sábado, 29 de agosto de 2009

arrebentou

     tava namorando há um tempo o livro “rasif, mar que arrebenta”, do marcelino freire. via muitas vezes o livro disponível lá no sesc, mas não o pegava. pelo contrário, emprestava-o aos leitores que passam por lá. e, de tanto ouvir falar bem dele, ontem resolvi encará-lo. e foi das surpresas mais maravilhosas!
     é um livro muito bonito, esteticamente falando. edição da record, 2008, de capa dura, e com gravuras muito bem feitas por manu maltez (já é possível perceber pela gravura da capa). não é um livro de se ler só pelas histórias que apresenta. é um livro de se sentir, de tocar e tocar, e correr as mãos por todos os espaços dele.
     a explicação do nome do livro vem logo nas primeiras páginas, depois da ficha de catalogação. diz assim: “recife. s.m. um ou mais rochedos no mar, à flor da água, ou perto da costa. do árabe rasif, terreno pavimentado com lajes, estrada pavimentada com rochedos. pernambuco. s.m. do tupi-guarani paranã-puca, que significa ‘onde o mar se arrebenta’”.
     “rasif” é um livro de contos. com uma linguagem bem trabalhada, cuidadosa, transgressora. são de contos que escancaram a vida em sua forma mais pura e cruel. assim mesmo, contraditoriamente: purismo e crueldade. que é a vida. em “rasif”, as personagens de marcelino freire não querem saber de oferendas falsas a falsos deuses/mitos, não querem saber da paz, “essa coisa de rico, que é bonita na televisão, e só, que causa a dor, e que não deixa”. elas querem saber dos homens-bomba e seus amores impossíveis, querem saber do que há de bonito no afeganistão, em bagdá, em mesquitas e na “al-quaida”. querem saber dos revólveres em mãos de crianças, e ainda trazidos pelo papai noel. e, como não poderia deixar de ser, as personagens dos contos desse livro buscam o amor, acima de tudo o amor, “amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa. Como todo grande amor. A sua marca”. o que não significa que o encontram. muito pelo contrário. afinal, o amor também mata. e pode vir mascarada em um buquê de flores.

ítalo puccini

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

sobre como ler e escrever em um ônibus em movimento

      título longo, mas fazer o quê, se aqui escrevo justamente sobre o que ali prenunciei.
      ia eu hoje para a univille, de ônibus, daqueles circular mesmo, pois havia passado o dia em joinville, na casa do pai. e ia eu lá no fundo do ônibus, sentadinho, com meu livro à mão, o "rilke shake", da angélica freitas, sobre o qual tem alguma coisa no post abaixo.
      e, como é possível perceber lendo o tal post abaixo, encantei-me com vários dos versos do livro da angélica. e me vi numa situação complicada. tinha a lapiseira à mão, junto com o livro, mas eita dificuldade que encontrei em sublinhar um ou outro verso, ou em destacar um trecho, ou em escrever algo no livro, registrar algum sentido.
      daí que me dei conta do quanto é difícil escrever com um ônibus em movimento. vixe!
     lembro-me de que outras vezes já tentei isto, e, claro, também sem sucesso. restou-me, então, segurar o dedo na página em que queria marcar algo e, a cada sinaleiro ou parada do ônibus, eu rápido fazia a sinalização que queria no livro, e podia continuar a leitura. contar com a memória para registrar depois é que eu não iria. ela, a memória, vive a me trair. daí que vivo a escrever, pois é o meio que encontro para não deixar passar muito do que vivo.
     fica aqui, então, um poeminha da angélica, que achei lindíssimo, e que muito combina comigo.
muito mesmo.
      diz assim, ó:
"Entro na livraria do bobo.
não tenho dinheiro
e tampouco tenho talento para o crime.
____
desfilam ante meus olhos
títulos maravilhosos
moribundos de tanto estar
nas prateleiras.
_______
roube-nos, dizem eles.
não agüentamos mais ficar aqui
na livraria do bobo.
______
quem acreditaria
nesta versão dos fatos?
ajudem-me, maragatos
nesta hora afanérrima
de uma libertadora paupérrima
de livros.
________
retumba meu coração. retumba
mais que a bateria do salgueiro.
treme o corpo por inteiro
e as mãos já suam em bicas.
________
ganho a rua, as mãos vazias
e os livros gritam: maricas".

ítalo puccini

terça-feira, 18 de agosto de 2009

a vida por meio de histórias

      "No último texto que escrevi neste espaço, fiz referência ao tema do 17° COLE – Congresso de Leitura do País –, a necessidade de “transver o mundo”, citada pelo poeta Manoel de Barros nos versos “O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo”. E essa necessidade pressupõe uma tomada de consciência de que o ato de ler é, também e principalmente, saber ler a si mesmo e ao outro com o qual se estabelece uma relação de viver.
      Diante disso, a leitura literária é, sublinhe-se, uma modalidade de leitura existente, o que significa que há outras formas de leitura, formas estas que, não é arriscado afirmar, desfrutam de maior trânsito social, como, por exemplo, a leitura dinâmica de imagens, de jornais, e de revistas, as quais fazemos quase que diariamente.
      Como estudante de Letras e professor de Literatura, a leitura do texto literário faz parte do meu dia-a-dia, e o como trabalhar esse texto literário em sala de aula é um pensar que me acompanha da mesma forma diariamente. Sendo assim, como pesquisador que me tornei nesses anos de estudos acadêmicos, venho desenvolvendo pesquisas com o intuito de investigar possibilidades de o professor explorar o texto literário em sala de aula junto aos alunos.
     Fui, então, ao 17° COLE, em Campinas, apresentar os dados parciais da minha atual pesquisa, “A leitura literária no espaço escolar”, na qual proponho a realização de Círculos de Leitura com alunos do Ensino Médio, círculos estes nos quais trabalho com diferentes leituras de diferentes textos literários, contemporâneos e clássicos, justamente com o objetivo de, juntos, explorarmos a construção de sentidos junto a esse tipo de texto, no qual a imaginação ultrapassa fronteiras, contribuindo para a liberdade de interpretação e de respeito pelas diferenças.
     Aqui em Jaraguá do Sul, esta semana, iniciarei os Círculos de Leitura com alguns alunos do primeiro ano do Ensino Médio de um determinado colégio. E todo esse movimento acontece devido a duas crenças que tenho: a primeira, de que é na interação leitor-texto que a literatura merece ser discutida em sala de aula. Mais ainda, de que ensinar literatura significa mediar com o aluno o desenvolvimento da sua capacidade em transformar informação em conhecimento, envolvendo compreensão, interpretação e reconstrução do texto. E a segunda, a de que é a partir das histórias que lemos que podemos nos constituir como sujeito, que podemos transver essa realidade na qual vivemos.
      O historiador e crítico literário Alberto Manguel, certa vez lançou a indagação “se as histórias são capazes de mudar quem somos e o mundo em que vivemos”. Eu acredito que sim. E acredito porque senti – e continuo sentindo – o quanto as histórias que já li mudaram meu eu, mudaram minha forma de pensar, de sentir, e de agir no mundo. E é também pensando nisso que me arrisco em propor pesquisas e atividades de reflexão como a citada neste texto. E o próprio Manguel apresentou uma resposta à pergunta que fez, a qual encerra este escrito: “As histórias podem alimentar nossa mente, levando-nos talvez não ao conhecimento de quem somos, mas ao menos à consciência de que existimos – uma consciência essencial, que se desenvolve pelo confronto com a voz alheia”.

Ítalo Puccini

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

sobre cartas e livros

      são duas palavrinhas das quais gosto muito. na verdade, pelo que elas significam, e não propriamente pela palavra (estrutura) em si. nesse último caso gosto, por exemplo, de noite e de nuvem. mas isso não vem ao caso agora. o que vem mesmo são as cartas e os livros. os objetos. recebi, na sexta, carta e livro da lorreine beatrice. e, na segunda, carta e livros do enzo potel. na verdade, na verdade, antes que eles me corrijam, não foram bem cartas, naquele sentido original, em que, num papel, conta-se um pouco de alguma coisa. não. mas os livros vieram pelo correio, em envelopes daqueles mais tradicionais, sabe, simplinhos, bonitinhos, o que para mim já significam cartas. abri-os como sendo cartas. e lá constavam os livros.
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      da lorreine ganhei o “hai-kais em setembro”, um projeto chamado “palavras azuis”, organizado pela terezinha manezak, e feito pela editora “nova letra”, de blumenau. hai-kais de doze autores (todos de blumenau, pressuponho, pois no livro não há dados sobre eles, algo do que senti falta), incluindo a lorreine, que já tem livros publicados, como “aprendiz”, “relicário” (amo esse título, e o livro também é lindo), e outros infantis. ela não fez dedicatória no livro, que é bem pequeninho. escreveu num papel, que veio junto, bem assim: “oi, ítalo! Segue seu livro de hai-kais, conforme prometido. Abraço, lorreine beatrice, jul. 2009”. e a lorreine é dona de palavras assim também para mim: “para ítalo, que acredita na força das palavras – em cartas, contos e poemas – e na leveza delas”, palavras estas que estão como dedicatória de seu livro “relicário”.
      com a lorreine tenho uma experiência de troca de cartas e livros muito legal. desde dois mil e um, acho, ou dois. bem no comecinho do século mesmo. à época trocávamos muitas cartas. sempre falando sobre leituras, escritas, e coisas da vida que acompanham adolescentes (temos idades próximas, um ano de diferença, acho).
     são hai-kais muito bonitos os do livro, que inspiram imagens lindíssimas, como esta, por exemplo, “em primeiras e rés / o beija-flor maneiroso / na conquista da flor”, escrito pela débora novaes de castro. e tem outros mais, tão singelos, bonitos e inspiradores quanto: “o rio leva o galho / passeando de carona / vai um passarinho”, do tchello d’barros. e tem um da lorreine também, que é assim: "Gaivota rendeira / tricota horizonte azul / pausa no entardecer”.
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      o enzo, pelo contrário, eu não conheço pessoalmente. tenho contato com ele via e-mail e blog, através do rubens da cunha. mas me parece ser, o enzo, um sujeito super bacana, parafraseando o caetano (gostas, enzo?). um cara espirituoso pra caramba, com quem trocar e-mails é rir gostosamente da vida.
___________a forma como chegaram os dois livros do enzo foi peculiar, como me parece ser ele. tava eu aqui na minha, em casa, segunda à tarde, chovendo fraquinho, sabe, uma delícia para estar... na cama, claro. pois não para mim. tava eu na mesa da copa, sentado numa cadeira super comum, no beiral da janela, para pegar a claridade lá de fora e não acender a lâmpada (ítalo também é conscientização ambiental). ah, sim, e eu tava lendo meus teóricos, sublinhando horrores meu livro, e já encucando futuros textos sobre a pesquisa que tô fazendo.
aí, eis que alguém, lá fora, óbvio, me toca o interfone. digo, a bosta do interfone. reconheço sua utilidade, mas assusta pra diacho aquele treco. que horror! dei um pulo da cadeira e, não fosse a casa toda aberta, janelas e portas, nem atenderia, só de raiva. mas sorte a minha que a casa estava assim aberta, pois era a vizinha, super atenciosa, que viera me informar que algumas correspondências estavam molhadas lá na caixinha de correio.
agradeci à vizinha, e corri à caixinha de correio. de fato, duas correspondências um pouco molhadas. uma era carta de banco pra minha mãe (!), e outra eram os dois livros do enzo, em envelope um pouquinho maior. por que o carteiro não tocou o interfone, me deu outro susto, e me entregou o envelope com os livros em mãos, ao invés de deixá-lo mal colocado lá fora, não sei. sorte minha de ter vizinha atenciosa como essa. pois, então, peguei os dois livros, consegui secá-los rapidamente, e feliz fiquei com isso.
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sobre os livros, em primeiro lugar, amei as duas dedicatórias feitas pelo enzo. no “afeganistão”, primeiro livro dele, de 2005, ele escreveu assim: “ítalo, o começo de tudo. com carinho, enzo”, e assinou. no “cura”, o segundo livro, de 2007, tá assim “ítalo! o fim do começo! enzo”, e outra assinatura.
_________o enzo escreve poemas. maravilhosos poemas! de uma força muito própria, e encantadora. “afeganistão” é divido em três capítulos: 1º “feliz na ignorância!”, onde me deparei com poemas como “amélia”, que diz assim: “A Amélia pensou em tudo: / no potinho de pimenta do reino, / sal, canela e açúcar, / nos lixinhos da cozinha, / do escritório e do quarto de visitas... / - uma árvore da fortuna aqui, / um lírio da paz ali, / e as xícaras em fila indiana - / ... no sítio que podiam comprar / com o dinheiro da aposentadoria dos dois. / A Amélia pensou em tudo, / só não pensou que ia embora”. um soco. a vida. e também encontrei ali algo lindo como este verso, a ocupar toda uma folha: “eu gosto quando minha mãe se arruma, porque ela se arruma por dentro”. pronto, não é preciso mais nada.
depois, no 2º capítulo, chamado “Sim, então ISSO é Deus?”, há versos assim: “Afeganistão / / Afeganistão significa ‘o resto das coisas’. / o lugar em que Deus concentrou / tudo o que não coube nos outros / lugares do mundo. / / Já meu nome traduz-se ‘vida sem propósito’. / Ser com alguns talentos inaproveitáveis, / metido, e que mata todos os próprios sonhos, / porque não tem coragem de se matar”. para mim, são os versos que significam este livro e este autor. há, também, algo daquilo que um dia se fora: “Cadeira / / Sinto-me um galho morto / na beira de uma floresta seca, / cheio de liquens, / nu e inútil. / Eu, que outrora sustentei ninhos...”.
e, por fim, no 3º capítulo, intitulado “Novas e Cândidas”, há uma realidade, nua e crua: “Ontem de madrugada dois mendigos / dormiam na calçada da Só Colchões”. “Banho-Maria / / Nada de deixar certas pessoas em banho-maria, / atrasa meu almoço, gasta meu gás / e ocupa uma boca do fogão. / O que é bom dá pra comer gelado”.
________“Cura” é um livro belíssimo. não me refiro somente aos versos. há um cuidado de imagens e um tipo de papel que o torna ainda mais gostoso de lê-lo. é, como diz no texto de apresentação do livro, escrito pela ryana gabech, o que não mima, não cuida, e não adocica. e, apenas, o que remove as amarras e couraças do mundo.
“Cura” é também dividido em três capítulos: “cenários místicos”, “a morte”, e “o reencontro”. tem um sumário impecavelmente bem trabalhado. e versos ardidos assim, ó: “O índio é lindo / da cor da nossa terra / joga o índio no chão / que a gente pisa nele”. e assim também: “Orgulho / / Não há troca. / É uma exposição mútua / de tendas túmulos / presas / sal pérolas / sonhos secos / princípios. / / Pronto. / Eu não te mudei. / Você não me mudou. / Negócio fechado”.
há, claro, a morte: “A sete palmos / / Todos nós temos certas dores / que brilham durante a vida. / Uma fiel dor de estômago. / Uma perna que sempre paralisa. / Um câncer. / São todos os sentimentos / que para nosso próprio bem / fingimos que esquecemos / achamos que perdoamos / mas que crescem silenciosamente / dentro de nós. / Até que um dia / nos matam”. e, novamente, o soco da vida: “Amigo é uma veste, / uma moda de espírito. / E o futuro da moda / é a nudez”.
e aí é preciso parar. ou continuar? fiquei sem saber. precisei respirar antes. e voltei para levar mais: “Entreguei minha Vida / nas mãos de Deus / e ele estava fazendo as unhas”.
pronto, estava nocauteado. pois levantei-me, e li tudo de novo.
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aqui ficaram, então, alguns resquícios disso tudo. a quem se interessar, basta entrar em contato com os dois, e receber deles singelas e fortes cartas assim. aos poucos me recupero, claro. é necessário.

ítalo puccini