terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

ser tão mar

        



            minhas férias de verão eram na praia de itaguaçu. sessenta dias de mar. e durante os outros meses também íamos para lá, em algum final de semana, feriado ou recesso escolar. o pai morou em itaguaçu por alguns anos, e em minha memória eu guardei inclusive dias nublados e chuvosos. foi quando aprendi na infância a escutar aquela curva de água explodindo na própria água: a metalinguagem marítima. por isso o mar de um vendaval e de uma chuva sempre me encantou mais do que uma enseada de água salgada - mas nesta o nado faz mais sentido, parece-me.
        de todo modo, todo mar requer coragem. para ver tocar entrar tornar-se um. coragem da personagem mulher do conto "as águas do mundo", da clarice, de que paola me lembrou após eu enviar a ela bethânia cantando "e eu que não sei quase nada do mar / descobri que não sei nada de mim" - versos que moraram aqui durante todo um dia e a levaram a esse conto e a mim a este ensaio.
            e o conto de clarice começa com: "Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões."
            entrega feita com coragem, palavra à qual clarice chega no decorrer dessa narrativa: "A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem."
           entendi, clarice. por mais que seja para senti-la, eu a entendi. quando meu não saber me deslocou para o mar. tanto que este texto eu nasci há alguns meses para encarar esse medo: aprender a desver o mar gravado na retina da minha infância e criar uma nova cartografia dele em mim. incentivado por josi, que me propôs dois aprendizados - do deslocamento do mar e da escrita - a partir de um novo caminho geográfico do mar que eu navego, não mais do mar que me navega. ok, paulinho?
            nos últimos anos, tenho ido com frequência a itaguaçu. e quando nas sessões de análise também me desloco em memória para lá. naquele mar eu construí, a partir da solidão, meu ideal de mim mesmo. era eu o eu lírico de "dois barcos", do marcelo camelo: sobre estar só eu sabia no mar aonde eu ia. e para transformar o ideal do eu em meu eu ideal - um palíndromo psicanalítico - escolhi uma sequência de praias nos últimos meses do ano passado e em direção a elas fui, sozinho, acessando lembranças de quando eu ia visitar o pai em itaguaçu e assim sozinho me sentia. deslocar-me pela solidão, no meu caso, implica ressignificar as ondas de mar que formam as rugas do meu rosto. sinto-me mais próximo de rodrigo, o narrador de "a hora da estrela": "isso será coragem minha, a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis".
            não preciso mais ser santiago, o personagem do hemingway em “o velho e o mar”, que aceitou a solidão como essência de vida e especialmente a materializou durante os 84 dias nos quais nada pescou. santiago lutou sozinho, com sucesso, para pescar um peixe de tamanho descomunal e depois, sem sucesso, para evitar que tubarões atacassem a presa. foi e voltou desacompanhado de outros humanos, mas não sem estabelecer conversas consigo mesmo e com os animais marinhos que cercavam o barco. lembro-me de sentir em santiago uma companhia na minha adolescência: minha solidão-leitora acompanhava-lhe a solidão-marítima e a paciência diante das frustrações diárias.
            não sei se rubel compôs a canção homônima ao livro de hemingway pensando em santiago, mas ao cantar "e se perder / calma" o poeta parece descrever o personagem. e me ensina a como agir diante das perdas.
            inclusive aprendi a escolher perder, às vezes. afinal, a vida não é sobre justiças. e são tantos os fantasmas que nós criamos.
          "perdido a me perder mar adentro" cantam o vitor ramil e o jorge drexler, em “viajei”. exatamente como me sinto nos últimos meses, aprendendo a perder - um duro exercício, segundo a rosane, com quem compartilhei leituras que fiz de versos da bishop e do drummond sobre o perder: para o poeta mineiro, "Amar o perdido / deixa confundido / este coração", enquanto a poetisa norte-americana reitera três vezes que "A arte de perder não é nenhum mistério".
         mas a mim sempre foi. a solidão me era uma derrota. que por mecanismo de defesa eu transformei em uma forma de vitória e arrogância - e nessa condição perder sempre é mais doloroso. e me lembro de que eu me dirigia para a frente do mar tentando entender o motivo da minha sensação de desamparo. "o mar [que] promete terra seca ao viajante exausto", cantado por ramil em "tierra" era o lugar onde eu acreditava ser capaz de preencher o meu vazio perdido e onde eu também fiz todo o meu pranto, parafraseando o teago oliveira.
            eu tentava incorporar os versos de “vento no litoral” e cantarolava junto com renato, deixando a onda me acertar e o vento levar tudo embora. o vento sardo cantado pro drexler e marisa: que levanta a onda e ondula o mar. meu vazio esticava minha solidão ao infinito. e quando eu via o mar algo me dizia que a vida continuaria e que se entregar seria uma bobagem. renato tinha razão. nando também tem: "quando a gente fica em frente ao mar a gente se sente melhor". ainda mais se o sentimos - o mar - como apenas nosso, tal qual nos versos de sophia de mello breyner andresen: “mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim / a tua beleza aumenta quando estamos sós / e tão fundo intimamente a tua voz / segue o mais secreto bailar do meu sonho / que momentos há em que eu suponho / seres um milagre criado só para mim”.
            no ano passado, então, cantando belchior, eu morri. e, angustiado em uma crise existencial, o mar foi o lugar para o qual me dirigi, por sugestão da josi, que me disse "vá ao mar para se curar e se libertar". fui, não sem receio: olhava enviesado para aquele infinito. fingia não vê-lo. desviava do som dele. mesmo assim eu estava lá: no farol de santa marta, nas praias de laguna, na guarda do embaú, na praia do rosa, no campeche e, claro, em itaguaçu. lugares sugeridos por fox, com quem inclusive ainda vou percorrer de moto algumas praias da ilha de santa catarina em um final de semana qualquer adiante.
            aliás, se eu pudesse mudar de nome por um tempo, escolheria ser chamado de itamar. não somente por admirar o autor de "torto arado", mas porque este ensaio nasceu em mim nos últimos meses, momento em que as ondas habitaram minhas memórias e ecoaram essas sílabas: ita e mar.
                ser tão mar.
            não literalmente o sertão que vira mar como na canção "sobradinho", de sá e guarabira, mas metaforicamente sim: o medo que dá no coração de um dia me virar apenas sertão. o mar na minha história adulta de vida eu quero que se torne plural, pela liberdade. tal qual a personagem de clarice, que tomou o mar por dentro e nele caminhou. ela ganhou a liberdade na amplidão cantada por bethânia em “o quereres” de caetano. ela foi pela imensidão do mar e o abraçou na lua cheia.
                tenho certeza de que essa personagem anônima é a própria bethânia.
             eu ainda não aprendi a abraçar o mar na lua cheia, nem fui por sua imensidão ou amplidão. sinto que vou entrar verdadeiramente nesses versos quando começar a nadar no mar. inclusive, meu primo cadu tem nadado no mar de canto grande, em bombinhas, e a qualquer dia vou até lá conversar com ele entre braçadas e respiradas, deslocando a solidão, pelo afeto, no mar.
            experiência também vivida pelo personagem palomar, do meu xará calvino, que pratica sua natação vespertina: "Entra na água, afasta-se da praia, e o reflexo do sol se torna uma espada cintilante na água que do horizonte se prolonga até ele". o mesmo palomar que por vezes para diante do mar e tenta fazer a leitura de uma onda, enfrentando toda a complexidade que essa tarefa implica, para quem sabe poder cantar no mesmo tom que jobim: "agora eu já sei / da onda que se ergueu no mar". e palomar assim age porque "tende a reduzir suas próprias relações com o mundo externo e para defender-se da neurastenia geral procura manter tanto quanto pode suas sensações sob controle".
                o resto é mar, palomar. e é impossível ser feliz sozinho.
            por isso, inclusive, convido a quem teve fôlego de chegar até aqui para juntos nadarmos em mares versados em memória e afeto e melodias.
                bom mergulho a nós: