quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Entre o encanto e o incômodo durante uma leitura


     Às vezes eu me incomodo por me incomodar com trechos e expressões, em livros, músicas ou filmes, que a mim soam como verdadeiros clichês – mesmo concordando com o Bóris (sim, de novo ele) na ideia de que às vezes um clichê é a melhor forma de expressar algo. Eu não sei se isso é chatice, se é criticidade em excesso, se é não sei o que é. Mas me incomodo, é fato.
     Há uma história que considero belíssima – com uma penca de escorregões que me assustam. Escrita pelo espanhol Jordi Sierra i Fabra, “Kafka e a boneca viajante” parte de um fato real envolvendo o escritor Franz Kafka para alcançar uma criação literária que destaca o encantamento que a palavra pode exercer (ou ter).
     Segundo Dora Dymant (então esposa de Kafka), um ano antes de morrer, seu marido, passeando pelo parque de Steglitz, em Berlim, deparou-se com uma menina chorando porque havia perdido sua boneca. Para acalmar a garotinha, Kafka disse que a boneca fora viajar, e que ele sabia disso porque era um carteiro de bonecas, que inclusive já tinha uma carta de Brígida (o nome da boneca da menina) para entregar a Elsi. E assim pelos dias seguintes, Kafka se encontrava com a menina no parque e lia a ela as cartas que Brígida lhe enviava, de todos os cantos do mundo.
     Jordi Sierra i Fabra recria neste livro estar cartas, que se perderam por aí. E constrói uma narrativa que envolve o leitor, com um mistério fino nos curtos capítulos, estes que são pensados cuidadosamente, tornando-se elemento de diálogo para a leitura: “Primeiro sonho: a boneca perdida; Segunda fantasia: as cartas de Brígida; Terceira ilusão: o longo percurso da boneca viajante; Quarto sorriso: o presente”. Dentro destes quatro capítulos, cada texto é uma letra do alfabeto.
     Não é fator determinante para a compreensão da história saber que Kafka não teve filhos e não desejava isso, mas é algo que aparece muito no texto da história, assim como referências a este como lidar com um universo infantil que de repente surge diante de si.
     Também, é possível se deparar com trechos que clareiam o quanto a literatura e o trato com as palavras podem transformar um ser humano. Primeiro, como eternidade: “Um dia, quando ela deixar de lhe escrever, nós duas vamos saber que nunca chegaríamos tão longe uma sem a outra. Viveremos cada uma na memória da outra, e isso é a eternidade, Elsi, porque o tempo não existe para além do amor”. Segundo, como necessidade: “A infância é o tempo de acreditar em bonecas. É na infância que existem os finais felizes. Mas são muito mais necessários na maturidade os carteiros capazes de receber cartas que só um louco é capaz de escrever”.
     Mesmo com esse caminho de bom texto, levo sustos a cada releitura que faço, ao me deparar com frases como: “Bonita como a primavera da vida”; “Quando a vida floresce, tudo são janelas e portas abertas”; “A pena voava com muito mais liberdade e as palavras tinham se encadeado como uma longa trança de emoções e sentimentos”. Frases que me levam mais a temer metáforas do que a apreciar tal figura de linguagem. Como leitores que somos, acabamos por marcarmos nossas leituras com aquilo que já lemos. Óbvio. Continuarei me incomodando, parece-me.

Ítalo Puccini