quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

o samba engana



com o perdão da sonoridade ruim do título, escrevo esta croniqueta para evidenciar a contradição que o samba apresenta: um ziriguidum a disfarçar tristezas. por exemplo, cartola canta “alegria era o que faltava em mim”, e nós já estamos a vibrar o corpo ao som do cavaco, enquanto o cantor depois emenda “já que tu não és sincera / eu vou te abandonar um dia”. e nós sambando. e sorrindo. é o “samba no sangue daquele que sabe sambar”, como canta o seu jorge. e até dos que não sabem, ainda bem. porque não curte samba só quem samba; há quem seja apenas um bamba, a arriscar uma trocada de pernas e uma gingada, quase sempre errando e nem por isso menos contente. escrevo com conhecimento de causa e de causos. 

mas quem é que se atreve a dizer do que é feito o samba? os los hermanos não – e aqui não há nenhum desmerecimento ao conjunto carioca de nome argentino e sim apenas uma observação: eles não são peritos em samba. mas compuseram uma beleza de música, com esta indagação acima. e acrescentaram que se samba por gostar de alguém. e que um bom samba não tem um lugar em específico para aparecer. só não existe na escola, segundo noel rosa cantava: “batuque é um privilégio / ninguém aprende samba no colégio / sambar é chorar de alegria / é sorrir de nostalgia / dentro da melodia”. ou seja, um feitio de oração.

caetano é de cantar que o samba é pai do prazer e filho da dor, sendo a tristeza senhora desde que o samba é samba. pois então eu retomo o título: o samba engana. engana porque, ao apresentar um ritmo envolvente-gostoso, faz o sujeito que é bom da cabeça sentir uma alegria contraditória à letra cantada; faz vibrar de prazer o corpo que saracoteia ao som de trem das onze sem perceber que não se pode mais ficar um minuto com a pessoa amada, pois, perdendo o trem que sairá às onze horas, só amanhã de manhã.

amanhã de manhã, inclusive, cuja letra de tom zé mostra uma outra forma de o samba enganar, não mais pela tristeza, mas sim como crítica implícita - contra a ditadura, no caso dessa música: “na hora ninguém escapa / debaixo da cama / ninguém se esconde / a felicidade vai / desabar sobre os homens / vai”. e será noticiada no jornal da morte, esse samba de miguel gustavo, eternizado na voz de roberto silva, cujos primeiros versos cantam: sangue, sangue, sangue, sangue. em um ritmo de samba sobre um “escândalo amoroso (...) / um bicheiro assassinado em decúbito dorsal / cada página é um grito, (...) / só falta alguém espremer jornal”. 

são sambas críticos, evidenciados também por joão nogueira, um dos mensageiros desse gênero musical, o samba guerreiro, não mais prisioneiro do desespero e da resignação. mas ainda do amor. as tristezas amorosas que se tornam alegre cantar, conforme versado pelos originais do samba. assim como por centenas de outros compositores, de versos com esperanças perdidas, especialmente sobre as mulheres, cantadas em todos os sentidos no samba. ainda mais: são cantadas as dores que elas provocam nos sambistas. essas moças tão diferentes, não é mesmo, chico? fica fácil embalar-se no ritmo dessa canção, sem atentar-se para a dor da moça que, diferente, está passando-o pra trás, por mais que no fundo ainda lhe queira bem.

o samba é aquilo que nos leva a andar com a cabeça já pelas tabelas. porque um samba leva a uma lembrança – ou a uma cerveja – que leva a outra, que leva a uma roda de pernas a bambar, que leva a um samba e então se batem panelas e palmas. e de repente as mãos são erguidas, a voz vai alta, e o coração não dá o alerta de que se está cantando com a teresa cristina “tu te lembras da partida / acenaste um pano branco / mãos ao ar, fala contida / choro preso em acalanto”.

tá legal, eu e o paulinho da viola aceitamos outros argumentos, mas que não se altere um samba tanto assim, como os de letra entusiasmada, sobre viver e não ter a vergonha de ser feliz, e os que são lentos, feitos para curar o abandono ou até mesmo para torná-lo mais grave. são os sambas da benção, lembrando-nos de que, apesar de ser preciso um bocado de tristeza pra fazer um samba com beleza, é melhor ser alegre que ser triste.

e, para não deixarmos o samba morrer, nem se acabar, por mais enganador que ele seja, criei uma playlist com mais de 500 músicas e 30 horas de duração, comprovando essa arte do me engana que eu gosto. afinal, se for para sofrer, melhor sambando. 


https://open.spotify.com/playlist/6aQEUhO7IyeeYcvdh8VfsT?si=a926d7b86d6d4cbd


ítalo puccini