segunda-feira, 22 de junho de 2020

o homem e a terra: a literatura enquanto testemunho



   ignazio silone, escritor italiano oriundo de “pescina dei marsi”, na província de l’aquila (itália meridional), na região do abruzzo, escreveu “Fontamara”, aquele que se tornou o principal best-seller italiano do século xx, romance no qual retrata a miséria da vida campesina, o amor à terra e o orgulho de quem cuida desta terra – os cafonis, um povo devoto a deus, muito trabalhador, ingênuo, humilde, cujo objetivo diário era lutar pela própria sobrevivência. e uma das marcas da vida do próprio autor envolve justamente a realidade do trabalho braçal – por coincidência, silone nasceu no dia 1º de maio de 1900 – dedicando-se à defesa de seus irmãos de localidade, que sofriam envoltos à miséria e à opressão, agravadas com a ascensão do fascismo, na itália, na década de 1930. 
o que silone apresenta em “Fontamara”, pois, é um testemunho, ou seja, um fragmento sobre as questões existenciais vividas por ele mesmo e pelo seu povo, ressignificadas em um novo viés, este de natureza literária, desdobrando-se no âmbito da estética e não restringindo seu corpus à produção dos sobreviventes. assim, configura-se a obra um retrato de uma sociedade presente na itália no início do século xx, quando os habitantes do campo lutavam pela conquista de direitos e das próprias terras onde eram agricultores e trabalhadores. e “Fontamara” é isto: um romance – formado por dez capítulos mais um prólogo – cuja história se divide nas vozes de três narradores e aborda a vida dos cafonis, camponeses socialmente oprimidos que descobrem a ação de um empresário, recém-chegado à localidade e já nomeado novo dirigente político do local, responsável por desviar o curso do rio do qual provinha o fornecimento de água para o cultivo das plantações. 
          nesse contexto, a ação dos cafonis é, em essência, na narrativa, quase uma falta de ação: sentem-se desnorteados, sem sabedoria sobre como devem agir diante da onipresença intelectual e física daqueles que exercem o que bourdieu, ao final do século xx, denominou violência simbólica: exercida por um corpo social, sem agressão corpórea, responsável por causas danos morais e psicológicos nas vítimas – com a diferença de que fisicamente sofrem os camponeses na obra. há, dessa forma, em “Fontamara”, em um aspecto, a perspectiva social de personagens oprimidos, e, em outro, a daqueles com acesso à cultura e aos meios necessários para se promover alguma mudança coletiva – preferencialmente restritiva à elite. além disso, nesse ínterim, estabelece-se um impasse de comunicação entre esses dois grupos, tão distintos e compartilhando uma mesma realidade: os cafonis, apegados a provérbios e dialetos e lendas próprias – definidores de verdades perpétuas – e os homens da cidade, representantes dos tempos modernos e totalitários e violentos em ascensão à época. 
          nessa perspectiva, o tema central de “Fontamara”se refere à familiaridade dos personagens com a terra, temática recorrente nas obras de ignazio silone, refletindo uma herança familiar, visto que seu pai foi um pequeno produtor agrícola, e desse modo o autor desenvolveu essa identificação. também, é característica dos textos de silone a presença de terrenos áridos, de regiões íngremes, simbolizando a dureza da vida enquanto espelho do lugar, este bastante áspero, que se torna o objeto de desejo principal dos personagens da narrativa, dispostos a qualquer confronto pela defesa de uma propriedade, alimentando ainda mais a luta por aquilo sobre o qual eles detêm direito. é, pois, a narrativa de silone que mais apresenta seu estado de homem enraizado a uma terra, a uma causa, a um almejo contínuo pelos direitos sociais. e há, ainda, uma temática de solidão e de nostalgia na descrição das ações vividas pelos personagens camponeses, representando o temor – deles e do autor – de desvincular-se da própria origem.
          inclusive, silone foi, além de escritor, militante político, sendo “Fontamara” uma obra escrita em davos, na suíça, em 1933, quando ele se exilou, fugindo do fascismo dominante na itália à época. dessa maneira, construída pela e a partir da memória de ignazio, essa narrativa-testemunho contempla traços autobiográficos, responsáveis nesse caso pela clareza sobre as relações entre a luta dos personagens e o conflito de vivência e de objetivos do próprio autor, um cafoni a desafiar, até onde conseguiu, a imposição fascista. 
          postura artística, a do escritor italiano, que dialoga com a afirmação de francisco de assis barbosa a respeito de lima barreto: aquele que “passou a ver o homem em função da sociedade em que vive e não apenas dentro de si mesmo”, cujos romances se apresentam mais como um relato pessoal do que necessariamente um trabalho literário apurado em aspectos do gênero. e essa característica de silone e teorizada em lima, de retratar, a partir da literatura, um povo e o local de origem deste, encontra-se igualmente em graciliano ramos, escritor alagoano e resistente político, que não escapou da prisão quando vargas a decretou, também na década de 1930, sem provas e sem processo, sob a alegação de o escritor envolver-se com o comunismo. 


contudo, não se limita a isto a semelhança entre os autores, uma vez que a história de vida de graciliano da mesma forma abraça a realidade sertaneja, rural, humilde e oprimida. de modo que não há como ler “Fontamara” e não evocar à memória “Vidas Secas”, escrito por graciliano em 1938, um exemplo do testemunho como literalização e fragmentação – ideia de seligmann-silva, em ensaios sobre memória, arte e literatura. um romance composto em fragmentos, contendo 13 capítulos independentes, cuja sequência consta definida porém permite maleabilidade ao leitor, e a narrativa reflete a secura do ambiente, uma localidade conhecida pelo escritor, de pobreza e terra seca, onde uma família – formada por um pai, uma mãe, dois filhos e mais um cachorro e um papagaio – luta para sobreviver, enfrentando as diversidades lhes impostas pela ingenuidade e dificuldade de trabalho e de subsistência. ou seja, há, na obra de graciliano, igualmente a iminência de perda da terra que serve de moradia e de sustento. 

nesse sentido, são dois os mundos apresentados ao leitor em “Vidas Secas”: um envolve a família do personagem fabiano: a esposa sinhá vitória, os dois filhos – filho mais velho e filho mais novo – a cachorra baleia e o papagaio; e o outro engloba a sociedade na qual tentam viver fabiano e família, aquela representada principalmente pela figura de duas pessoas – ou duas nomenclaturas sociais: o patrão (do exploratório e mal pago emprego de fabiano) e a polícia (no enredo do romance, presente na figura do soldado amarelo, responsável por prender fabiano em determinado momento da trama).
assim, o que se apresenta ao leitor entre esses dois grupos não é um sistema de trocas, mas sim um mecanismo de opressão e de bloqueio, similar ao existente em “Fontamara”. todavia, se na obra de silone se encontram personagens que lutam ao menos um pouco por alguma forma de mudança no tratamento recebido e na condição em que vivem, no romance de graciliano se evidencia fabiano, indivíduo inofensivo, um pobre diabo, passivo, incapaz de mudar o rumo dos acontecimentos e que, quando tenta provocar alguma mudança, age de maneira intempestiva, sem pensar nas próprias atitudes e nas consequências destas.
há também, em “Vidas secas”, uma simbiose entre humanos e animais, num processo de humanização. ou de animalização: fabiano é, ou pode ser, baleia, o cachorro que acompanha a família, o animal que vive a caçar preás, enquanto fabiano caça trabalho; fabiano é um homem, mas é, ou pode ser, um bicho, enquanto baleia é um bicho, mas é, ou pode ser, quem mais apresenta um equilíbrio humano dentre todos os integrantes da família; fabiano e baleia não falam, grunhem, rosnam, entendem-se e se fazem entender por meio dessa linguagem própria, ausente de palavra. 
“Vidas secas”, ainda, é obra de quadros justapostos: o cenário é de paisagem seca, onde há urubus procurando mortos, e humanos, comida. há uma zoomorfização e uma antropomorfização das personagens, figurando-se as pessoas enquanto coisas, personagens diluídos no ambiente. e a linguagem é um problema, não uma solução, porque se configura uma impotência existencial e verbal diante da realidade, sendo os pensamentos dos personagens fragmentados, a partir dos quais o silêncio é o elemento preponderante. na natureza e na família. 
dessa maneira, na narrativa de “Vidas Secas”, graciliano ramos se utiliza da linguagem para propor uma reflexão sobre a miséria da não-linguagem, característica a partir da qual as personagens se limitam a sobreviver, um dia de cada vez, num processo de morte lenta e irreversível. de modo dissonante ao vivenciado pelos personagens de “Fontamara”, em que ignazio silone apresenta a resistência pela vida, um dia de cada vez, num processo de distanciamento da morte, que, se acontecer, será violenta. mas também esvaziada de linguagem. 
duas obras, portanto, representativas da literatura enquanto testemunho e do potencial da linguagem para refletir o quanto justamente a ausência dela impacta na (sobre)vivência do ser humano. de modo que o mais marcante nos romances de silone e graciliano é o cuidado dos autores em explorar a ingenuidade do camponês e sertanejo, em apresentá-los ao leitor compostos de incompletude, fragilidade e mesmo assim desejo por uma vida melhor. e as descrições dos autores nessas duas narrativas conduzem o leitor por uma linha do tempo memorialista e atual, cuja força reside na resistência pelo corpo – dos cafonis, dos fabianos e famílias – ou pela palavra – dos ignazios e dos gracilianos. ambas representativas daquilo em que acreditava e produzia também lima barreto: a arte enquanto fenômeno de representação e, quiçá, transformação social.
 
ítalo puccini

domingo, 7 de junho de 2020

as putas de rosa

também vermelhas
marrons
amarelas
alaranjadas
camuflam-se entre
a vegetação mineira

rasgam os gerais
proíbem a paixão
e a saudade
descartam os corpos
já suados
e solitários

e entram em igrejas
vestidas de quilos de ouro
onde adoram ao corpo de cristo

em um só nome
os vários amantes

ítalo puccini