domingo, 19 de setembro de 2010

entre o presente e a memória: dois romances japoneses

     

     o primeiro que li foi “minha querida sputnik” (2008, editora alfaguara), do escritor haruki murakami. a história de sumire, miu e k., contada por este último. a história, também, de shin'ichi nimura, o cenoura, aluno do professor k. a história contada por este professor.
     há algo de envolvente, sim, neste romance. há uma história, até certo ponto, bem tramada, narrada em primeira pessoa pelo professor k. sendo assim, o que nós, como leitores, sabemos da história, é o que nos conta o personagem-narrador. ou seja, se há outras situações ou olhares para os fatos que acontecem, não sabemos.
     o que há é uma relação de amizade muito forte entre k. e sumire. esta, uma jovem garota com 22 anos, sonhando ser escritora. e há também miu, uma executiva bem sucedida que estabelece com sumire uma relação também muito forte. e, mais para o final, há shin'ichi nimura, o cenoura, aluno do professor, um personagem enigmático na história.
     confesso não ter gostado da forma como “minha querida sputinik” é narrada. não gostei desde o começo. segui em frente para ver até onde iria. fui até o final, mas a narrativa não me convenceu, não. achei-a muito detalhada sem razão de ser. achei-a enrolada demais, com muitas e muitas páginas desnecessárias, que nada acrescentaram à trama. esta sim, a trama, até que é boa, até que inspira no leitor uma curiosidade e um desejo por continuar a lê-la. talvez tenha sido o que me levou ao final do romance.
     pareceu-me um livro estilo best-seller. um livro de fórmula pronta, com trama envolvente, mas que peca demais na maneira como é narrado. como algo positivo é a caracterização dos personagens. há algo que os coloca em relações próximas. há uma solidão escancarada em cada um, e o livro mostra como cada um reage a isto, o que torna interessante, sim, a leitura. não mais que isso. (há outros dois livros do haruki murakami lançados no brasil pela editora alfaguara, de nomes "após o anoitecer", de 2009 e "kafka à beira-mar", de 2008. 



     já o outro romance de autor japonês que li, “quando éramos órfãos” (2000, companhia das letras), de kazuo ishiguro (autor também de "noturnos", 2010, companhia das letras), considerei extremamente bem escrito. uma narrativa construída em detalhes precisos. um livro com mais páginas que “minha querida sputinik”, e sem nada da enrolação daquele. muito pelo contrário. além de ser muito bem tramado, deixando pistas pelo caminho ao leitor, conduzindo este leitor para um quê de mistério nas últimas cem páginas, prendendo o leitor a este final que se aproxima, a forma como esta história é narrada é encantadora. há um cuidado na narração em primeira pessoa que impressiona.
     esta narração é feita por christopher banks, um garoto que se criou inglês, mas que nasceu em xangai, no início do século xx. o narrador vai deixando pegadas, marcas ao leitor, para que este compreenda que a forma como cristopher narra sua história é guiada pura e simplesmente pela memória, o que significa também dizer, pelos buracos que toda memória deixa. diante disso, pois, o leitor tem à sua frente uma história que se permite linear somente até onde a memória do personagem-narrador permite que ela seja.
     assim sendo, a construção do romance em sete partes, com marcação de lugar e de data como títulos destas partes (por exemplo, “parte um: londres, 24 de julho de 1930), ajuda o leitor a acompanhar o desenrolar dos fatos da vida deste personagem que aos nove anos se vê órfão – com todo o mistério que necessariamente cerca um fato deste para uma criança desta idade – e passa a viver na inglaterra, aos cuidados de uma tia. esta mesma criança que quando adulta se tornará um detetive muito famoso e prestigiado na alta sociedade inglesa da época, e que, apesar de todo o prestígio tão sonhado e alcançado, se vê preso ao seu passado, ao local de vivência de sua infância, aos seus pais desaparecidos, e que por isto se vê voltando a xangai justamente no período de uma guerra sangrenta entre china e japão, a década de 30. é sob este fundo histórico que os mistérios da infância de christopher começam a ser apresentados ao leitor.
     leitor este que se sente quase que íntimo de christopher diante da narração tão velada, tão cuidadosa que este personagem faz de sua vida. é isto o que mais marca em “quando éramos órfãos”. uma narrativa que se entrega abertamente aos desvãos da memória, ao poder do passado de determinar o presente e o futuro das pessoas, à impossibilidade de se narrar tudo o que se quer, por mais que se queira.

ítalo puccini