta política. mas não futebol, ou ao menos não uma derrota “trágica”, dizem os vitimistas. isto porque aquela partida é um hiato na cultura futebolística mundial; é uma tatuagem na face do torcedor brasileiro – pois na alma estão guardadas derrotas que pertencem ao jogo: as já citadas para uruguai e itália ou a na copa da frança, para a anfitriã, em 1998, quando eu, com meus 11 anos, chorei e à qual mês passado reassisti. contudo, o modo como se construiu aquele placar no minerão, há sete anos, impede o torcedor brasileiro de se apegar ao acaso ou de culpar o juiz ou deus pelo azar específico em um lance e até mesmo de nomear o jogo a não ser pelo absurdo do próprio placar. e é grave não poder identificar com um nome uma derrota desse alcance, pois se prejudica a cicatrização do sentimento de tristeza e se impede o inconsciente do deslocamento da cena verdadeira, ou seja, de se afastar saudavelmente do que aconteceu e ficou gravado emocionalmente enquanto dor. porque sofrer quatro gols em seis minutos, ainda no primeiro tempo, e ir para o intervalo em desvantagem de cinco no placar não permite qualquer possibilidade de direcionamento culpatório ou nominal. o que sobra, então? deveria ser a vergonha, e assim tornando-se a semifinal uma partida vexatória. todavia, o que entrou em campo naquela tarde, conforme ensaiado por nuno ramos, na revista piauí, um mês depois, foi a “cultura futebolística brasileira”: felipão escalou, e o torcedor brasileiro – no melhor estilo policarpo quaresma – incorporou o ufanismo e estufou o peito de orgulho e euforia, não sem antes propagar as ideias de perseguição e falta de apoio da crítica especializada, como se o trabalho jornalístico devesse se pautar pelo aspecto passional e não racional. vendeu-se então a necessidade de união nacional em torno da alegria e do improviso nas pernas do jogador nascido nessa terra onde em fevereiro tem carnaval, e por isso inconscientemente o povo se veste de extrema  felicidade a cada copa do mundo, na base do verso do ben jor, de que “se você quiser pode ser feliz também”, e deve, acrescento. inclusive ao rever o inominável, tornando-o uma lembrança de no máximo vergonha, sentimento que nos engrandece enquanto sujeitos, sem o viés dramático que tentaram impor coletivamente, descaracterizador da identidade nacional eufórica e sadia. porque o que a vida quer da gente é coragem, ensina-nos riobaldo: “o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta”. 


gol da alemanha: meninos mimados não podem 

reger a nação, criolo. e, não sei por qual motivo – se por jogar a copa no próprio país, se por ter até então melhor campanha, se por sorteio – mas a disposição gráfica dos nomes e do placar assim ficou: brasil 1x7 alemanha. excluindo-se as letras, 17, o prenúncio de uma tragédia muito mais traumática para o brasil e seu povo, cujas marcas talvez se tornem indeléveis no caráter de identidade nacional. afinal, se confirmados os no mínimo quatro anos de poder bolsonarista, serão décadas de regressão ufanista e vitimista, na burra base da polarização do nós contra eles, dos cidadãos de bem contra “isso tudo que tá aí” – essa sequência de cinco palavras tão bem representativa desse projeto político de esvaziamento crítico e plural do país, já prenunciado por aqueles que comandavam a seleção naquela copa. logo, em todas as esferas existentes e incrustado em nosso inconsciente coletivo de nação, nesse trauma político reside a causa pela qual vestir o passado será ainda mais comum e doloroso, digna do sofrimento enquanto verdade. e da vergonha também.


gol do brasil: na parede da memória 

essa lembrança política é o quadro que dói mais, belchior, e nos afeta já, no instante presente de vivermos uma pandemia sem um esquema tático definido, por quem nos governa, para nos orientar coletivamente sobre quando e como nos protegermos e sairmos com segurança para o jogo. e assim há mais de um ano somos os próprios jogadores da seleção durante aqueles seis minutos em que lá vinham eles de novo e de repente gol e bola ao centro, reinício, lá vêm eles de novo, gol: é cada um por si, em direções aleatórias, pautadas em crenças individuais e negacionistas, sem o mínimo discernimento técnico e científico. e agora é um vírus e não se contam mais gols pois sim infectados e mortos, sem qualquer indício de comoção ou respeito, pela representatividade política do país, às vítimas, mas com bastante vitimismo. eis uma verdadeira tragédia. prova de que aquela goleada, há sete anos, deveria merecer a consideração, pelo torcedor brasileiro, de uma memória no máximo triste, independente do fator escolhido: a apática atuação do time, que beirou o nonsense; o hiato na cultura futebolística, pela descaracterização das marcas esportivas de um jogo; a ausência de um nome para a derrota. a mim, a tristeza reside no fato de oscar ser o autor do gol brasileiro: o insosso e apático camisa onze, no minuto 89, afundou o placar em melancolia, temperada, dias depois, pelos três gols da holanda na desanimadora disputa de terceiro lugar, sobre a qual, inclusive, seria mais fácil escrever e ler, concordemos. 


ítalo puccini


segunda-feira, 21 de junho de 2021

da solidão morada

para onde me mudo
levo comigo a casa
que mora em mim.

ítalo puccini

sábado, 5 de junho de 2021

semana iii

i
quando é sábado
sensação de casa limpa

ii 
domingo de bicicleta
futebol e parque

iii
nos dias de chuva
ler como barthes

iv
a cozinha
o amálgama da casa

v
acordar
em afeto e distração

vi
o meio da tarde
cajuína de caetano

vii
dormir e 
não saber do amanhã

ítalo puccini

terça-feira, 4 de maio de 2021

eu sou mais feliz quando domino os dois pauzinhos do hashi do que quando jogo sinuca

porque aquele taco torto e grande e úmido não me dá o poder que os dois pauzinhos de hashi me dão tão retilíneos e levemente pontudos tão suaves e ainda assim difíceis de serem manejados bem mais difíceis que um taco de sinuca junto pois este é só agarrar com firmeza na extremidade mais larga e fazer o movimento de ir e vir o movimento mais básico mais clichê mais papai e mamãe que se pode querer fazer com um objeto esférico em mãos o ir e vir e então ser bom de mira e de ângulo matemática é fundamental para saber jogar sinuca mas matemática é fácil todos sabem matemática desde a quinta série assim como para estudar música a matemática é fundamental e música também é muito fácil de aprender é só saber matemática com isso jogar sinuca saber matemática e ser músico são três atividades que não se comparam a segurar os dois pauzinhos do hashi com uma só mão sem aquele elástico desaforado aquele símbolo brochante de incapacidade similar ao jogador de sinuca que joga a bola feita de porcelanato para fora da mesa ao tentar encaçapá-la com excesso de força a partir de alguma tacada muito bruta de algum movimento muito bruto de ir e vir cujo propósito é o de sentir-se soberano o melhor no jogo de bilhar o botequeiro chegando à ridícula posição de ser frouxo ao usar o hashi por isso eu prefiro pegar nos dois pauzinhos do hashi com uma só mão e com eles levar a comida à boca o mesmo prazer e a mesma sensação de poder que eu tenho ao beber um vinho ao degustá-lo e listar as características nele presentes vinho tinto seco amadeirado safra de quando meu bisavô iniciou sua produção vinícola em garibaldi e as pessoas babam diante das minhas palavras enaltecem a mim me desejam e eu nem preciso fazer força para isso não preciso tacar com força uma bola na outra não preciso solar notas em um instrumento não preciso destrinchar uma equação algébrica a mim cabe apenas segurar em uma das mãos a taça com o vinho da produção vinícola iniciada pelo meu avô e na outra os dois pauzinhos sem elástico do hashi para com isso me sentir o ser mais desejado do planeta superando assim a carência que me impuseram meu pai e minha mãe durante os dezesseis anos em que morei com eles e me senti abandonado recebendo picadas de mosquitos a cada noite quente no meu quarto sem ar condicionado que me levava a dormir de janela aberta e ainda assim com um lençol para ser menos picado pelos mosquitos que só no meu quarto existiam porque nos quartos dos meus pais e do meu irmão mais velho havia condicionador de ar aquele aparelho informalmente chamado de ar condicionado porque meu irmão era o mais velho e por isso merecedor daquele aparelho que lhe evitava amanhecer suado e picado e eu se tivesse ficado em casa também ganharia um para o meu quarto mas eu não quis dezesseis anos foram suficientes para que eu me sentisse um entulho de mosquitos e suor e por isso eu vim morar nessa quitinete onde eu não tenho televisão mas ar condicionado e assim não preciso abrir a única janela aqui presente muito menos dormir com um lençol eu posso usar um cobertor afinal fica bastante frio e eu gosto de frio gosto de escuro gosto de pedir pelo telefone sashimis huramakis hossomakis nigiris e abrir o vinho lá de garibaldi e comer tendo em uma mão uma taça com o vinho do meu avô e na outra o hashi sem elástico sem brutalidade sem matemática sem música


ítalo puccini

quinta-feira, 29 de abril de 2021

egoísmo

se eu acreditasse
em deus
eu rezaria todas as noites
pedindo ao senhor
por favor pai
ajude essas pessoas
a tirarem a cabeça
de dentro do próprio
eu

ítalo puccini

sexta-feira, 2 de abril de 2021

projeto sustentável

quando jesus voltar
será
numa canoa de produtos recicláveis.

ítalo puccini

quinta-feira, 18 de março de 2021

manifesto

são paulo é a
personificação
da antropofagia

ítalo puccini

terça-feira, 16 de março de 2021

releitura

o rio de janeiro continua
sujo

e maravilhoso


ítalo puccini


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

semana ii

sete dias em
capitólio
desfiz-me de ateu


ítalo puccini


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

existência ii

se deus existisse
não teríamos pai nem mãe
 
e assim não seríamos
os fodidos que somos
 
ítalo puccini

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

o vício

i
há alguns anos 
troquei os móveis do meu quarto de 
lugar tirei uma foto e publiquei 
no facebook 
junto com um texto sobre 
o significado daquela mudança 
ao qual recebi algumas poucas 
curtidas e 
um comentário do 
qual nunca me esqueci
que dizia
cara foram só móveis
com exclamação ao 
final e 
ali foi o momento de excluir 
minha conta e me
desvincular da existência
virtual das redes
mas meu ego já era alimentado pelo
vício 

ii
anos depois minha
arrogância me puniu e eu 
paguei com uma demissão o 
preço por insistir em 
publicações virtuais quando 
escrevi em formato de 
tuíte um poema 
cuja potência não 
se perdeu por mais 
que eu o 
tenha desfigurado
ao publicá-lo em uma rede
de ódio
da qual eu participava diariamente
destilando pseudosabedoria
e alimentando meu 
ego e meu
vício

iii
no instagram eu estive internado por
seis meses com
sérias crises 
de ansiedade e sem
qualquer publicação que
mereça lembrança
inclusive eu 
me esforço
diariamente para meu
ego se esquecer de 
que um dia 
sucumbimos àquele 
vício

iv
se eu ainda tivesse
uma conta no twitter por exemplo
fake ou verdadeira
não interessa
somos sempre falsas representações
de nós mesmos
eu tuitaria
o pássaro lá de casa
canta anitta
quando pia
pa pa ra pa pa
e seria tão divertido
quanto uma publicação
virtual é
algumas curtidas
talvez uma ou outra
resposta
e na verdade tudo isso sem
nenhuma vontade
de interação
de quem leu nem
de quem escreveu
típico
de uma rede social
cuja finalidade
é despertar em nós uma
suposta atenção por
aquilo que não nos
interessa 
e lá ficamos porque
o ego alimenta o
vício 

se possível até adoecer

ítalo puccini