quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Entre o encanto e o incômodo durante uma leitura


     Às vezes eu me incomodo por me incomodar com trechos e expressões, em livros, músicas ou filmes, que a mim soam como verdadeiros clichês – mesmo concordando com o Bóris (sim, de novo ele) na ideia de que às vezes um clichê é a melhor forma de expressar algo. Eu não sei se isso é chatice, se é criticidade em excesso, se é não sei o que é. Mas me incomodo, é fato.
     Há uma história que considero belíssima – com uma penca de escorregões que me assustam. Escrita pelo espanhol Jordi Sierra i Fabra, “Kafka e a boneca viajante” parte de um fato real envolvendo o escritor Franz Kafka para alcançar uma criação literária que destaca o encantamento que a palavra pode exercer (ou ter).
     Segundo Dora Dymant (então esposa de Kafka), um ano antes de morrer, seu marido, passeando pelo parque de Steglitz, em Berlim, deparou-se com uma menina chorando porque havia perdido sua boneca. Para acalmar a garotinha, Kafka disse que a boneca fora viajar, e que ele sabia disso porque era um carteiro de bonecas, que inclusive já tinha uma carta de Brígida (o nome da boneca da menina) para entregar a Elsi. E assim pelos dias seguintes, Kafka se encontrava com a menina no parque e lia a ela as cartas que Brígida lhe enviava, de todos os cantos do mundo.
     Jordi Sierra i Fabra recria neste livro estar cartas, que se perderam por aí. E constrói uma narrativa que envolve o leitor, com um mistério fino nos curtos capítulos, estes que são pensados cuidadosamente, tornando-se elemento de diálogo para a leitura: “Primeiro sonho: a boneca perdida; Segunda fantasia: as cartas de Brígida; Terceira ilusão: o longo percurso da boneca viajante; Quarto sorriso: o presente”. Dentro destes quatro capítulos, cada texto é uma letra do alfabeto.
     Não é fator determinante para a compreensão da história saber que Kafka não teve filhos e não desejava isso, mas é algo que aparece muito no texto da história, assim como referências a este como lidar com um universo infantil que de repente surge diante de si.
     Também, é possível se deparar com trechos que clareiam o quanto a literatura e o trato com as palavras podem transformar um ser humano. Primeiro, como eternidade: “Um dia, quando ela deixar de lhe escrever, nós duas vamos saber que nunca chegaríamos tão longe uma sem a outra. Viveremos cada uma na memória da outra, e isso é a eternidade, Elsi, porque o tempo não existe para além do amor”. Segundo, como necessidade: “A infância é o tempo de acreditar em bonecas. É na infância que existem os finais felizes. Mas são muito mais necessários na maturidade os carteiros capazes de receber cartas que só um louco é capaz de escrever”.
     Mesmo com esse caminho de bom texto, levo sustos a cada releitura que faço, ao me deparar com frases como: “Bonita como a primavera da vida”; “Quando a vida floresce, tudo são janelas e portas abertas”; “A pena voava com muito mais liberdade e as palavras tinham se encadeado como uma longa trança de emoções e sentimentos”. Frases que me levam mais a temer metáforas do que a apreciar tal figura de linguagem. Como leitores que somos, acabamos por marcarmos nossas leituras com aquilo que já lemos. Óbvio. Continuarei me incomodando, parece-me.

Ítalo Puccini

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

uma conversa. ou uma resenha.


para @philipereira

ou as duas coisas, vá lá.

e começou assim:

@edu_silveira esse 'micróbio do samba', @ita_puccini, é disco muito bonito e um tantão triste, não? há bem mais desencontros do que encontros aqui.

@ita_puccini @edu_silveira eu o estava ouvindo aqui hoje, e me peguei pensando nisso também. em desencontros, mas com batidas tão encontros.

@ita_puccini @edu_silveira não me passa uma ideia de tão tristeza assim, não. parece-me antes uma consciência tranquila dos desencontros.

@edu_silveira @ita_puccini vdd, pq como vc bem disse, a batida é do encontro, um ritmo pra dançar. vc fica rindo do desencontro. acha ele bonito.

@ita_puccini @edu_silveira maravilhoso, bem isso RT @edu_silveira (...) vc fica rindo do desencontro. acha ele bonito.

e continuou assim, aqui, agora.

afinal, "vai que se materializa o meu príncipe dourado, vai que me espera com boas notícias o inesperado", né, calcanhotto? né edu?

Hmmmm, nego do cabelo dourado,
Vamos de conversa. Antes uma risonha do que uma resenha.
o samba é mais um micróbio pra nossa cabeça.

assim nós vivemos a sorrir. e caminhando sambando.

esperando nosso amor eterno. que dure só até quarta-feira.

Vai saber...Ainda não foi aqui que descobri
O que a cuíca é
que pássaro ela era muito antes
se ela chora ou se ri

lembrando que a sua nova namorada é querida, meu bem, mas ela não samba. pai, ela não requebra. aí o azar é seu, sinto muito.

(já reparô?)

Nisso e em outra coisa: pensa que sabe mentir o homem que eu amo. Humpf!

Vai saber... tem de tudo aqui, marchinha de carnaval, samba de barzinho e violão, tem batuque, guitarra, palma com palma.
Só faltou um partido alto, rs.

aqui quem sabe convidemos o chico pr’essa prosa?

Samba do desencontro... que não há quem ‘guente mais lelêzinho
Se bem que há quem ‘guente, sim e goste dum lerê, lero-lero, lorotinha,

Mas isso não é caso nosso. A orgia é nossa, bem, até segunda ordem do acaso.

Quem é que sabe?

Afinal, eu encontrei alguém que só pensa em beijar. Pode se remoer, se penitenciar...

Ah, Esqueça, esqueça, esqueça, esqueça...

ítalo e eduardo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Costumamos achar que o mundo nasce com a gente


Escrevo muito, escrevo para deixar escrito.


            Título e epígrafe do livro “Pena de Ganso”, da Nilma Lacerda – com ilustrações do Rui de Oliveira. Livro que eu reli na última semana. Reli porque tô numas de mais reler do que ler. Porque a gente muda tanto que os livros mudam também, e daí que reencontrá-los é muito bom.
            A história de Aurora encanta. Uma menina que deseja aprender a ler e a escrever, em uma época em que não, meninas não tinham esse direito. O que fazer para ajudar Aurora? Será que ao lermos a sua história acabamos por dar a ela vida e possibilidade de realizar o desejo maior que tinha?
            Como leitores, sabemos que “este não é o melhor dos mundos, mas é o que podemos oferecer a ela”. A escrita não acontece sem tintas e o texto não existe sem um leitor. Uma história também não. Um personagem muito menos. Escrever pode ser solidão. A leitura, na maioria das vezes, também. Mas quando se lê e se escreve, quando se está em contato com algum personagem, jamais se está sozinho.
            “Um mundo em que escrever é um processo muito sofisticado, muito difícil. Ter acesso a isso, em certas circunstâncias, é tão ou mais difícil que o próprio aprendizado”.
            Brotar um texto é fazer nascer um mundo. Presunção? Eu diria que necessária. A vida nunca mais é a mesma depois que se conhece um personagem. Um dia na vida é muito. Uma vida não é brincadeira. Afinal, “o que é que acontece entre a tinta, o dedo da gente e um traço? O dedo da gente pode escolher um caminho, ir andando por ele e deixar registrada a marca dessa passagem”.
            E que venha o leitor para desmarcar tudo, desmontar. Dar novos significados. Fazer doer e arder para curar.

Ítalo Puccini

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Vamos deixar que os lobos falem

Antes, o medo. Aquele que assusta, que trapaceia, que está lá para mostrar o que não deve ser feito. O mau exemplo do personagem que engana uma criança – ou tenta – ou que vai à caça de carne suína. É o lobo de “Chapeuzinho Vermelho”, conto de fadas escrito por Charles Perrout, e é o lobo de “Os três porquinhos”, escrito por Joseph Jacobs. O lobo presente nos contos de fadas mais clássicos, o malvado.
            Agora – nesse mundo contemporâneo e pós-moderno – ele, o lobo, não vem para representar nada. Vem para se apresentar. Ou para apresentar a sua versão das histórias em que ele aparece. É o lobo de “A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho”, escrito por Agnese Baruzzi e Sandro Natalini, e é o lobo de outra verdadeira história, “A verdadeira história dos três porquinhos”, escrito por Jon Scieszka, com ilustrações de Lane Smith.

sábado, 11 de junho de 2011

envolvi-me com o personagem


"é preciso comparar para sentir a distância das coisas" (pedro, personagem)

     foi do livro "a distância das coisas", do flávio carneiro, autor sobre o qual já escrevi aqui. continuo me deparando com livros seus, e continuo me dando o direito de lê-los. e de me envolver com os personagens por ele criados.
     assim me envolvi muito com pedro, um garoto de catorze anos que perdeu o pai quando era criança e a mãe quando estava na fase de sair da infância e entrar na adolescência. mas a morte da mãe ficou cercada de mistério para o menino, que fora proibido de ir ao enterro e de sequer chegar perto do túmulo dela. algo que muito o deixou encucado. e, garoto esperto e ativo como era, pedro foi atrás desse mistério.
     é dessa forma que não há como ler a história de pedro sem se envolver com ele. sem se colocar ao seu lado para ajudá-lo a descobrir o que de fato aconteceu. e não há, nesse movimento de interação, como não se apaixonar por pedro, garoto inteligente e sensível no modo de ver e de viver a vida. o leitor aprende muito com pedro: "a verdade é que nosso cérebro não dá conta do arco-íris". 
     conhecer a história de pedro é sentir que a gente não dá conta da vida. e que na verdade não precisamos dar conta dela. seria exigir demais de nós mesmo tal pretensão. assim como sobre a memória não conseguimos ter controle - pedro nos lembra disso - com a vida é a mesma coisa, porque "assim como há vários escuros dentro da noite, há vários claros dentro do dia". a gente só precisa se permitir a um olhar diferente: "Ela começou a rir. Eu também. Não tinha tanta graça, mas acho que a gente estava precisando rir, mesmo que fosse de uma coisa boba".
     tipo da vida, assim.

ítalo puccini

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Linguagem de quem conversa com o leitor

Ao final da narrativa de “Jorge, um brasileiro”, o narrador-personagem declara: “E digo para você que não gosto mais nem de me lembrar dessas coisas, e só me lembro mesmo, quando alguém chega e a gente fica batendo papo”.
Jorge narra suas aventuras como se estivesse batendo papo, o que torna necessário um interlocutor, um leitor, que se prontifica a ouvir desde a primeira frase do romance: “Eu estava com uma fome que vou contar para você”, “Pois é, meu amigo, a coisa é assim (...) Está entendendo?”. A narrativa, assim, baseia-se na oralidade, que não favorece a sutileza e a complexidade. Dessa forma, o romance fica estruturado sem divisões em capítulos, com o texto sendo muito ágil, ligeiro para o leitor, com um ritmo contínuo, apresentando uma linguagem simples.
“Jorge, um brasileiro” é uma história oral de um viajante que tem muito a contar ao seu ouvinte/leitor. Jorge narra suas aventuras com base em suas próprias experiências, na vivência do dia a dia das estradas por onde rodou. Uma narrativa tendo como fio condutor uma história principal que abre para histórias secundárias. Como uma avenida que recebe ruas transversais.
O uso de frases longas, de muitos relativos e de muitas conjunções são exemplos de como o livro se utiliza de uma linguagem que remete à oralidade. As pausas de respiração apresentam a característica de quem fala, e não de quem escreve. Narrado em primeira pessoa pelo personagem principal Jorge, o livro conta as aventuras deste caminhoneiro. E conta como se estivesse falando in loco com seu interlocutor, seu ouvinte e/ou leitor. Esta é uma característica muito considerada no romance, que lhe rendeu o Prêmio Walmap de 1967 (O livro ainda deu origem ao seriado de televisão “Carga Pesada”, e recentemente foi transformado em filme de grande produção, com direção de Paulo Thiago, tendo nos papéis principais os atores Carlos Alberto Riccelli, Dean Stockwell, Paulo Castelli, e as atrizes Denise Dumont e Glória Pires).
Conforme é escrito por Antônio Olinto no Prefácio da obra, “É com essa espécie de sabedoria do narrador que finge dirigir-se a uma só pessoa – e pode dirigir-se a muitas – que Oswaldo França Júnior conta as andanças de Jorge. A história vai do começo ao fim de uma só vez. Não há divisões de capítulos nem retenção do fluxo da narrativa. Sem parar, o narrador começa a falar (a impressão do leitor se fixa mais no estar ouvindo do que no estar lendo) e, falando, chega, quase no mesmo fôlego, ao término do que tinha a dizer. O narrador fala para cada um, chama esse cada um de ‘você’, interrompe um caso e, como acontece nos relatos orais, parece ter perdido o fio da meada (e o leitor-ouvinte pensa que ele não mais conseguirá reatar a corrente da estória), mas volta ao caso anterior, às vezes, sem haver terminado o que se intercalara (e o leitor-ouvinte torna a achar que, desta vez, o caso do meio é que ficará sem fim). Depois de muitas veredas de estórias, porém, de muito caso puxa-saco e de uma série de considerações intermediárias, o narrador fecha o romance com extraordinário senso de completidão sem, contudo, encerrá-lo por completo”. 
           Neste romance, Oswaldo França Júnior apresenta ao leitor o universo dos motoristas de caminhão, suas máquinas, as distâncias que precisam percorrer, as paradas, as distrações no meio do caminho, os infortúnios de toda viagem. E tudo isso é contado de modo muito digno e sincero. “Trata-se da confidência em voz alta, confidência democratizada, que fala de experiências vividas e deseja colocar o outro, que a ouve, em contato claro e aberto com uma realidade não mais presente”. É apresentado ao leitor um Jorge, sim, brasileiro. De um Brasil que se descobre à medida que se lê. De um Brasil dos motoristas, que se conhece à medida que se viaja.

Ítalo Puccini

segunda-feira, 23 de maio de 2011

"tudo é amrik"


O mais interessante ao ler e estudar "Amrik", da Ana Miranda, é saber que a autora nunca esteve no Líbano, embora seja casada com um descendente de libaneses, o sociólogo Emir Sader. Segundo as palavras da mesma, “Este livro surgiu como uma homenagem a meu marido, Emir Sader, que é filho de libaneses. (...) Foi uma tentativa de conhecê-lo melhor, através de suas raízes”. 
A escrita leva a um conhecer-se que extrapola sentidos. Isso é muito natural a quem escreve. E a quem lê, parece-me. 
No final do século XIX, muitos cristãos libaneses pobres emigraram para a América – Amrik, em libanês. Mas nada era simples. "Os libaneses saíam do Líbano, pensavam que estavam indo para a América do Norte [...] e desembarcavam na América do Sul. Quando iam reclamar que estavam na América errada, o estafeta dizia: 'Tudo é América!'". A São Paulo do final do século passado retratada pelos olhos de uma dessas imigrantes – a bela Amina, dançarina "dona de um narizinho de serpent of the Nile".
No Jardim da Luz, em São Paulo, final do século XIX, o imigrante libanês cego Naim Salum pergunta à sobrinha Amina se aceita casar com o mascate Abraão. A pergunta lança a dançarina num mergulho em suas lembranças, desde a infância no Líbano, quando a avó a ensinava a dançar no teto de casa, até sua imigração para a América – Amrik – e a chegada ao Brasil.
A história de Amina é contada numa linguagem que floresce das partes profundas da mente. Dividida em 11 partes, apresenta-se ousada, livre, tecida com antigos poemas árabes, imagem das Mil e uma noites, receitas da cozinha libanesa, canções, fábulas, sons, ritmos, crenças, livros de delícias e prazeres.
A pontuação das frases ditas pelos personagens é bastante marcada pela oralidade, algo que também pode ser observado no uso de onomatopeias: “Tenura cantava na cozinha e tilintava suas pulseiras tlinq tlinq tinqlqlql”; “E depois do maldito casamento o Abraão sumiu desapareceu virou fumaça shshshshsft”.
Ao iniciar a leitura do livro, o leitor se depara com uma epígrafe no mínimo inquietante: “Ser livre é, frequentemente, ser só”. Verso do poeta inglês W. H. Auden, esta frase, isolada numa página, abre para leituras que deixam o leitor na dúvida do porquê dela estar ali, e que, a cada página, a cada detalhe a mais que se conhece de Amina, entende-se. Entende-se a frase e entende-se a personagem. Uma personagem que busca a liberdade desde o começo, mas que sofre com a solidão que acaba vivendo nessa busca. Ao final, Amina cede a um estar-acompanhada, mesmo que seja de alguém por quem ela não nutre grande amor. Sua grande paixão, Chafic, ela não consegue alcançar. E entre continuar livre, mas só, prefere a companhia de alguém. 
A história de Amina pode ser, sim, a história de muitas pessoas na luta da liberdade contra a solidão. Acredito muito que sim. 

Ítalo Puccini

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Tornando história aquilo que era só memória


Em sua primeira coletânea de contos, Milton Hatoum expõe sementes de histórias que apresentam uma diversidade – a primeira visita a um bordel em 'Varandas da Eva'; uma passagem de Euclides da Cunha em 'Uma carta de Bancroft'; a vida de exilados em 'Bárbara no inverno' ou 'Encontros na península'; o amor platônico por uma inglesinha em 'Uma estrangeira da nossa rua' – ao mesmo tempo que uma singularidade: apresentam-se como frutos do acaso e da biografa pessoal. E é dessa forma que o autor trabalha com temas aparentemente comuns, tendo como cenário sua velha Manaus de rios e turistas estrangeiros. Assim são construídos contos repletos de silêncios e sutilezas, exigindo um leitor atento e participativo.
     Milton Hatoum nasceu em Manaus/AM em 1952. Estudou arquitetura, e ensinou Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Estreou na ficção com Relato de um certo Oriente, publicado em 1989 e vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance do ano. Seu segundo romance, Dois irmãos (2000), mereceu outro Jabuti e foi traduzido para oito idiomas. Com Cinzas do Norte (2005) Hatoum ganhou os prêmios Jabuti, Bravo!, APCA e Portugal Telecom. Em 2008, publicou Órfãos do EldoradoA cidade ilhada é sua primeira coletânea de contos. Atualmente, é colunista do Estado de S. Paulo e do Terra Magazine.
         Em todos os contos de "A cidade ilhada" há a referência a Manaus, cidade de Hatoum. No conto “Uma carta de Bancroft”, por exemplo, ela se faz presente quando o narrador-personagem conta ter encontrado na biblioteca de Bancroft uma carta inédita do escritor brasileiro Euclides da Cunha sobre Manaus: “Encontrar essa carta inédita em Bancroft, com a caligrafia nervosa de Euclides, é quase um milagre. Mas, para onde vou, Manaus me persegue, como se a realidade da outra América, mesmo quando não é solicitada, se intrometesse em espiral do devaneio para dizer que só vim a Bancroft para ler uma carta amazônica do autor d’Os sertões. Mas há algo nessa missiva além dos reclamos contra o calor de Manaus. A linguagem de Euclides – barroca, sinuosa, exuberante – está presente do início ao fim”.
          Segundo palavras do autor, sobre o livro, “A Cidade Ilhada é um livro de passagem. O primeiro conto ("Varandas da Eva") é um vocativo aos anos 60 e o último conto ("Dançarinos na última noite") se dá 35 anos depois do primeiro, quando a cidade passou por uma violenta industrialização e já anuncia o que vem adiante. Neste último, me inspirei na Terpsícore, musa da dança. A Cidade Ilhada é um arco temporal de alguém que viajou, morou em muitos lugares, feito de narradores nômades. O fato é que não houve interrupção. Não comecei a fazer um livro de contos após romances. Esse livro reuniu contos escritos durante 20 anos. Seis contos que estão neste livro eram inéditos em português. Todos foram reescritos para essa edição. Estou muito feliz porque o meu livro Dois Irmãos, um romance,  está chegando ao patamar de 100 mil exemplares. E vários títulos estão sendo traduzidos. Tudo o que um autor quer são bons leitores”.
            No conto “A natureza ri da cultura” há uma referência clara ao nome do livro, quando o narrador-personagem pergunta ao professor Delatour o que o levara àquela “cidade ilhada, talvez perdida?”. E neste mesmo conto tem-se a presença de um pensar sobre línguas nativas, quando o mesmo professor refere-se a um personagem estudioso dessas línguas: “Verne pensa que pode promover a cultura indígena elaborando cartilhas bilíngues. É um equívoco: não se pode dominar totalmente um idioma estrangeiro, porque ninguém pode ser totalmente outro. Um deslize no sotaque ou na entonação já marca uma distância entre os idiomas, e essa distância é fundamental para manter o mistério da língua nativa”.
Assim Milton Hatoum apresenta sua cidade, Manaus, sua infância, e a escrita: “Tive a sorte de nascer e morar numa cidade portuária, onde não faltam novidades nem aventuras ou casos escabrosos. Além disso, os membros da minha tribo manauara, amigos, parentes e vizinhos não eram figuras de uma natureza-morta. Histórias que vinham de todos os lados, de minha casa, da vizinhança, do porto, dos bordéis-balneários e até da casa do arcebispo. Quando penso na minha infância e juventude, percebo que foi a época em que vivi com mais intensidade, dia e noite. Havia tudo, inúmeras peripécias e também a política, pois meus tios participavam da vida política, que era mais um assunto doméstico. Aos 15 anos saí sozinho e fui morar em Brasília, isso em 1968. E depois morei em São Paulo e fora do Brasil, o que foi importante para minha formação. Chegou um momento em que fiz uma pausa e comecei a escrever sobre esse passado. Mas não queria escrever qualquer coisa, me debrucei no trabalho, na forma do texto, na construção dos personagens”. 
O leitor se depara neste livro de contos do escritor amazonense com referências autobiográficas entranhadas nas histórias de outros personagens. Há uma busca pelos fatos do passado. Na maioria dos contos um fato presente leva os personagens a vivências já sentidas, que marcam fundo. É quando a escrita se faz presente pela voz de alguém que narra, tornando história aquilo que era só memória. Hatoum nos ensina isso.

Ítalo Puccini

quarta-feira, 11 de maio de 2011

leituras que marcam

sexta-feira passada dei minha última aula no colégio de jaraguá do sul em que lecionava literatura desde 2007. os colégios em que agora leciono são outros. os alunos são outros. os trabalhos desenvolvidos são outros. as leituras - de mundo e de livros - são outras. nem melhores nem piores. apenas outras. e o que mais marca a mim nesses anos são os livros lidos com aqueles alunos. fica muito claro como uma leitura é sempre uma nova leitura a cada vez que é feita. porque um mesmo livro eu li, por exemplo, com quatro diferentes turmas, em quatro diferentes anos. e em cada leitura era um novo livro para mim. e para eles, claro. e você jamais vai contribuir para a formação de um aluno leitor sem ler com este aluno. a preposição é mais "com" do que "para". e o imperativo do verbo ler pouco deve constar nessa mediação. é preciso ler junto, não mandar ler. e era isso o que eu mais fazia com aquela guriada. que no começo sentiu bastante a diferença. o não estar acostumado a ler em sala foi um empecilho. mas quando a prática é feita com gosto, com paixão, ela contagia. e agora eu saio de lá e ouço e leio de alguns alunos dizeres como este: "vou sentir falta é de suas leituras". e eu não preciso de mais nada para tocar a vida em frente com a sensação de que algo foi bem feito nesse trajeto. com a certeza de que alguém se encantou com "os meninos da rua paulo", ou com o "as aventuras de robinson crusoé". que alguém entrou na história do "sofá estampado", ou da "flauta mágica", ou do "cadáver na banheira". que alguém se permitiu conhecer "o espelho dos nomes", "moby dick" e "de repente, nas profundezas do bosque". que alguém correu atrás do "diário de anne frank" após ler apenas alguns trechos em sala. até que chega um momento em que os livros pedem novos leitores. às vezes partem em busca disso. ou são levados para. e eu sou um levador de livros. assim despeço-me desses alunos-leitores.

ítalo puccini

sábado, 30 de abril de 2011

Histórias que eu ouvi e gosto de contar

O universo indígena é habitado por muitas histórias. São todas bastante vivas, porque reais. (MUNDURUKU, Daniel)

            O título deste escrito é também o nome de um dos livros do escritor Daniel Munduruku, autor de “Parece que foi ontem” e “Do mundo do centro da Terra do mundo de cima”, entre outros, todos livros que apresentam como temática mitos e lendas indígenas.
            É sabido que a prática de contar e de ouvir histórias é muito mais antiga do que podemos imaginar. Remete a nossos ancestrais mais primitivos. Muito antes da invenção do papel ou do livro ela já se fazia presente, deixando marcas culturais em diferentes épocas, registrando fatos e causos, ainda que por um tempo determinado, uma vez que a história oral não garante a eternidade do que é contado (se pensarmos bem, nem mesmo as histórias impressas, no ritmo de produção, de publicação e de consumo que temos hoje, garantem isto).
            Na cultura indígena, por exemplo, a maior felicidade alcançada pelos homens é a de ser avô, pela oportunidade que se apresenta a eles de contar histórias, muitas histórias, a seus filhos e netos. A oralidade é marca importantíssima nesta cultura, mas não só ela. A quantidade de livros que vem sendo publicada contando ou recontando mitos indígenas sugere a preocupação que existe na divulgação e no alcance dessas histórias através de outros meios.
            Daniel Munduruku é indígena. Nascido em Belém(PA), índio da nação Munduruku, “nasceu índio e gosta de ser índio”, conforme é apresentado em seus livros. É formado em Filosofia pela UNISAL – Lorena, e é diretor-presidente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual – INBRAPI, cujo objetivo é a defesa do patrimônio cultural e dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas brasileiros.
O escritor indígena com maior repercussão atualmente é autor premiado de muitos livros com histórias que apresentam ao leitor mitos e lendas do universo indígena, como “Coisas de índio”, “As serpentes que roubaram a noite” e “O segredo da chuva”. Mitos e lendas porque lenda é a forma como o mito é contado. Toda lenda apresenta um mito. Mas nem todo mito é apresentado por uma lenda. Lenda vem do latim legere, que significa ler. Mito é palavra grega que significa discurso, oralidade. No mito existe a busca de um porquê para a vida, que muitas vezes é contado em uma lenda.
            E aqui se apresenta ao leitor o recontar. Porque um mito pode ser contado e recontado de diferentes formas, diversas vezes. Para o mito de como surgiu a noite, por exemplo, Munduruku apresenta dois livros, citados no primeiro parágrafo deste escrito. Conforme conta a Clarice, em “Como nasceram as estrelas”, “Sempre, é uma história que não acaba nunca”.
            Para construir é preciso, antes, desconstruir. Pensar mitos e lendas pode ser seguir esse caminho da reconstrução. Do reconto. É isto que faz perpetuar histórias por gerações. A história é manutenção de vida das/nas coisas. A história é construção de identidade de um povo. A perda de identidade é parte do processo de morte de uma cultura. Diante disso, precisamos, como leitores e professores, dos contos e de seus recontos. Dos mitos e das lendas. Das diversas formas de perpetuarmos histórias e vidas. Histórias de vidas. Isto porque contar histórias, todos contamos. E, ao contarmos histórias, contamos a nós mesmos.
Minha lida com o texto literário – como leitor e como professor – é o de pensá-lo sempre como uma possibilidade de ressignificação. Junto ao texto literário é preciso que o aluno reconstrua. E para reconstruir é preciso, antes, que o texto seja destruído pelo leitor. Ou seja, objetivo que meu aluno produza sobre o texto que lê, construa seus sentidos para o que está lendo, ressignifique o texto com o qual está em contato. Literatura precisa ser contato. Toda leitura precisa ser um contato. Não contato no sentido físico exatamente. Mas contato no sentido de tocar em algo, produzir algo novo a partir desse novo toque, uma vez que nos ressignificamos o tempo todo, pelo simples fato de vivermos uns com os outros.
São vidas com as quais nos deparamos nas histórias da cultura indígena e também nas histórias sobre passarinhos, por exemplo. São vidas diferentes? Claro que são. Cada vida é uma vida. Mas a diferença não reside só nisto. Reside no modo como são contadas. O Bartolomeu Campos de Queirós, por exemplo, conta que

Para bem criar passarinhos é necessário ter o corpo capaz de escutar o silêncio das pedras, o som do vento nas folhas, o ruído de soluços preso em garganta. (...) Para bem criar passarinho há que se sonhar borboleta, anjo ou estrela cadente. É importante ter imensas intimidades com o nada, admirar o vazio e um especial encantamento pelo azul que existe muito depois das nuvens, infinito adentro.

Já o Marcos Bagno não conta sobre passarinhos, mas sim sobre corujas. Ou, mais especificamente, sobre Murucututu, a grande coruja da noite, que é “mais que grande, enorme. Seu gemido ecoa pela noite, Murucututu, arrepiando os corações de quem se atreve a escutar”.
É a avó quem conta para a sua neta a história de Murucututu, com a intenção de frear os avanços da menina na descoberta do mundo. Mas esta neta não temia nem o mundo nem as histórias: “Achava bonito só pela beleza de ser história, lenda, conto, fantasia de miragem mirabolante. Mas acreditar, ela, isso mesmo é que nunquinha”.
            Talvez porque contar histórias seja compor os silêncios sugeridos pelo Manoel de Barros. Os silêncios que cada um traz dentro de si para compartilhar ao contar e ouvir uma história. Porque há silêncios que falam. E aprendendo isto a gente aprende o que ninguém nunca soube. Adivinha mistérios. Sente de longe o cheio de algum segredo. E até consegue enxergar no escuro. Como faz a personagem que avoa com Murucututu.
            Contar histórias pode ser também fazer voar as palavras para encontrar seus silêncios a serem compostos.

Referências Bibliográficas

BAGNO, Marcos. Murucututu: a coruja grande da noite. Ilustrações Nelson Cruz. São Paulo: Ática, 2005.

LISPECTOR, Clarice. Como nasceram as estrelas. São Paulo: Nova Fronteira, 1999.

MUNDURUKU, Daniel. Histórias que eu ouvi e gosto de contar. Ilustrações: Rosinha Campos. São Paulo: Callis, 2004.

MUNDURUKU, Daniel. Parece que foi ontem. Ilustrações: Maurício Negro. São Paulo: Global, 2006.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Para criar passarinhos. São Paulo: Editora Global, 2009.
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Ensaio produzido para o PROLIJ - Programa Institucional de Literatura Infantil Juvenil da UNIVILLE. 

Ítalo Puccini

domingo, 24 de abril de 2011

metapoema


ontem sonhei outra vez com o decote seu uma parte isolada de ti separada mesmo assim ele se apresenta a mim tenho-o como um objeto inalcançável talvez intocável algo que se alcança com o olhar ou com uma ideia deste olhar mas não com o toque nunca com o toque

[como aquele poema mais marcante daquele livro de poesias em que você rasga a folha guarda-a consigo mas somente o alcança – o poema – através da leitura que dele faz até que ele se torne parte corpórea sua e então você não precise mais nem lembrar de onde você o roubou]


ítalo puccini

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Um fio de esperança


Mais uma guerra sem razão
Já são tantas as crianças
Com armas na mão
Mas explicam novamente
Que a guerra gera empregos
Aumenta a produção...

Uma guerra sempre avança
A tecnologia
Mesmo sendo guerra santa
Quente, morna ou fria
Prá que exportar comida?
Se as armas dão mais lucros
Na exportação.

(Canção do Senhor da Guerra, Legião Urbana)

            A produção mais recente das três abordadas neste ensaio é de autoria de Marjolijn Hof, escritora holandesa. Seu livro, aqui no Brasil traduzido com o título de “Um fio de esperança”, publicado em 2010 também pela Editora Martins Fontes, coloca diante do leitor a história de Lili, uma menina que sente na pele a agonia da espera por alguém que partiu para guerrear, com ou sem manual à disposição.
            Mesmo tendo aprendido com seu pai que acidentes acontecem em qualquer lugar, Lili narra o livro deixando claro que entre a teoria ensinada pelo pai e a prática de senti-lo longe, sem notícias frequentes, e exposto a um ambiente de guerra, fica um fio de esperança de que acidente nenhum aconteça, ainda mais devido à atividade que seu pai realizava por lá: “Meu pai ia para a guerra. A bagagem já estava pronta, só faltava dizer tchau. Ele ia bastante para a guerra. Pelo menos uma vez por ano. Em geral, as pessoas fogem da guerra como o diabo foge da cruz, mas meu pai ia lá para trabalhar. Ele é médico humanitário: no campo de batalha, precisam de gente como ele. Ele gostava muito de ser útil”.
            É assim que começa o livro. Com esta apresentação, escrita por Lili, de seu pai. E a narrativa segue em primeira pessoa, com a garotinha contando ao leitor que seu pai vive indo para a guerra, e que sempre volta. Mas dessa vez ela parece sentir que este ir e voltar não será tão simples. E tenta de todas as formas convencer seu pai disso: “(...) preferia que ele ficasse conosco. E as balas perdidas, então? São mais perigosas que os soldados, porque só fazem o que lhes dá na telha. Vão para onde bem entendem e ninguém dá bola para elas.
            - Balas perdidas não existem – disse papai.
            - Existem sim!
            - Não se preocupe, eu nunca vi nenhuma!
            - O dia em que você vir uma, será tarde demais – respondi”.
            E as conversas assim diretas continuam. Agora entre Lili e sua mãe. E é a partir de uma dessas conversas que a menina decide querer ter um ratinho, além de Mona, a cachorrinha da casa. Isto porque, pensa Lili, a probabilidade de ter um pai morto, um cachorro morto, e um rato morto eram muito menores do que ter somente o pai morto. Assim, ela evitava que acontecesse de ficar sem pai, porque as chances se tornariam muito menores.
            É com essa sensibilidade que o leitor se depara no decorrer desta história. É um deparar-se aliado a uma entrega. Um não querer mais desgrudar de Lili e de seus pensares e de suas ações tão inocentes ao mesmo tempo que tão sensíveis diante de um mundo que lhe apresenta o oposto do que ela pratica.

Ítalo puccini

domingo, 10 de abril de 2011

O menino, a guerra e a bola


Que belíssimas cenas
De destruição
Não teremos mais problemas
Com a superpopulação...

Veja que uniforme lindo
Fizemos prá você
Lembre-se sempre
Que Deus está
Do lado de quem vai vencer.

(Canção do Senhor da Guerra, Legião Urbana)

            Três palavras como título, excetuando-se os artigos e a conjunção aditiva “e”. Três palavras que apresentam ao leitor, desde o início, o que ele poderá encontrar no livro.  É um título que inquieta. Que segura o leitor. Que não o deixa abrir o livro e folhear as páginas. Ainda não. Antes é preciso pensar que relações se podem estabelecer entre menino, guerra e bola.
            O livro do escritor francês Jean-Baptiste Cabaud, com ilustrações de Fred Bernard, tradução de Monica Stahel, publicado no Brasil em 2009 pela Editora Martins Fontes, encanta desde a capa, ao mesmo tempo em que inquieta. Seduz o leitor para o seu começo. E seduz ainda mais por apresentar na grafia do texto do livro todas as letras “o” em cor vermelha. Fica o leitor, novamente, com a dúvida do porquê é assim. E quando um livro coloca várias pulgas atrás da orelha do leitor é porque ele já cumpriu com seu propósito.
            Ao conhecer a história, então, o leitor entra em uma área disputada por dois grupos rivais. Uma área fria no inverno europeu. Uma área cinza, como toda área de guerra parece ser. Uma área cheia de buracos e de esconderijos, como aqueles em que ficam os dois personagens da história anterior: “Os soldados esperavam ordens absurdas, deitados na lama úmida das trincheiras, tremendo de medo e encharcados. As pessoas que não tinham fugido da zona dos combates se trancavam em casa, apavoradas, sem saber o que fazer para não ouvir os tiros de canhão ininterruptos e para continuar acreditando que sobreviveriam a tudo aquilo”.
            “Mas em todas as guerras há imprevistos”, diz o texto mais para a frente. E eis que o imprevisto surge rolando por um campo vasto. Descendo uma região montanhosa, lá vinha aquela esfera vermelha, “um tesouro frágil e precioso (...). Era um tesouro de couro velho e todo rachado, de tanto que já tinha sido usado”. Era a bola do menino.
            “Então os soldados desviaram os olhos, porque de repente uma voz na colina falou mais alto do que a voz louca. Era uma voz aflita que gritava: ‘Não! Volte! Volte aqui!’ E a voz corria atrás de um menino que corria atrás de uma bola que corria pela colina rumo aos campos de batalha”.
            E o leitor corre atrás da voz que corre atrás do menino que corre atrás da bola. O leitor corre para não deixar sozinho naquele espaço o menino. Porque o leitor, a partir do momento em que lê um texto, dá a este a vida que lhe faltava. A partir disso, então, é preciso cuidar dele e das vidas que dele surgem. Porque toda leitura precisa ser cuidadosa.

Ítalo puccini

sábado, 9 de abril de 2011

O inimigo


Existe alguém
Que está contando com você
Pra lutar em seu lugar
Já que nessa guerra
Não é ele quem vai morrer...

E quando longe de casa
Ferido e com frio
O inimigo você espera
Ele estará com outros velhos
Inventando
Novos jogos de guerra.

(Canção do Senhor da Guerra, Legião Urbana)

       Publicado em 2008 pela editora Cosac Naify, com tradução de Paulo Neves, e ilustrações de Serge Bloch, o livro do escritor suíço Davide Cali se apresenta como um livro que, para ser lido, precisa ser tocado e explorado em todas suas dobras e dimensões. A começar pelas imagens presentes na capa e na quarta capa, com detalhes sutis (com o perdão do pleonasmo) que podem passar despercebidos pelo leitor mais ávido pelo texto escrito. Sem contar, então, a primeira e a última folha do livro, que se tornam uma só com suas respectivas orelhas. As imagens de vários bonequinhos-soldados, repetidos, causa um efeito visual que envolve o leitor antes mesmo dele entrar na história (e fica uma surpresa, para quem ainda não leu este livro, na orelha da quarta capa).
            O texto escrito em si conta uma história narrada em primeira pessoa. Uma história com dois personagens centrais. Quem narra? Não se sabe. Fica a critério do leitor adivinhar ou escolher quem está contando para ele a história de como um soldado aprende a guerrear. Através de um manual de instruções. Um simples manual: “O manual diz tudo sobre o inimigo: devemos matá-lo antes que ele nos mate, porque é cruel e impiedoso. Se nos matar, ele dizimará nossas famílias. E nem assim ficará satisfeito. Matará também os cachorros, depois todos os animais, queimará os bosques, envenenará a água. O inimigo não é um ser humano”.
            O leitor se depara, então, com dois soldados que não sabem o que estão fazendo em seus respectivos buracos. Não sabem o que estão protegendo, nem de quem. Apenas sabem que há um inimigo. E que este inimigo precisa ser morto. Para que uma guerra acabe, é preciso que uma das duas forças seja derrotada. Assim diz o manual. E o que mais querem os dois soldados é o término da guerra. Para isso, então, eles buscam um meio de alcançar o esconderijo do outro.
            É o momento em que os dois soldados percebem que o inimigo presente no manual deles podem ser eles mesmos: “Eu sou um homem, este manual só diz mentiras. Não fui eu que comecei esta guerra! E não vou matar os animais nem queimar os bosques nem envenenar a água, se ele se render!”.
            “O inimigo” se apresenta como um livro. Mas pode também ser um espelho. Um espelho entre os dois personagens, porque o que um diz ou pensa, pode também ser dito ou pensado pelo outro, ou um espelho para o próprio leitor, uma vez que entrar num livro significa se ver dentro e diante dele, encontrar a si mesmo por ali, deparar-se com um consigo mesmo antes desconhecido.

Ítalo puccini

segunda-feira, 28 de março de 2011

do direito de abandonar uma leitura

este é um dos dez mandamentos (que eu prefiro chamar de direitos) do leitor apresentados pelo daniel pennac no seu livro "como um romance". e, se antes eu sentia uma dor em abandonar algum livro, de uns anos pra cá eu faço isso com a maior facilidade. antes mesmo de ter feito a leitura dos mandamentos do pennac. ainda mais levando em conta a quantidade de livros diferentes nos quais entro (literatura como portas, não é, enzo?, não como escadas) semanalmente, como leitor-professor, leitor-pesquisador e leitor-leitor que tento ser. 

o último exemplo de abandono praticado por mim foi com o livro "a confissão", do flávio carneiro. fui até a página 46, dois capítulos inteiros. um de cada vez, um em cada dia. e daí abri mão. cansei fácil, fácil. encantei-me com o personagem-narrador já na primeira linha. mas a história não mudou em nada dali pra frente. ficou aquele personagem-narrador falando, falando, falando, e eu cansando, cansando, cansando. com este livro eu entrei nele, e logo saí. não quis ficar para um chá ou um café, quem sabe, então, depois um vinho. 

ao contrário do que senti ao ler, duas semanas antes, outro livro do mesmo autor. "o campeonato". uma narrativa policial muito empolgante, que me prendeu por quatro horas à cama quando iniciei a leitura. foram quase duzentas das quatrocentas páginas do livro numa deitada só. uma paixão mesmo! dei um tempo nele, e uma semana depois fechei a conta com mais duzentas páginas num tiro só. coisa mais maravilhosa que foi aquela leitura! ao final ainda fiquei com a sensação de que melhor seria não tê-la finalizado. porque o durante foi muito mais gostoso do que o seu resultado final.

semanas antes disso, eu havia lido dois outros livros do flávio carneiro, que além de literatura escreve sobre futebol e sobre teoria literária. (qualquer semelhança com meus gostos...). o livro teórico "o leitor fingido" é um convite a mergulhar nas leituras deste autor. um convite a uma conversa com o leitor flávio carneiro, um leitor muito preocupado com nossos caminhos de formação leitora.

entrem e fiquem à vontade nos livros deste goiano morador carioca.

ítalo puccini

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Sentir com o personagem


    A leitura de "Sinuca embaixo d'água", da gaúcha Carol Bensimon (Companhia das letras, 2009), trouxe-me à lembrança a leitura de "O gato diz adeus", do Michel Laub, que por sua vez me remeteu a outras leituras (aqui).
    O romance de Carol não segue a linha de troca de cartas entre os personagens, mas poderia ser. Cabe ao leitor escolher como o lerá, uma vez que esta estrutura de romance 'fragmentado' - em que os capítulos são curtos e com vozes narrativas diferentes - recorrente em muitas produções literárias atuais, permite ainda mais estes múltiplos caminhos de leitura pelos quais o leitor pode transitar.
     Durante a leitura deste livro, fiquei procurando a(s) voz(es) que conduzia(m) o romance. Isto porque o fato de os capítulos terem como título os nomes dos personagens, em um primeiro momento me levou a lê-los como se fosse cada personagem narrando uma parte da história, com suas vozes narrativas se misturando, e com essa impressão-leitora segui adiante. Mas por muitos momentos sentindo que havia apenas uma voz narrando tudo e às vezes, no meio dos parágrafos, como que migalhas de pão lançadas ao leitor para lembrar o caminho da história, resquícios de vozes dos personagens. 
     Personagens estes abalados demais com a morte de uma personagem que não tem voz no romance, Antônia, mas que se torna o centro de toda a história, pelo fato que lhe acontece antes mesmo do começo do livro, parece ao leitor, que é sua morte em um acidente de carro. É a partir das vozes de pessoas muito próximas a Antônia, que sentem muito sua perda, que o romance se constrói. É a partir deste cruzar de dizeres e sentires - de ausências - que o leitor vai tomando corpo junto à história, aos detalhes muito bem encaixados na narrativa pela autora. A narração do livro parece conduzir o leitor para sentir como sentem os personagens Bernardo, Camilo, Polaco, entre outros. Como se pudesse, o leitor, entrar no corpo, na vida deles. E, sabemos, através da leitura isto é algo muito possível.
    Carol Bensimon é autora de "Pó de parede" (Não Editora, 2008), um livro também dividido, mas não um romance, e sim composto por três histórias diferentes entrei si (aqui). Nos dois livros é possível encontrar um domínio narrativo, uma escrita com um ritmo bastante próprio, que conduz o leitor por caminhos vários dentro da história, transitando pelos personagens e por seus sentires. 
    Neste seu mais recente trabalho, a escrita também repleta de referências artísticas e sociais - contemporâneas e clássicas - apresente, com eficiência, um romance que exige do leitor um gesto de liberdade em não apontar soluções fáceis que aparentemente o texto apresenta, mas sim em estar aberto e atento à narração da(s) história(s) contada(s), sob risco de perder algum fato ou alguma fala que dá luz ao mesmo.

Ítalo Puccini

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

aforismo


toda criança é uma ausência de horário.


ítalo puccini

sábado, 29 de janeiro de 2011

Em terreno desconhecido,

   porque escrever é dar a cara a tapa.




   É por aí que podemos pensar o primeiro livro infantojuvenil do escritor Rubens da Cunha, poeta e cronista, autor de trabalhos muito sólidos e reconhecidos como os livros “Campo Avesso”(2001, Letra d’Água), “Casa de Paragens” (2006, Editora da UFSC), “Vertebrais” (2008) e “Aço e nada” (2007, Design Editora) (os três primeiros de poemas, o último de crônicas). 
  Quando no lançamento do seu novo livro, no final do ano passado, Rubens em nenhum momento negou que passava, a partir daquele momento, a pisar em terreno antes pouco conhecido para ele. A última página do livro deixa claro isto também: “Crônica de gatos é seu primeiro texto destinado ao público infantojuvenil”. E este novo livro do escritor joinvilense pode ser visto como um passo que não estica muito a perna, um passo que mantém os dois pés bastante próximos. Não é um salto. É uma tentativa de dar um passo seguinte mais para frente, com uma segurança necessária para que nenhum tropeço ocorra nesse processo de continuidade. Algo que me parece claro já no nome do livro, “Crônica de Gatos”, uma referência a um gênero com o qual Rubens lida há bons cinco ou seis anos semanalmente no jornal “A Notícia”, de Joinville, que circula por todo o Estado de Santa Catarina, e também uma referência a um animal pelo qual o autor assume predileção, e que também já foi tema de algumas crônicas e de alguns poemas seus.
   Outra evidência do passo curto acertadamente dado por Rubens neste novo trabalho está em um dos elementos que compõem a história contada em “Crônica de Gatos”: o livro. Elemento este de muita segurança para o autor, não só pelo fato de já ter sentido a experiência de publicar quatro livros, como pela relação que ele demonstra estabelecer como os livros enquanto um leitor, algo que pode ser sentido a partir de seus escritos e das referências leitoras presentes em sua obra até o momento.
   Há pouco tempo, em uma entrevista que fiz com Rubens, para meu blog, ele apresentou um pouco mais do leitor que é: “Um sujeito curioso e que se irrita quando o interrompem durante a leitura. Eu gosto de ler tudo, é quase um ato involuntário. Está escrito, eu estou lendo. Mas a preferência, claro, vai para os livros de literatura, sobretudo, poesia e prosa que tenham algum elemento de ruptura com a linguagem, algo que vá além da história, pura e simples”.
   E são os livros que ligam os três personagens deste livro, o narrador e dois gatos. E é por meio dos livros que Rubens alcança uma segurança necessária para se soltar nesse terreno pouco conhecido dele.
   Como em todo terreno que se apresenta novo, por mais cuidado que se tenha, é preciso estar ciente dos sustos que o desconhecido apresentará. E é possível se deparar com alguns sustos no texto do “Crônica de Gatos”. Alguma precipitação na narrativa da história, uma entrega além do que devia, uma palavra fora de lugar que faz brecar a interação do leitor com a história, como para mim aconteceu no momento em que li a palavra “morte”, no meio da narrativa. O próprio trabalho de texto com imagens permite ao escritor não entregar tanto da história ao leitor, deixando este solto o necessário para construir sua significação leitora aliando narrativa e imagens.
  E a partir disso também se faz necessário salientar as excelentes ilustrações do livro, assinadas por Regina Marcis. Um trabalho de colagens que dá ainda mais força ao texto já muito consistente de Rubens da Cunha. Um texto de frases curtas que se complementam pelas brechas que cabem ao leitor significar, tendo o leitor, neste caso, as imagens como elementos adicionais de leitura.
  Rubens acerta em não esticar muito o passo neste novo trabalho. Acerta em mostrar ter ciência de que um escritor constrói sua trajetória não somente por meio dos livros que lê, mas também a partir de um olhar consciente sobre sua própria produção, medindo com cuidado os passos a serem dados, os caminhos a serem desbravados, e os mantimentos necessários para que desses passos e desses caminhos nasçam frutos tão sólidos quanto os já construídos e entregues ao mundo-leitor.

Ítalo Puccini
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resenha publicada no caderno ideias do jornal anotícia, 30.01, página 3.