isso porque gregório de matos é baiano e franklin cascaes é manezinho da ilha. aquele, nascido e falecido no século xvii, doutor em direito pela universidade de coimbra, tornou-se o escritor mais representativo do barroco brasileiro, no que diz respeito ao texto literário. este, morador da ilha de nossa senhora do desterro, três séculos à frente de gregório, escritor, professor e escultor e desenhista, aprofundou-se no estudo sobre os costumes ilhéus, sendo considerado o artista mais completo da capital catarinense.
um
livro de poemas de gregório de matos – organizado por josé miguel wisnik – está
na lista de livros obrigatórios da universidade federal do paraná – ufpr – e um
livro de contos de franklin cascaes se encontra, como não poderia deixar de
ser, na lista da universidade federal de santa catarina – ufsc. e eu, cumprindo
com minhas funções docentes, tenho trabalhado em sala de aula tais obras,
aprofundando o estudo a respeito dos autores, das suas características textuais
e dos contextos nos quais eles produziram.
assim, numa bela tarde
de quarta-feira, entre livros, provas e redações, eu pensei na possibilidade de
escrever uma croniqueta – não haverá análise literária acadêmica aqui, é bom
que se deixe claro – relacionando estes dois escritores, não somente devido aos
textos de ambos, relação esta que ocorre através de elementos diferentes entre
si, mas ao fato de que há, nessas literaturas, um importante aspecto: o
reconhecimento cultural de dois estados brasileiros, distantes territorialmente,
mas quem sabe próximos em afinidades culturais.
cada um à sua maneira,
gregório e cascaes se valeram da arte literária – e cascaes de outras também,
conforme já dito – para apresentarem aos leitores um pouco do que se vivia em
salvador e em florianópolis nas respectivas épocas dos dois. desse modo, à
medida que lemos os poemas satíricos e religiosos do poeta baiano, por exemplo,
apropriamo-nos das críticas dirigidas pelo boca do inferno – o seu singelo
apelido – ao governo do estado, à sociedade e à igreja naquele século, da mesma
forma que se torna possível a nós conhecermos com riqueza de detalhes o
linguajar do morador do interior da ilha de santa catarina, seus costumes, suas
crenças e superstições em figuras míticas, tais quais lobisomens, bruxas e até
o diabo, representado pela figura do anjo lúcifer.
sobre gregório, eu
converso com meus alunos salientando a relevância cultural do seu texto,
afinal, vivemos hoje quatro séculos à frente do momento retratado por ele, e
ainda assim sua veia satírica se mantém atual, significando a ausência de
avanços comportamentais no que diz respeito a nós, seres humanos. basta, para
isso, a leitura de um poema tal qual este a seguir, no qual está exposta nossa
atitude curiosa e egoísta:
A cada canto um grande
conselheiro,
Que nos quer governar
cabana e vinha;
Não sabem governar sua
cozinha,
E podem governar o
mundo inteiro.
Em cada porta um bem
frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e
da vizinha
Pesquisa, escuta,
espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e
ao terreiro.
Muitos mulatos
desavergonhados,
Trazidos sob os pés os
homens nobres,
Posta nas palmas toda a
picardia,
Estupendas usuras nos
mercados,
Todos os que não furtam
muito pobres:
E eis aqui a cidade da
Bahia.
já cascaes faz uso constante de uma linguagem cuja preocupação reside no registro da língua falada pelos moradores de florianópolis quando a cidade ainda era denominada nossa senhora do desterro, uma língua, portanto, marcada por peculiaridades fonéticas, morfossintáticas, semânticas e lexicais:
“–
Primo Nicolau! Vossa mecê acardita memo de vredade naquelas istória que o nosso
povo lá das ihias dos Açôri (i) contavo prá nóis como vredaderas?
– Ah!... Sim, acardito de vredade, sim, minha prima!
E inté agora me veio uma delas, no bestunto da minha cabeça e que eu acho ela
memo munto inzata. Como tu bem sabes e vancês todos que tão aqui me osvindo,
aquelas ihia dos Açôri, de ondi os nosso avó, foram sempre munto infestada por
muhié bruxa que roubam embarcação prá móde fazê viagem inté a Índia em quatro
horas; que dão nóis nos rabo e crinas dos cavalo; chupo sangue de criancinha;
intico com as pessoa grande e pratico mil malas-arte.”
no entanto, também há
um viés crítico nos contos do escritor catarinense, como por exemplo através da
negação ao uso do nome florianópolis, uma vez que o autor era contrário à
politicagem inserida no projeto de modernização e urbanização da querida ilha
de nossa senhora da conceição, vocativo utilizado pelo narrador tantas vezes ao
longo do livro.
ainda, são múltiplos os
caminhos a serem percorridos a partir da leitura dos textos desses dois
escritores, conforme eu converso com meus alunos. gregório, por exemplo, fez
uso reiterado de figuras de linguagem e de inversões sintáticas nos seus
poemas, transitando pelo gênero lírico ao descrever a mulher amada e uma vida
amena ao lado dela – inclusive, retomando o carpe diem, essência da estética
clássica e neoclássica – enquanto cascaes explorou a riqueza sonora da
linguagem açoriana, assim como, o imaginário popular na constituição cultural
de um povo. com isso, da bahia a florianópolis, entre poemas e contos, é
possível a nós conhecermos um pouco mais de nossa cultura brasileira.
ítalo puccini