segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

deus pra mim é um caramujo

disse-me ele

um verso assim por si só
que ele não percebeu que poderia ser um verso
até que falei
e ele deixou então que fosse meu

não deus
nem o caramujo

o verso mesmo

porque a palavra
depois de lançada
já não mais é

nem deus
nem nós 

ítalo puccini

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

nacionalismo

a pátria que me pariu
não me perguntou se 
nela eu queria nascer

meu alheamento é liberdade 
de escolha 

ítalo puccini

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

poética

descalçar a palavra 
desamarrar dela os sentidos 
levá-la ao barro 
virá-la do avesso
sujá-la 
do que ela mais precisa 

da desordem

ítalo puccini

terça-feira, 26 de novembro de 2019

e essa taça vamos conquistar

     vamos flamengo não há palavras com que eu possa definir não há palavras com que eu possa exprimir o que é ser flamengo é uma glória no cenário mundial eu sempre te amarei onde estiver estarei ó meu mengo e domingo eu vou ao maracanã flamengo joga amanhã eu vou pra lá o maraca é nosso vai começar a festa sai do chão sai do chão a torcida do mengão a bola rola e essa galera vai vibrar diz o gramado sai da frente é o mengão sempre amado o mais cotado seja na terra seja no mar quando o flamengo joga é casa cheia o maraca é nosso somos uma nação é lindo ver o mengão contagiando essa torcida essa cidade são dez estrelas a brilhar no céu do meu mengão o céu na noite que reluzia não vai ser de brincadeira ele vai ser campeão encantou o estácio ó paixão que arde sem parar cobra coral papagaio vintém vestir rubro-negro não tem pra ninguém acima de tudo rubro-negro teu manto é minha pele no meu peito teu escudo campeão o seu destino é ganhar em terra e mar ele vibra ele é fibra é time de tradição raça amor e paixão ó meu mengo estou sempre contigo somos uma nação os meus olhos estão brilhando meu coração palpitando de tanta felicidade fecho os olhos e lembro em dezembro de 81 botou os ingleses na roda e quem enfrenta reconhece o maior da história é mengo tengo no meu quengo é só flamengo tens na torcida uma força sem igual flamengo da dona de casa do povo sofrido do trabalhador meu glorioso flamengo cada jogo uma vitória cada vitória um carnaval flamengo do sul e do norte de todos os cantos de toda nação ó meu mengão eu gosto de você no asfalto e no morro é o bonde do mengão sem freio três a zero no liverpool ficou marcado na história vamos flamengo vamos ser campeão vamos flamengo time consagrado pelo povo preto encarnado idolatrado sua história sua glória seu nome é tradição é samba amor e paixão a minha maior alegria é ver o mengo campeão vamos fazer desse samba oração e do clamor dessa massa procissão cem anos de uma história quanta tradição vai flamengo balança a rede do adversário quero cantar ao mundo inteiro a alegria de ser rubro-negro lembrar você sou campeão mundial vamos buscar no sonho na filosofia na ciência e na magia explicação pra essa religião que a gente só pode sentir com o manto sagrado e a bandeira na mão é o ai jesus que torcida é essa por isso que digo uma vez flamengo sempre flamengo e agora o seu povo pede o mundo de novo zum zum zum zum zum zum a torcida quer mais um e o nome dele são vocês que vão dizer dale dale dale ô dale dale dale ô flamengo maravilhoso cheio de encantos mil mengão do meu coração flamengo maravilhoso campeão do meu brasil eu sempre hei de ser não importa onde esteja sempre estarei contigo que o seu futuro ainda será mais lindo que o seu presente que tão lindo é

ítalo puccini

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

hoje eu quero estar só

     parafraseando o lenine. o que não significa querer estar sozinho. e sobre solidão e multidão eu me recordo de uma temática bastante recorrente na literatura, talvez clichê justamente devido à recorrência: a dualidade aparência versus essência, muito presente por exemplo em machado de assis, que a abordou em variados romances e contos. a citar estes, creio que valem “o enfermeiro” e “um homem célebre”, além do romance introdutor do realismo no brasil “memórias póstumas de brás cubas”, afinal, nessas três histórias os personagens – principais e secundários – preocupam-se com o que aparentam aos outros, movendo-se, nessa obsessão, por vezes em caminhos contrários à essência que os constituía e por fim se sentindo sós de uma maneira bastante sofredora. o oposto de mim.
     em “o enfermeiro”, por exemplo, o personagem principal, narrador, após a morte do homem rude de quem cuidava, felisberto, sofre um drama de consciência, intensificado pela herança do enfermo, e a culpa o atormenta, num primeiro instante, ao questionar a possibilidade de ficar ou não com tal dinheiro, uma vez que fora ele quem matara o velho, após uma briga corporal – porém, as pessoas, não sabendo da causa mortis, elogiavam-no, por suportar durante tanto tempo cuidar de alguém tão rabugento. já o personagem de “um homem célebre”, pestana, vive e morre frustrado, em função de que, sendo um compositor de polcas, nunca assim se satisfez; queria mais, desejava criar obras clássicas. o destino lhe mostra que nascera para aquilo de que não gostava e assim morre bem com os homens e mal consigo mesmo.
     ainda, essa dualidade entre aparência e essência consta na poesia, encontrada nestes dois poemas: “mal secreto”, de raimundo correia, e “ante um cadáver”, de murilo mendes, sendo que o primeiro, poeta parnasiano, preocupado com o rigor formal do texto, escreve sobre o quanto a necessidade de ser socialmente aceito induz o indivíduo a agir de forma dissimulada:

“Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!”

     enquanto o segundo, poeta modernista, mais afeito à liberdade formal, apresenta um olhar relacionando a aparência ao que há de inútil em nós, e a essência à solidão, afinal, é quando estamos sós que temos a oportunidade de sermos quem de fato somos:

“Quando abandonaremos a parte inútil decorativa do nosso ser ?
Quando nos aproximaremos com fervor da nossa essência,
Partindo nosso pobre pão com o Hóspede
Que está no céu e está próximo a nós?

Para que esperar a morte a fim de nos conhecermos...
É em vida que devemos nos apresentar a nós mesmos.
Ainda agora essas coroas, esses letreiros, essas flores
Impedem de se ver o morto na verdade.
Estendam numa prancha o homem nu definitivo
E o restituam enfim à sua prometida solidão.”

     e é nesse viés em que me encontro e com o qual me identifico: de mais solidão e menos companhias, desde a infância enveredando por essa escolha, constatação que algumas sessões de análise terapêutica me ajudaram a assimilar e a entender enquanto comportamento essencial em mim, logo, distante de um sofrimento comumente associado à solidão, presente, a exemplo, nas ficções citadas. desse modo, uma vez isolado, sou “um homem mais sincero e mais justo comigo”, conforme canta o falcão, d’o rappa, e se atenua em mim uma suposta falta do outro, pois minha essência advém justamente da introspecção, do recolhimento e da energia poupada ao evitar interação desnecessária porque desinteressante. 
     daquilo que não me acrescenta eu me afasto, em terapia também compreendi. apego-me, pois, à literatura – à identificação com alguns escritos e à tentativa de escrever – da mesma forma que eu poderia abraçar-me à bebida ou aos encontros sociais. todas escolhas, sempre atreladas a renúncias. e como é bom saber se desprender daquilo com o qual não há identificação, sem necessidade de recorrer à extenuante aparência.

ítalo puccini

terça-feira, 12 de novembro de 2019

fazer poema lá na vila é um brinquedo

     e ouvir tuas composições, noel, é conhecer um cotidiano rio de janeiro de outrora – cidade sensível, irresistível, cidade do amor, cidade mulher – ou, mais precisamente, a vila isabel, tão bem retratada por ti: “são paulo dá café / minas dá leite / e a vila isabel dá samba”. é o viés que pega o ouvinte e o leitor no contrapé, que faz dançar os galhos do arvoredo, que faz a lua nascer mais cedo. são teus versos os que fazem isso ao cronicar assim em forma de samba, noel. 
     samba este que não se aprende no colégio, sabemos, cujas rimas não são ai love you. nem no teu tempo, nem no meu. e por isso mesmo que vezemquando apresento aos meus alunos algumas amostras musicais desse gênero tão brasileiro, pensando que talvez eles se identifiquem com o ritmo ou os escritos. se não pela possibilidade de se sentirem tocados pelos versos, ao menos lhes apresento uma composição assim rica: “o sol da vila é triste / samba não assiste / porque a gente implora / sol, pela mor de deus / não vem agora / que as morenas / vão logo embora”. 
     e ouvindo-te eu aprendi que a vila não quer abafar ninguém, e sim apenas mostrar que faz samba também e que é uma cidade independente, não disposta a tirar patente. é o tal feitiço que há na vila, lugar onde o que não faltava era conversa de botequim e exigência de um bom atendimento do garçom. aliás, qual foi o resultado do futebol por aí? aqui só dá flamengo. também não sei vestir casaca, não sou um tipo zero do tipo que não tem tipo, que com todo tipo se parece. 
     e, tendo ou não cem mil réis, não há quem não cantarole o refrão de “com que roupa?” nos momentos, bastante frequentes, em que ficamos a matutar o que vestir. ah, tu sabias o que dizias. ô, se sabias: “quanto a você da aristocracia / que tem dinheiro, mas não compra alegria / há de viver eternamente sendo escrava dessa gente / que cultiva a hipocrisia”. machado de assis te aplaudiria, tenho certeza. inclusive, um dia eu gostei de uma vida boêmia. hoje, eu prefiro os amigos. afinal, onde está a honestidade? eis o xis do problema, tal qual estava lá naquela carta que tu recebestes: “quem é da boemia / usa e abusa da diplomacia / mas não gosta de ninguém”. 
     permita-me, noel, para finalizar esta breve conversa, uma pergunta-cretina: paixão não te aniquila? olha que te vejo muito naquele gago apaixonado, hein? mas não vou insistir nessa vereda, não. com paixão não se brinca. é preciso um bocado de respeito pelo sentimento do outro, afinal, “um grande amor tem sempre um triste fim” e “quem suportar uma paixão / sentirá que o samba então / nasce do coração”, como um último desejo. 

ítalo puccini

terça-feira, 5 de novembro de 2019

a escrita enquanto reparação




     até que ponto a escrita é capaz de reparar algo? é o que tenho me perguntado desde que assisti novamente ao filme “Desejo e Reparação”, dirigido por joe wright, baseado no livro “Reparação”, do ian mcewan. e essa indagação se origina no que nos apresenta a narrativa: a escrita de uma história, por uma das personagens, como forma de reparar um erro cometido por ela há muitos anos. então que eu refaço a pergunta: até que ponto a escrita é capaz de reparar, ou seja, consertar um erro? repara a ação já cometida? ou se transforma em uma obsessão? em portugal, por exemplo, o romance saiu intitulado “expiação”, que, de acordo com o dicionário, significa “ato ou efeito de expiar; reparação ou sofrimento pelo qual se expia uma culpa; castigo”. escrever expia o sentimento de culpa? para responder a isso, acredito que seja bom direcionar a questão, especificar este ato de reparar: a quem ele faz referência?

reparação
briony tallis, com 13 anos e uma mente muito criativa e imaginativa, acusa robbie, o filho de uma das empregadas que trabalhavam para a família tallis, de tentar violentar sexualmente lola, 15, prima de briony, em uma noite – esta que era muito especial, devido à visita do irmão das meninas, leon. tal acusação ocorre quando os primos gêmeos desaparecem durante o jantar, e todos se dispersam para procurá-los, pela grande propriedade onde reside a família. de fato lola estava sendo violentada, mas não por robbie. porém, briony resolve dizer a todos que tinha visto com seus próprios olhos que havia sido ele. 
por que culpá-lo? ciúmes, talvez. egoísmo, como uma tentativa de tornar o dia de alguém tão insuportável quanto fora o seu, repleto de frustrações: uma peça teatral, escrita por ela – para recepcionar o irmão – que não pode ser encenada, por má vontade dos envolvidos (lola e dois primos gêmeos, de dez anos) e duas surpresas desagradáveis, envolvendo a irmã, cecília, e o próprio robbie: a leitura de um bilhete escrito por robbie para ceci (quero beijar sua boceta molhada) e o flagra no momento em que os dois transavam na biblioteca da casa da família. estava completo o dia de briony. havia motivo, na cabeça da menina, para incriminar o garoto pobre cujos estudos foram bancados pelo pai das meninas. 
consequência desses fatos: robbie preso, cecília arrasada, um amor impossibilitado de ser vivido, uma família, a partir de então, dividida. 
a narrativa prossegue mostrando robbie nas forças armadas durante a 2ª guerra mundial, o pouco contato entre ele e ceci – por meio de cartas, como uma forma de manterem viva a paixão interrompida – e briony tentando receber o perdão da irmã, reconhecendo o erro que cometera. 
a menina de imaginação ímpar, que muito arriscara a escrita de histórias quando na infância, realiza o sonho de tornar-se escritora, alcançando, inclusive, bastante sucesso com seus livros publicados. e, já idosa, ao lançar seu 21º primeiro romance, ao qual dá o nome de “Reparação”, narra a história de sua vida, assim como da de ceci e de robbie, a partir daquela noite que marcara a vida de todos eles. porém, no seu livro o casal se reencontra após a guerra e pode, enfim, viver uma apaixonada e sincera vida a dois, algo que, na realidade, não ocorre: ele morre na guerra, pouco antes das tropas voltarem ao país, e ela falece, doente. ambos ainda muito jovens. 

escrita consciente e inconsciente
sem nunca ter sido capaz de escrever sobre o acontecimento que causou, briony consegue fazer isso no último livro, no fim da vida, como uma tentativa de reparar o erro que cometera, de ser perdoada pela irmã e pelo filho da empregada, oportunizando-lhes, na ficção, viverem o que em vida não puderam. e eu retomo a pergunta: até que ponto a escrita desse romance, por parte de briony, reparou o erro que ela cometera? a escrita é capaz de tal reparação? 
não desenvolvi esse texto para alcançar uma resposta. sinto essa questão com muitas variáveis, então que retomo um olhar para o fato: a quem esse ato de reparar faz referência? sendo assim, somente com o movimento de colocar-se no lugar do outro para dar conta de responder a isto. e a personagem, tanto no livro quanto no filme, não me pareceu curada da dor da culpa que durante toda a vida esteve com ela, percepção que me induz a pensar no quanto a escrita é apenas paliativa: nunca solução concreta e efetiva para as dores que carregamos conosco, e sim um meio de nos suportarmos, por mais que tentemos fugir delas a todo custo, pelo tempo que for. 
quantas são as vezes em que escrevemos a alguém com o intuito de nos desculparmos, de reatarmos um elo rompido por algo que causamos? e quando escrevemos para acusar, para gritar aquilo que nos dói, causado, em nossa opinião, pelo outro? é também a escrita como reparação, é também, a meu ver, esse almejo – que nos persegue e nós perseguimos – de colocarmos a vida em um trilho equilibrado, envolvendo princípios como justiça, talvez coerência ou moral. 
é o suficiente, tal escrita? ou, ampliando a indagação: em algum momento a escrita nos é suficiente? torço para que não, uma vez que a incompletude nos é necessária. prefiro pensar que escrevemos também como uma forma de conversarmos conosco mesmos e com aqueles que nos leem, de olharmos para o que nos rodeia, de nos ressignificarmos. daí a possibilidade de alcançarmos o que nos é consciente e inconsciente, ora desejando uma sensação de cura, ora uma de fuga. 
por exemplo: tenho desgostado do que escrevo – reconhecendo o quanto isto é um clichê. esse não gostar se deve a uma repetição: parece que todo texto meu é o mesmo há anos. acredito que seja o ritmo de escrita e de leitura que consegui fazer presente em minha escrita – fator importante para quem inicia – entretanto, um vício que pode impedir-me de apresentar algo que a mim seja novo. e essa situação se deve ao fato de que escrevo principalmente – e quase apenas – aquilo que vivo e conscientemente sinto. é uma escrita agarrada às vivências, ou seja, uma zona de conforto. 
talvez, mais difícil do que criar uma voz narrativa seja liberar-se dela. e o caminho para uma mudança nessa quase crise-existencial-criativa passa por produzir o que não foi vivido, ficcionalizar de fato, ir para além daquilo que penso sobre mim e de como os outros possivelmente me veem. como me disse o enzo uma vez, “nesse além você se sabota e é capaz de um novo estilo”. e, de repente, alcanço traumas e culpas que saracoteiam dentro de mim. 
acredito nessa dupla possibilidade, de quem se esconde e se escancara a partir do texto, como se fosse possível optar por apenas uma forma. não é. mostramo-nos mais do que pressupomos mostrar, da mesma maneira que deixamos escondidas características nossas, por mais que tentemos escancará-las. isto porque que é, a escrita, fuga e aproximação. dos outros e, principalmente, de nós mesmos.  

ítalo puccini

domingo, 27 de outubro de 2019

ita

são as igrejas
os meus trios elétricos 
sobre pedras
que carrego no nome

ítalo puccini

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

ensino

não existem palavras com d 
nem dom 
nem deus 

ítalo puccini

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

de quatro

minha frieza é casca:
mecanismo de proteção
daquilo que não quer
me atacar

por dentro sou abandono:
vazio sem controle
sono em tristeza
ansiedade em traição

da insegurança me torno vítima:
íntimo da ignorância
desconfortável diante do saber
alheio à realidade

do silêncio construo vingança:
planejo mentiras
preservo descuidos
escrevo o que é medo

ítalo puccini


terça-feira, 1 de outubro de 2019

os sentinelas

sinto medo de ir dormir e
ao acordar
ser notícia nas manchetes dos jornais
culpado por ter falado durante o sono
ou por ter ido dormir de meia branca
sendo que o chão da casa estava sujo

sinto medo de sair de casa e
ao voltar
ser barrado por repórteres cinegrafistas curiosos
questionando-me por que fui trabalhar sem gravata
justo hoje que todos combinaram
em se vestirem com traje fino

sinto medo de abrir as redes sociais
e ler pessoas escrevendo em caixa alta
para anunciar a venda do caixão que era do bisavô
agora cremado
ou para defender uma opinião
dizendo mas isso é só uma piada

agora com esses medos
sei porque minha dor de ouvido não passa
são essas exclamações ao final de cada frase
são as palavras em caixa alta
são as frases que eu digo ou escrevo
e que se tornam manchete ou piada em grupos de whatsap

se eu não soubesse ler não me incomodaria com isso
e também não sentiria medo ao acordar ou dormir
logo
tudo é culpa da leitura
do meu desejo de ler
cada átomo de vida que se encontra ao redor de mim

se somos aquilo que desejamos
meu medo é fruto de meu sentimento de culpa
meu medo vem dos poemas que li
porém
justo com eles me defenderei
de tudo o que corta morde e fura e fala

e ao meu lado estarão
drummond e seu tempo de homens partidos
joão cabral e a faca só lâmina
hilda e seus desejos
manoel de barros e a natureza que é palavra
leminski e o destino com o qual não se discute

ítalo puccini


segunda-feira, 23 de setembro de 2019

na cruz

silenciei escuros
em quartos de dor

cruzei pernas, braços e dedos
em ritual 
desconhecido
cruzei espinhos no peito

cruzaram-me o olhar
prenderam-me numa cruz
estado de coma

entre poros
clamo por libertação

ítalo puccini

domingo, 15 de setembro de 2019

gramática

dentro do lhe 
há 
uma preposição

ítalo puccini


segunda-feira, 9 de setembro de 2019

o alento no excesso


     o cristovão tezza também é bom nisso de ser cronista. e me utilizo aqui do também porque como romancista ele já me ganhou. e cronicando com ele – ou seja, lendo suas crônicas reunidas no livro “um operário em férias” – deparei-me com um parágrafo no qual me detive: “Não é a crise do mundo que faz nascer romancistas e poetas. Eles escrevem porque são eles mesmos que estão em crise – um poderoso sentimento de inadequação, que é a alma da arte, sopra-lhes a primeira palavra, com a qual eles tentam redesenhar o mundo”. e eu sinto assim a minha tentativa de escrita, pelo viés da ressignificação do que é vivido enquanto crise existencial.
     das minhas sessões de psicoterapia psicanalítica, por exemplo, sempre retorno e escrevo breves frases sobre aquilo de que falei, tornando mais compreensíveis e assimiláveis as angústias verbalizadas no set terapêutico. e os três anos nos quais me afastei da escrita sulcaram em mim marcas indeléveis, afagadas momentaneamente pela verborragia textual que me move nos últimos meses. e assim refaço o significado da palavra vazio e compreendo minha escolha pela arte, na adolescência, como um movimento para aplacar essa característica inerente à condição humana.
     porque eu acredito na existência do vazio e de uma veia artística em cada um de nós, sem significar consciência a respeito dela, muito menos conhecimento sobre como explorá-la. pois há um medo oriundo da arte – de quem a faz e de quem a recebe. um medo provocado pela arte por simplesmente existirmos, nós e ela. que talvez não seja medo e sim estranhamento, porque o novo assusta, sabemos. contudo, tememos mas não a largamos; é o canto do pai do mato: atrai-nos para comer nosso coração. e não há maldade nisso. a escolha é nossa de ir até ela ou de recebê-la quando rompe à nossa frente. e nos incomoda, muito. tira-nos o chão, desestrutura-nos certezas, ameaça-nos crenças. um rebuliço. 
     ao mesmo tempo em que é essa coisa tão bonita cantada pela elis em “essa mulher”: ser cantora, ser artista. talvez uma eterna inadequação sentida pelo sujeito diariamente a cada interatividade social da qual dificilmente se escapa por mais que se tente. é arte que brota nos poros a partir de cada detalhe do que se vive, momentos nos quais se entende a felicidade enquanto porvir e as cicatrizes marcas intransferíveis, constituíntes da individualidade de cada um. o elefante que vive dentro de mim, por exemplo, sou eu mesmo, e se comunica pela palavra e por modos de linguagem. 
     minha arte, pois, é a escrita, e escrever, para mim, é dar a cara a tapa. assim me sinto e por isso recorro a ela: pela crise, pelo vazio, pela angústia, por sentir-me inadequado, desafinado com o mundo, com as pessoas, ainda que no meu peito também bata um coração. escrever é para mim consertá-lo. porque é importante enfiar o dedo na ferida e deixá-la sangrar até curar, para dela brotar o que existe quiçá no inconsciente. e essa escrita pseudorracional esconde aquilo que dói e esconde o motivo de ela existir: volteia, permeia, não aprofunda sem que nos permitamos a. cutuca e fere, enquanto elemento de cura, se assim a quisermos. 
     às vezes, penso, é no excesso que encontramos alento. quando a sensação de vazio é tanta que corremos a preenchê-la: por medo, por fuga, por fraqueza. ser humano é isto. e como é bom dizer que não está tudo bem, que não mais é possível ouvir gonzaguinha, por exemplo, sem que o corpo rasgue por dentro – palavra por palavra eis aqui uma pessoa se entregando. pela escrita.

ítalo puccini

sábado, 7 de setembro de 2019

quadra

são perigosos os dias de feriado
de repente você descobre que é o momento
de se separar
ou de iniciar uma faxina

ítalo puccini

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

poema pra dentro

fiz da solidão 
morada

casa de concreto
em quadrado

formato em que
não me cabem
cantos

ou contornos 

exercício de endurecer
por força da vida

ítalo puccini

domingo, 18 de agosto de 2019

tudo dói

faço nascer em mim um câncer
instante no qual
ao outro não perdoo:
exímio rancoroso que sou

faço desse sentimento
um sinônimo de arrogância

quando estufo o peito
e empino o queixo

para mostrar
a inexistência
em mim
da dor

mentira que alimento diariamente

ítalo puccini


domingo, 11 de agosto de 2019

minha antropofagia

edu foi uma paixão que me aconteceu
um acidente
autossabotagem
de um ideal nascido em mim na infância
de repetir minha mãe encantada por meu pai
mas com um novo final
feliz

edu sempre me foi uma criança
meu peter pan
uma eterna ausência de horário
com quem os momentos felizes
foram os imprevisíveis
e
como se fosse a primeira vez
aprendi a esperar o inesperado
a namorar em bandeiras separadas
a confiar na distância

edu foi minha paixão em palavra
o simbólico do traço que me atrai
enraizado em mim feito memória
os blogs
o papelão
os filmes
os shows
os livros

eu sempre quis me apaixonar por um homem
e edu apareceu a mim
enquanto prazer de linguagem
esse instrumento a partir do qual
escrevemos nossa história

eu penso em edu quando leio
e principalmente enquanto escrevo
lembrança mastigada
saudade engolida

edu é minha antropofagia cultural
meu nonsense vestido de poesia
esta sem a qual
não somos capazes de viver

ítalo puccini


segunda-feira, 5 de agosto de 2019

a intransitividade do verbo amar


     diz a gramática que o verbo “amar” é transitivo direto, ou seja, não exige uma preposição após o seu uso: quando se ama, ama-se alguém. então por que o título acima? porque assim mário de andrade intitulou uma de suas obras mais repercutidas – juntem-se a ela “Pauliceia Desvairada” e “Macunaíma”. talvez porque quem ama, ama. e pronto. desnecessárias são as explicações sentimentais.
     há, neste romance de mário, um narrador que propõe ao leitor, desde as primeiras páginas, uma liberdade de interpretação, um pacto mantido a partir do pressuposto de que, conforme afirma o crítico alberto manguel, em “Uma história da leitura”, “é o leitor que lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo”, algo observável neste trecho do livro de andrade: “Se este livro conta 51 leitores sucede que neste lugar da leitura já existem 51 Elzas. É bem desagradável, mas logo depois da primeira cena, cada um tinha a Fräulein dele na imaginação. Contra isso não posso nada e teria sido indiscreto se antes de qualquer familiaridade com a moça, a minuciasse em todos os seus pormenores físicos, não faço isso. Outro mal apareceu: cada um criou Fräulein segundo a própria fantasia, e temos atualmente 51 heroínas pra um só idílio. 51, com a minha, que também vale. Vale, porém não tenho a mínima intenção de exigir dos leitores o abandono de suas Elzas e impor a minha como única de existência real. O leitor continuará com a dele. Apenas por curiosidade, vamos cotejá-las agora. Pra isso mostro a minha nos 35 atuais janeiros dela”. 
     e assim o narrador apresenta aos seus 50 leitores – que, sabemos, são tantos mais – a fräulein, a personagem elza, permitindo a cada leitor criar sua própria imagem e seu próprio conceito de quem ela é. com esse recurso, mário de andrade convida o leitor a imergir ainda mais na obra, estabelecendo-se uma cumplicidade entre todos: autor, narrador, personagem e leitor. e mais adiante, no romance, há um outro trecho no qual o autor narra como a personagem lhe surgiu: “Que mentira, meu Deus! dizerem Fräulein, personagem inventada por mim e por mim construído! não construí coisa nenhuma. Um dia Elza me apareceu, era uma quarta-feira, sem que eu a procurasse. Nem invocasse, pois sou incréu de mesas volantes e de médiuns dicazes”. 
     ainda, em toda a sua obra, mário de andrade lutou por uma língua brasileira mais próxima do falar do povo, sendo comum iniciar frases com pronomes oblíquos e empregar as formas “si, quasi, guspe” em vez de “se, quase, cuspe”, por exemplo. ou seja, os brasileirismos e o folclore detiveram máxima importância para o poeta e romancista, e, além disso, as poesias, os romances e contos de sua autoria se revestem de uma nítida crítica social, cujo alvo são a alta burguesia e a aristocracia do início do século xx. desse modo, “Amar, verbo intransitivo” é também um romance preocupado em se aprofundar na estrutura familiar da burguesia paulistana, sua moral e seus preconceitos, ao mesmo tempo em que trata, em várias passagens, dos sonhos e da adaptação dos imigrantes à agitada paulicéia. 
     outrossim, empenhado em pesquisar os elementos mais característicos da identidade nacional, mário viajou pelo brasil coletando exemplos de manifestações folclóricas e musicais, na tentativa de compreender melhor a essência do país. para isso, pensou na criação de uma “gramatiquinha da língua brasileira”, que incorporasse os falares regionais e os neologismos sintáticos. não o fez efetivamente, mas suas produções apresentam uma provocação linguística encontrada em poucos autores – principalmente situando no começo do século passado – sobre isso, segundo Telê Porto Ancona Lopez, estudiosa da obra de mário, “Quando do aparecimento do livro, Manuel Bandeira justificou o aspecto mais chocante para a época: ‘A linguagem do romance está toda errada. Errada no sentido portuga da gramática que aprendemos em meninos. Do ponto de vista brasileiro, porém, ela é que está certa, a de todos os outros livros é que está errada. Mário se impõe à sistematização de nossos modismos’”.
     logo, sendo a língua uma realidade essencialmente variável – e qual realidade não é? – pressupõe-se a inexistência de formas ou expressões intrinsecamente erradas. assim, a crença na dualidade textos errados ou textos corretos não é cabível como parâmetro de leitura sem haver um contexto, existindo a necessidade de um olhar de adequação: textos mais ou menos adequados ou mesmo inadequados a determinadas situações. exatamente o proposto por mário de andrade, a partir de um olhar linguístico sobre a língua portuguesa, atento ao uso efetivo dos próprios falantes e não aos manuais de gramática. 
isto porque da teoria à prática a distância provoca redemoinhos. tal qual também no amor, esta impossibilidade transitiva. 

ítalo puccini

quarta-feira, 31 de julho de 2019

pronomes interrogativos

quando
se confundiu
vingança
com um prato
que se come
frio

quem
se esqueceu de que
é emoção
a vingança
e portanto
quente

como viver
com a consciência
de que
uma vingança
nunca será
plena

qual o sentido
e a eficácia
de uma vingança
silenciosa
e desconhecida
ao alvo dela

quanto desejá-la
se a vingança
é um dedo
pressionado
contra
a própria dor

o que
é a vingança
se não
uma tentativa
frustrada
de autoproteção

ítalo puccini


quinta-feira, 25 de julho de 2019

sinais de um relacionamento

são pausas as vírgulas
um tempo breve
um dia ou outro
de silêncio e solidão

quem sabe para se evitarem
as brigas em exclamações
ou os questionamentos em interrogações

quando os dois pontos
indicam suspenses
e falas outrora engasgadas

responsáveis pelos ponto e vírgulas
a servir aos que
têm amantes

travessões
que permitem a participação
de um aposto
quando dois se tornam
três ou mais

e o sexo está nas aspas
encaixe perfeito
quando uma abre
e a outra fecha

sendo as reticências
tentativas de se estender
o iminente fim

e os parênteses
aquelas visitas incômodas
que apenas adiam

o estopim
o término
o ponto final

ítalo puccini

domingo, 14 de julho de 2019

existência i

nós os chatos
às vezes não suportamos
a nós mesmos

ítalo puccini

domingo, 7 de julho de 2019

homeopatia

I
eu me apaixono pelo traço
por um viés

II
eu economizo demonstrações de afeto
enquanto mecanismo de defesa

III
eu me distancio
porque intensidade assusta

IV
eu me silencio
para ao outro não sufocar

V
eu valorizo mentiras sinceras
pelo desejo de não saber

VI
eu primo pelo contato pessoal
quando cada encontro é um aniversário

VII
eu me cubro de ironias
e resido íntimo na palavra

ítalo puccini


domingo, 30 de junho de 2019

pseudodadaísta

de que palavra você tem medo
eu perguntei

um enfrentamento
gerador de ansiedade
e dicotomias
eu sei
a partir do qual recebi reprovação 
pressuponho
emojis pensativos
e também me indagaram o porquê da pergunta
e qual a minha resposta
a ela

abro aposto
para reconhecer ciência de que
o medo
não reside na palavra em si
pois sim
quando há
é no significado
conferido a ela
a partir de vivências
e veredas leitoras
ou não

inclusive
de véspera 
eu reconheci minha pergunta
invasiva 
de modo que aceitei
quem me a devolveu
aos quais eu agora
respondo
temer mesmo
é a palavra vazio

entretanto
transformo a tristeza em poema
decisão de mudança 
e liberdade
e ainda
alheio aos cidadãos de bem
e às suas letargias
hereditárias
e ao bolsonaro
sem procrastinar
em definitivo produzo esse poema
pseudononsense e metalinguístico
ao libertar do aprisionamento 
do cativeiro
e do cárcere 
da doença 
da asfixia 
e da morte

essas palavras temidas

às quais há exceção 
pois para alguns
palavras não causam medo
podiam
mas 
não
enquanto a outros
o medo reside no próprio medo
no fim

e na solidão 

e eu entendo que há
injustiça 
e vergonha 
e fracasso 
nessa clausura de significado
carente de pensão 

e há também
decepção 
no controle
e na gestão 
de palavras
pois assim elas se restringem a
abandono 
e esquecimento

de maneira que
prometo não mais
provocar aquilo
que se escolhe
tornar silêncio
dentro si.

ítalo puccini


domingo, 23 de junho de 2019

palavra vazio

posso viver esperando abril
quando você chegar
em estado de palavra
tornando vento o vazio
o vento que não sabe o que é estar só 

eu que vivia preso à dor
limitado da palavra 
fiz do verão ansiedade
do vazio medo
fino frio de silêncio 

é o não dito entre nós 
paredes pintadas
de doçura e palavra
em vermelho azul e verde

hoje namoro em braços estendidos
o cotidiano em palavra
com o desejo de preencher
o vazio o susto a falta de ar
a cada acordar

fiz de deus carnaval em mim 
matéria de distância e descrença 
alheamento em palavra 
vazio de conforto 
e comoção 

é o não dito entre nós 
paredes pichadas
de doçura e palavra 
em vermelho azul e verde

ítalo puccini

segunda-feira, 10 de junho de 2019

crônica - ou ensaio - à la hatoum


     não conhecia o milton hatoum cronista. deparei-me com o livro “Um solitário à espreita” e o comprei, fazendo vibrar o prazer, pouco comum a mim, de uma compra inesperada. o título, aliás, é muito condizente com o jeito de ser do autor: um sujeito recluso, pouco midiático e de publicações quase raras. autor de apenas cinco romances e um livro de contos: com dois deles, “Relato de um certo Oriente” (1999) e “Cinzas do Norte” (2005) foi vencedor do jabuti de melhor romance; com “Órfãos do Eldorado” (2008), segundo colocado no mesmo prêmio; com “Dois irmãos” (2000), conquistou o terceiro lugar; e “A noite da espera” é o mais recente, lançado em 2017. quatro dos cinco romances são premiadíssimos, no brasil e no mundo, publicados em dezessete países até hoje. 
     a característica da crônica desse escritor amazonense é a de esticá-la um tanto a mais do que costuma ser comum ao gênero. são crônicas-quase-ensaios, nas quais o autor apresenta um fato cotidiano nos primeiros parágrafos para chegar ao, digamos, ponto-chave do texto, e então abordá-lo por mais algumas tantas linhas. isto na maioria das 94 crônicas que compõem o livro, algo que não diminui sua escrita, pelo contrário: apresentar uma unidade no modo como escreve demonstra segurança e a mim, enquanto leitor, muito satisfaz. 
     é dessa maneira que o autor desenvolve, por exemplo, “Liberdade em Caiena”, crônica que me despertou a escrever esta com a qual, até aqui, enrolo o leitor. no começo do seu texto, hatoum aborda a dificuldade que tem de conviver com tantas informações em um ritmo tão frenético de tempo, o que lhe resulta deixar passar a oportunidade de participar de debates, palestras e até encontros entre amigos: “Agora, ao fazer uma faxina na caixa de entrada, notei que havia 122 mensagens não lidas”. desse ponto para chegar ao tema: o convite, recusado pelo autor, por não ver a mensagem em tempo, para ir a caiena, capital da guiana francesa, lugar de muitas lembranças trazidas da infância e de seu avô.
     e o que me conduziu a escrever este texto foi esse modo de vida digamos que desacelerado do escritor amazonense, com o qual, a meu ver, muito se pode aprender, uma vez que, atualmente, não somos mais ensinados a viver ligados à tecnologia, e sim o contrário: nascemos imbricados a ela e precisaríamos, urgentemente, aprendermos a nos desligarmos mais. 
      algo assim como o que foi proposto pela jornalista eliane brum, quando escreveu uma crônica intitulada “É urgente recuperar o sentido de urgência”, na qual aborda o quanto nos tornamos dependentes do imediatismo, nas diferentes esferas sociais, privando-nos da nossa intimidade em prol de nos mostrarmos disponíveis a todos a qualquer momento do dia, atitude esta que eu vejo soar como uma pseudo-demonstração de atenção e respeito pelo próximo. assim argumenta brum: “Estamos vivendo como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata. Como se o tempo do ‘outro’ fosse, por direito, também o ‘meu’ tempo”. são tantas as frases certeiras que convido o leitor a ler a crônica dela na íntegra, percebendo, assim, a existência de outras maneiras de viver, oriundas de uma reflexão que envolve principalmente o ato de respeitar a si mesmo nesse emaranhado virtual que nos abraça e do qual não conseguimos, a priori, desgarrarmo-nos - afinal, alerta-nos a escritora, “Viver no tempo do outro – de todos e de qualquer um – é uma tragédia contemporânea”, da qual, parece-me, hatoum tem a mesma consciência.
      e é uma forma de preenchermos nosso ego, acrescento. ao mostrarmo-nos dispostos a qualquer momento do dia para sermos interrompidos de diferentes maneiras – sms, ligação telefônica, redes sociais, whatsap, visita-sem-combinação-prévia – disfarçamos o nosso egoísmo sob a veste falsa de dar atenção ao outro. ao expormos tal disponibilidade, estamos na verdade gritando para que nos procurem, para que nos olhem, para que curtam – o mais rápido possível – aquilo que acabamos de postar. e retribuímos o ato como forma de garantir que ele nos seja devolvido. 
      é o nosso ato de covardia, sobre o qual escreve o romancista jonathan franzen, num ensaio intitulado “Curtir é covardia”, no qual o autor apresenta um contraste entre as tendências narcisistas da tecnologia e o problema do amor verdadeiro, uma vez que o amor, enquanto verdadeiro, denuncia a mentira de que o mundo tecnoconsumista – e imediatista – exige de nós compreensão: “Se pensarmos nisso em termos humanos, e imaginarmos uma pessoa definida pela ansiedade desesperada de ser curtida, qual é o quadro que vemos? O de uma pessoa sem integridade, descentrada. Em casos mais patológicos, vemos um narcisista – alguém incapaz de tolerar em sua autoimagem as manchas que seriam representadas pela possibilidade de não ser curtida e que portanto busca uma fuga do contato humano ou se dedica a sacrifícios cada vez mais extremos da própria integridade com o intuito de ser curtida”.
      os comportamentos de milton hatoum e eliane brum (ela por exemplo abriu mão do aparelho celular e faz questão de ser contatada somente por e-mail) são aqui cronicados não como referência em termos de relações humano-sociais, e sim como alternativa, eco do que propôs franzen: um comportamento consciente, não-dependente, muito menos falso ou egoísta. 
      sendo assim, não defendo nesta croniqueta – que está mais para um ensaio – um posicionamento de contrariedade radical. se escrevo sobre esse assunto é porque a mim ele ainda se apresenta bastante confuso, tamanha a linha tênue que nos separa de uma dependência e de uma aversão tecnológica e social, ambas atitudes extremistas que nos implicam perdas. uma vez que somos bebês no contato com essa ultramodernidade na qual estamos inseridos, nada melhor do que o exercício de nos olharmos dentro desse meio, porque mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira, há décadas nos cantou o renato.

ítalo puccini

segunda-feira, 3 de junho de 2019

ouroboros

no estômago morreu a paixão 
em manhã de quinta-feira 
acordado em dor

meu sono é tristeza:
quimera suicida 
pelo calibre da sinceridade 

inconsciente engavetado na infância:
nascemos todos fetos prematuros 
de amanhã 

paixão irresistível ao trauma

quando se come a própria cauda
ilusão de ouroboros 

ítalo puccini

segunda-feira, 27 de maio de 2019

eu desejo, eu escolho, eu existo




     “eu desejo”, “eu desejo”, “eu desejo”. as primeiras cenas do filme “caminhos da floresta” apresentam esta frase. são quatro personagens que surgem na tela, revezando-se: joão deseja que sua vaca – milke white – dê leite;  cinderela deseja poder ir ao baile no palácio do rei; e o padeiro, mais sua esposa, desejam poder ter um filho. todos movem suas vidas a partir e em função desses desejos. ainda, um pouco mais pra frente nesse musical, surge a bruxa, cujo desejo é o de desfazer o feitiço lhe imposto pela própria mãe, o da feiura, que assim a transformou quando o pai do padeiro roubou delas os feijões mágicos. 
  e dessa forma esses desejos e histórias de vida se entrelaçam na narrativa, cuja trama paralela são os contos de fadas “joão e o pé de feijão”, “chapeuzinho vermelho”, “cinderela” e “rapunzel”. da seguinte maneira: a bruxa diz ao padeiro e à esposa deste que eles somente poderão ter o filho que desejam caso consigam para ela quatro elementos no meio da floresta: uma vaca branca como leite, um capuz vermelho como sangue, uma mecha de cabelo amarela como milho e um sapatinho tão puro como ouro. pois o casal vai até a floresta e lá se depara com: joão e sua vaca branca – a quem dão feijões mágicos em troca do animal; chapeuzinho e seu capuz vermelho; rapunzel e seu cabelo amarelo; cinderela e o sapatinho de ouro. 
  eis a trama desse musical, dirigido pelo mesmo diretor de “chicago”, rob marshall, que alterna cenas cativantes com outras superficiais e até mesmo vergonhosas, tal qual a canção apresentada pelo príncipe e seu irmão. porém, a reflexão que mais me martelou a cabeça durante o filme vem daquela primeira frase: “eu desejo”, remetendo-me ao livro de jorge forbes, “você quer o que deseja?”, cujo princípio, com base na psicanálise, é o de nos levar à pergunta-título: será que realmente queremos aquilo que desejamos?
  os personagens de “caminhos da floresta” percebem, mais para o final da narrativa, o quanto se equivocaram com relação ao que desejavam, afinal, conforme lacan, “desejar é sempre desejar outra coisa”. por exemplo: o padeiro se preocupa em ser um pai pobre e tão ruim quanto foi seu próprio pai; cinderela se desencanta com a vida no palácio; e a bruxa descobre, com a juventude restaurada, a perda de seus poderes. desse modo, eles repensam as próprias vidas e os caminhos que trilharão a partir daquele momento quando alcançaram aquilo um dia desejado. 

     esse filme me relembrou de um livro que anualmente lia para algumas turmas minhas: “joão e os sete gigantes mortais”, de sam swope, cuja história apresenta um personagem chamado joão, menino órfão, abandonado em uma aldeia quando bebê, e que lá cresceu, solitário, odiado por todos e considerado um menino mau, mau, mau. porém, diferentemente dos personagens do filme de rob marshall, joão tinha um só desejo e uma certeza sobre este desejo: queria encontrar a sua mãe. pois bem, a história se delineia para o leitor mostrando caminhos pelos quais o personagem principal passou para quem sabe alcançar o seu desejo. o enredo, de modo básico, é: um dia, saindo da aldeia onde não era bem quisto, ele encontrou um homenzinho, dividiu com este uma maçã, e recebeu, em troca, um feijão mágico, com o qual joão fez um pedido: quero minha mãe. nesse momento, apareceu diante dele uma vaca, e com ela o menino seguiu em frente, enfrentando gigantes mortais que rondavam a aldeia. 
     joão, ao contrário dos personagens de “caminhos da floresta”, queria exatamente o que desejava. pediu a mãe, recebeu a vaca, e não desistiu, muito menos mudou de ideia. porém, o que há de semelhança entre os personagens dessas duas histórias é que todos, independentemente do que sentiram após as escolhas que fizeram, antes disso assumiram uma decisão, escolheram um caminho, por consequência abrindo mão de outro e daquela vida que até então tinham. dessa forma, pois, todos exerceram a existência em caráter prático, de acordo com a analogia a descartes, proposta por forbes: “para tomar decisão, é necessário que a pessoa se pense, ou seja, penso, logo existo”. e se, ao pensar eu existo, ao desejar eu decido.

ítalo puccini

segunda-feira, 20 de maio de 2019

pequenas porções

o ser humano
ao criar o tempo
salvou a si mesmo
da loucura

é o final de ano
a nossa ilusão mais necessária

é um final de ano
por dia

ítalo puccini

domingo, 12 de maio de 2019

simbiose

o elefante que vive dentro de mim
sou eu mesmo.

ítalo puccini

segunda-feira, 6 de maio de 2019

não é impossível ser feliz sozinho

     e desculpe-me, tom, se a partir do título estabeleço um diálogo. veio-me tão forte que desejo expor sem cerimônias. porque algumas frases sabem ser porradas, cabendo-nos, então, bem utilizá-las com essa função. é o caso. 
     quem é que nunca teve medo de amar, não é mesmo, tom?
     o pescador, por exemplo, tem dois amores. um bem na terra, um bem no mar. 
     às vezes, é saudável ser sozinho, você não acha? até a beleza passa sozinha, a da garota de ipanema. acredito que de conflito o mundo já está repleto, portanto, um cadim de paz é sempre bem-vindo. e com isso defendo a ideia de que muitas das relações que estabelecemos com as pessoas nos causam dores e infelicidades. o que era para ser bom, assim não o é. fundamental é mesmo o amor, sem dúvidas. porém, é possível amar lá de longe, lá do mar, daquilo que não sabemos contar. o que nos encaminha a relativizar esse estar sozinho: isoladamente numa ilha não vivemos, então sozinho não somos. é condição humana básica a interação com outros seres, afinal, até mesmo robinson crusoé criou formas de sentir-se acompanhado na ilha onde esteve por mais de trinta anos. contudo, desassociando-nos da condição amorosa, por exemplo, torna-se possível tal viver. sendo assim, confundindo-me todo e quase vulgarmente falando, dá e não dá para ser feliz sozinho. 
     pois há quartas-feiras em que é só jogar a rede. e puxar. 
     joão ninguém que nos diga. 
     mudando um pouco de assunto, e ouvindo outra música, no peito dos desafinados também bate um coração, canta você. e eu leio a palavra desafinados para além do significado básico de alguém que não canta afinadamente: desafinado sou eu, muitas vezes grosseiro; desafinado somos nós, incompreensíveis e insatisfeitos; desafinada é a vida, essa alternância de sentires e razões. e que bom. seria tão mais desgastante se nos mantivéssemos sempre os mesmos, não é? tão insuportável se todo o dia acertássemos acordes e tons. vezemquando é válido ser vinícius de moraes. 
     quem não pede perdão nunca é perdoado. e também é preciso dizer adeus. à insensatez. 
     é pau, é pedra, é o fim do caminho. é o apito da fábrica de tecidos. ora é o corpo na cama, ora é a lama, é a lama. é a tristeza que não tem fim, a felicidade como a pluma que o vento vai levando pelo ar. que culmina com o medo matando o coração, afinal, é desconcertante rever o grande amor. e se você faz uma canção para esquecer luiza, tom, há quem escreva textos para exorcizar paixões também. minha alma, por exemplo, não canta, ela escreve. mesmo que seja um texto assim tão desprovido de energia. como uma vez me disse uma amiga: é que nos falta intimidade, a mim e a ti. 
esperemos, pois, o passarim pousar. 

ítalo puccini

domingo, 28 de abril de 2019

o que é saudade?


     um dia a josi me disse que o sentimento de saudade, pra ela, representa paz, porque, ao sentir saudade de alguém, ela se sente em sintonia com este alguém, como se um vivesse em estado de plenitude dentro do outro, de modo que esse sentimento – a saudade – pra ela nunca é dor ou sofrimento, mas aconchego e reciprocidade. e, assim, diferenciamos saudade de falta, esta responsável por machucar porque associada à perda e ao distanciamento eterno, como se cortassem um pedaço de nosso corpo, como se arrancassem de nós o sentido da existência. 
      e essa confusão de sentires e conceitos se dissemina socialmente muito em virtude da quantidade de músicas que discorrem sobre a saudade enquanto sinônimo daquilo que é falta e carência – segundo a definição do dicionário, inclusive, “saudade é sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, acontecimento ou lugar”, mas eu prefiro a definição da josi. e talvez a letra de música que melhor exemplifique esse conceito social seja “pedaço de mim”, do chico, na qual ele repetidas vezes se refere à pessoa amada assim “oh, pedaço de mim, oh, metade afastada/arrancada/exilada/amputada/adorada de mim”, definindo saudade como “pior tormento, pior que o esquecimento, dói como um barco, dor latejada, uma fisgada, o pior castigo”. 
     há de se cuidar também com a errônea crença de que saudade é exclusividade da língua portuguesa, pois, derivada do latim, existe em outras línguas românicas, envolvendo outros conceitos semânticos: no espanhol, soledad, e em catalão, soletad, ambas com sentido de nostalgia de casa; e na romena, saudade tem o mesmo conceito semântico de dor – diz-se durere – mais próximo do nosso significado usual. ou seja, na língua portuguesa se romantizou tanto esse sentimento que se popularizou o apego a ele como se exclusivo: somos possessivos até com as palavras. 
     de modo que lá fui eu novamente mexer com as pessoas mais ou menos próximas a mim, indagando-lhes: o que é saudade? e mais uma vez me senti em êxtase diante das respostas e de tudo o que as envolve, porque não é somente na resposta que presto atenção, mas também na escolha das palavras, no tempo em que elas vêm, na reação de cada um diante das minhas provocações, quando inclusive o silêncio, ou seja, a não-resposta, representa muito. e adorei a analogia que me apresentaram, de que saudade é como quando se assiste a um show do artista preferido, e ele não volta para o bis: você espera vivenciar mais daquilo que foi tão maravilhoso, mas, mesmo diante da ausência desse a mais, você se sente preenchido em felicidade e plenitude pelo que recém-viveu.
     ainda, gostei de quem me respondeu com outra pergunta: “o que não é mais saudade?” – fiquei pensando no quanto é horrível querer se livrar de um sentimento do qual não se consegue – e também agradeço a quem demonstrou preocupação comigo: “tá tudo bem, ítalo?”. assim como foram divertidas as três respostas irônicas: “nunca senti pra saber”; “é o que você sente por mim”; e “é meu coração palpitando quando ítalo lembra que eu existo”. eu gosto da ironia enquanto demonstração de carinho.
      carinho às vezes é coincidência: uma pessoa me disse justamente estar escrevendo sobre saudade, e do texto dela eu destaco o dizer de que “saudade é o lado bom da falta”, pois essa ideia se aproxima do conceito proposto pela josi, e também apareceu em outras duas respostas: “saudade é bom, a despeito de toda dor que carrega” e “saudade é uma falta que move, uma ausência que faz companhia”. e dessa maneira eu me despertei para outra definição, igualmente distante da ideia de dor associada a esse sentimento, de que saudade é uma aposta e só existe enquanto virtualidade: no encontro ela já deixa de ser e se transforma em prazer ou decepção. 
      e decepção é a acepção mais comum sobre saudade, sempre associada à falta, em especial na literatura, no cinema e na música. responderam-me ser a saudade: “formigamento no peito, um aperto que sufoca e queima um pouco a garganta”; “é um negócio completamente desnecessário”; “falta de algo que fez parte, que se confundiu um dia com aquilo que eu era”; “vontade de ter pra vida toda o que já não se pode mais”; “desejar o que se sabe que não existe mais”; “uma falta que a gente cria”; e “é prego, e o coração, martelo”. definição dolorosa e de igual viés poético essa última, reverberada em outras três: saudade “é o revés de um parto”; “é reflexo do meu eu de mim apartado”; e “é uma pétala a menos de flor”. 
      nessa perspectiva metafórica, canta o lenine que “saudade é um bicho grande / muito maior do que eu penso / quanto mais se expande, mais denso / quão mais denso, mais se expande / saudade é um bicho imenso”, em”bicho saudade”, letra na qual ainda se versa ser a saudade “um lindo bicho / que da fome se orienta” – inclusive, uma pessoa a mim respondeu associando saudade à fome, quem sabe significando serem ambas inerentes a nós humanos. 
      e sentem os animais saudade? também perguntei aos queridos e queridas. e a maioria acredita que sim, principalmente quando há vínculo de convivência com humanos e filhotes; há quem tenha certeza da presença desse sentimento nos demais seres – isto porque sentimento envolve alma, e alma os animais têm – mas também houve quem assegurasse que não, porque estudos indicam que por exemplo os cães, quando veem seus donos saírem, sentem como se estes nunca mais fossem voltar, de tal forma que a alegria no reencontro é um renascimento, não uma saudade. porém, duas pessoas consideraram a saudade nos bichos presente justo no momento do reencontro, e não enquanto um sentir a distância. 
      na próxima croniqueta, pois, direcionarei perguntas aos animais, afinal, conforme versa drummond, “o homem não é assim tão importante” – drummond, aliás, morreu doze dias após a morte da filha, diz-se que de saudade. 
      finalizo, portanto, novamente com a promessa de enviar a cada um dos participantes dessa entrevista uma playlist criada por eles mesmos, a partir das músicas que sugeriram a mim, momento no qual solicitei a cada um: envie-me uma ou mais músicas sobre saudade. afinal, conforme diz a pitty, em vinheta no novo disco, “saudade é vontade daquilo que já se sabe que gosta”, constatação à qual eu acrescento esta, de uma das pessoas a quem dirigi a pergunta-tema deste texto: “saudade é o desejo de reviver momentos de prazer e alegria com aqueles que nos fazem bem”.

https://open.spotify.com/playlist/0teWmczLxRt4aJRED199aQ?si=RbqMZMXrSUCcN9B37y_1xg

ítalo puccini

segunda-feira, 22 de abril de 2019

a casa da doença i

eu quero causar nela
a dor entranhada em mim

provocá-la em fúria
despi-la de si
desprezá-la em atenção

é o cheiro dela o meu ódio
represado em amargura
e ânsia

desde quando silenciei
meu câncer
e de repente me tornei
a casa da doença

ítalo puccini

segunda-feira, 15 de abril de 2019

ad infinitum

as perspectivas
são as piores
e ainda assim
todo dia nos levantamos
vamos ao banheiro
comemos
às vezes conversamos
empurramos o dia com ansiedade
e à noite nos deitamos
com a sensação de que amanhã
será pior do que hoje
e ainda assim
nos levantaremos
iremos
ad infinitum

ítalo puccini

domingo, 7 de abril de 2019

tierra debaixo d'água

      hoje uma música morou em mim, levou-me à praia, ao mar, àquilo de que mais sinto falta, àquilo de que me afastei há anos. eu me afastei de mim mesmo há anos, e quando a consciência disso atravessou o esconderijo e se estabeleceu diante de mim eu esmoreci. então, planejei uma maneira de fugir da minha memória: fumei um cigarro, caminhei, fiz compras, pintei, assisti a uma partida de futebol. e ouvi: “o mar promete terra seca ao viajante exausto”.
      porém não há facilidade em se alcançar o mar.
      eu era o viajante exausto, que não visitava mais o mar, logo, sem a promessa da terra seca. eu olhava para mim e para o universo de símbolos e pessoas ao meu entorno como se estivesse ausente, todo dia, vagando pela história da minha própria vida, “sonhando a cada dia em alcançar a praia”. e a mim, ao contrário do que canta a canção, sempre me acontece pensar que nada é para sempre, então eu me deixava mergulhado em frieza e infelicidade. eu desisti e me deixei, sabendo que “o mundo seguirá girando quando já não há mais nada”. 
     eu esperava pela “vida que sempre guarda algo que supera a melhor das fantasias”, mas era preciso que viesse de dentro de mim o inesperado. foi quando toda a dor me existente eu direcionei ao outro, a quem me alimentou dor – a dor que advém do desejo de não sentirmos dor. disparei, pois, “partes de poemas que eu tinha abandonado”, rimas de uma mente fatigada, melodias perdidas, e descobri que a vingança – principalmente retórica e silenciosa – é sentimento libertador. 
     entretanto não suficiente. 
     às vezes, o trauma, vestido de lembrança esporádica, rouba-nos a coragem de viver o presente e exerce sobre nós dúvidas capciosas, originadoras de angústias outrora escondidas. assim, sentindo-me manipulado pelo passado, embaralho os quereres e desvirtuo a realidade, visualizando por exemplo maldade em ações nas quais ela não existe. e a desconfiança diante daquilo que se vive é sentimento corrosivo e sufocante, é pior que amígdala inchada e unha encravada ao mesmo tempo.
      escrevo, pois, para alcançar a praia, entrar no mar e debaixo d’água gritar até renascer, feito fênix, formando-me novamente um feto: sereno, confortável, amável, completo, em especial sem contato com o ar. porque o ar me faz provar um gosto de final, ele peca em excesso de seriedade e aqui fora sufoca e dificulta a mim inclusive o engolir a saliva – lugar onde o trauma faz morada também e alimenta a insegurança. e debaixo d’água tudo é mais bonito mais azul mais colorido: só nos falta respirar. 
      mas temos de respirar.
      e a escrita a mim é como um aparelho médico que auxilia esse processo automático – e portanto inconsciente, no entanto de tanta exigência – denominado respirar, é ela quem me conduz à tierra, ao mar, ao debaixo d’água, a um lugar por agora desconhecido, que me lembra de freud: não é nossa a casa onde moramos. e eu ainda não me tornei morada de mim mesmo, por enquanto, “porque faz tempo que eu já me fui, pois sempre estou partindo” e reconheço o erro em ansiar esse desejo, pois o vazio não apenas está em mim, ele é elemento constituinte do ser. 
      logo, é importante aprender o exercício da resiliência, e para isso nesse momento eu vivo com o objetivo de não saber, ou seja, de desconhecer o que acontece ao meu entorno, uma vez que o ato de saber me causa temor, associado ao trauma de me sentir manipulado, usado e traído. assim, quando eu não vejo, não ouço e não sei, eu me defendo, e essa defesa não é do outro, mas de mim mesmo, do meu passado, de marcas ainda indeléveis, amenizadas quando entro no mar e escrevo. 

ítalo puccini