parafraseando o lenine. o que não significa querer estar sozinho. e sobre solidão e multidão eu me recordo de uma temática bastante recorrente na literatura, talvez clichê justamente devido à recorrência: a dualidade aparência versus essência, muito presente por exemplo em machado de assis, que a abordou em variados romances e contos. a citar estes, creio que valem “o enfermeiro” e “um homem célebre”, além do romance introdutor do realismo no brasil “memórias póstumas de brás cubas”, afinal, nessas três histórias os personagens – principais e secundários – preocupam-se com o que aparentam aos outros, movendo-se, nessa obsessão, por vezes em caminhos contrários à essência que os constituía e por fim se sentindo sós de uma maneira bastante sofredora. o oposto de mim.
em “o enfermeiro”, por exemplo, o personagem principal, narrador, após a morte do homem rude de quem cuidava, felisberto, sofre um drama de consciência, intensificado pela herança do enfermo, e a culpa o atormenta, num primeiro instante, ao questionar a possibilidade de ficar ou não com tal dinheiro, uma vez que fora ele quem matara o velho, após uma briga corporal – porém, as pessoas, não sabendo da causa mortis, elogiavam-no, por suportar durante tanto tempo cuidar de alguém tão rabugento. já o personagem de “um homem célebre”, pestana, vive e morre frustrado, em função de que, sendo um compositor de polcas, nunca assim se satisfez; queria mais, desejava criar obras clássicas. o destino lhe mostra que nascera para aquilo de que não gostava e assim morre bem com os homens e mal consigo mesmo.
ainda, essa dualidade entre aparência e essência consta na poesia, encontrada nestes dois poemas: “mal secreto”, de raimundo correia, e “ante um cadáver”, de murilo mendes, sendo que o primeiro, poeta parnasiano, preocupado com o rigor formal do texto, escreve sobre o quanto a necessidade de ser socialmente aceito induz o indivíduo a agir de forma dissimulada:
“Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!”
enquanto o segundo, poeta modernista, mais afeito à liberdade formal, apresenta um olhar relacionando a aparência ao que há de inútil em nós, e a essência à solidão, afinal, é quando estamos sós que temos a oportunidade de sermos quem de fato somos:
“Quando abandonaremos a parte inútil decorativa do nosso ser ?
Quando nos aproximaremos com fervor da nossa essência,
Partindo nosso pobre pão com o Hóspede
Que está no céu e está próximo a nós?
Para que esperar a morte a fim de nos conhecermos...
É em vida que devemos nos apresentar a nós mesmos.
Ainda agora essas coroas, esses letreiros, essas flores
Impedem de se ver o morto na verdade.
Estendam numa prancha o homem nu definitivo
E o restituam enfim à sua prometida solidão.”
e é nesse viés em que me encontro e com o qual me identifico: de mais solidão e menos companhias, desde a infância enveredando por essa escolha, constatação que algumas sessões de análise terapêutica me ajudaram a assimilar e a entender enquanto comportamento essencial em mim, logo, distante de um sofrimento comumente associado à solidão, presente, a exemplo, nas ficções citadas. desse modo, uma vez isolado, sou “um homem mais sincero e mais justo comigo”, conforme canta o falcão, d’o rappa, e se atenua em mim uma suposta falta do outro, pois minha essência advém justamente da introspecção, do recolhimento e da energia poupada ao evitar interação desnecessária porque desinteressante.
daquilo que não me acrescenta eu me afasto, em terapia também compreendi. apego-me, pois, à literatura – à identificação com alguns escritos e à tentativa de escrever – da mesma forma que eu poderia abraçar-me à bebida ou aos encontros sociais. todas escolhas, sempre atreladas a renúncias. e como é bom saber se desprender daquilo com o qual não há identificação, sem necessidade de recorrer à extenuante aparência.
ítalo puccini