ambiguidade proposital
no título. porque de salvação já basta a bíblia e sua promessa-nunca-cumprida.
aliás, está aí um bom exemplo de um livro que amarra a narrativa à autoajuda. que
embaralha um realismo ao fantástico e ao romântico. que suscita no leitor
esperanças ao mesmo tempo em que o exime de responsabilidades e o cobra de
posturas individuais e sociais. enfim, uma contradição exemplar, como todo bom
livro deve provocar.
tem uma frase clássica
atribuída ao caio graco e ao mário quintana nas esquinas porraí que diz assim
“Livros não mudam o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam
as pessoas”.
sim e não.
é cômodo – e eu já fiz
isso por demais – atribuir aos livros – e, consequentemente, à leitura e à
literatura – a responsabilidade pela mudança de caráter e de comportamento das
pessoas. registre-se que uma mudança para melhor, é claro. digo que é cômodo
porque me parece que se exime do sujeito uma tomada de atitude que independe
dos livros e uma própria formação cognitiva, psicológica e social que da mesma
forma não apresenta relação direta com bagagem leitora.
o romantismo é vizinho
da utopia. ambos não me agradam muito porque, a meu ver, apresentam uma
fugacidade exagerada – na verdade, ambos apresentam o exagero como condição
necessária para um olhar o mundo. e este olhar se coloca muito distante de uma
possível realidade, lidando apenas com uma idealização da mesma.
os livros não mudam o
mundo e os livros não salvam as pessoas. não são remédios como os vendidos nas farmácias.
olhar para a literatura dessa forma é torná-la uma religião: a salvação está em
deus. a salvação está nos livros. duas visões simplórias. dois movimentos
humanos que se eximem de uma responsabilidade sobre si. o fanatismo já está
acabando com o futebol há bastante tempo. não precisa acabar com a arte também.
então o que nos leva a
ler? depende, primeiramente, o que se lê. posso afirmar que é o contato com
outras vidas que me leva à leitura de romances e de contos, assim como é uma
aproximação com possibilidades de trabalho com a linguagem que me coloca junto
a livros de poemas. é o meu gosto por futebol que me faz ler crônicas
futebolísticas, e é meu trabalho como professor e pesquisador que me tornam
leitor de livros teóricos. nada disso me salva de algo. apenas me complementa,
ajuda-me a tornar-me quem sou, nesse processo, ainda bem, contínuo,
ininterrupto.
para amarrar a
conversa, um exemplo: diz assim o personagem antônio jorge da silva, do
angolano recém-ganhador do prêmio portugal telecom de melhor romance, valter
hugo mãe, em seu “a máquina de fazer espanhóis”: “fora uma ingenuidade da minha
parte achar que armado com um livro me armara para todos os inimigos do mundo”.
retiremos a frase do contexto no qual ela está inserida – um hospício, lugar em
que se passa todo o romance citado – para trazê-la a esta discussão: não é
armando-se de livros que alguém vencerá seus inimigos. é lindo pensar assim? pode
ser. mas não me satisfaz. traz-me medo, a bem dizer. porque ingenuidade em
excesso me preocupa. a vocês não?
prefiro o amargo ao doce
no modo de olhar o mundo. porque o amargo ao menos me parece propor uma
possibilidade de mudança. o doce estabiliza e deixa estar. até azedar.
ítalo puccini