sábado, 28 de março de 2015

entre poemas e contos, da bahia a florianópolis


       isso porque gregório de matos é baiano e franklin cascaes é manezinho da ilha. aquele, nascido e falecido no século xvii, doutor em direito pela universidade de coimbra, tornou-se o escritor mais representativo do barroco brasileiro, no que diz respeito ao texto literário. este, morador da ilha de nossa senhora do desterro, três séculos à frente de gregório, escritor, professor e escultor e desenhista, aprofundou-se no estudo sobre os costumes ilhéus, sendo considerado o artista mais completo da capital catarinense.
            um livro de poemas de gregório de matos – organizado por josé miguel wisnik – está na lista de livros obrigatórios da universidade federal do paraná – ufpr – e um livro de contos de franklin cascaes se encontra, como não poderia deixar de ser, na lista da universidade federal de santa catarina – ufsc. e eu, cumprindo com minhas funções docentes, tenho trabalhado em sala de aula tais obras, aprofundando o estudo a respeito dos autores, das suas características textuais e dos contextos nos quais eles produziram.
assim, numa bela tarde de quarta-feira, entre livros, provas e redações, eu pensei na possibilidade de escrever uma croniqueta – não haverá análise literária acadêmica aqui, é bom que se deixe claro – relacionando estes dois escritores, não somente devido aos textos de ambos, relação esta que ocorre através de elementos diferentes entre si, mas ao fato de que há, nessas literaturas, um importante aspecto: o reconhecimento cultural de dois estados brasileiros, distantes territorialmente, mas quem sabe próximos em afinidades culturais.
cada um à sua maneira, gregório e cascaes se valeram da arte literária – e cascaes de outras também, conforme já dito – para apresentarem aos leitores um pouco do que se vivia em salvador e em florianópolis nas respectivas épocas dos dois. desse modo, à medida que lemos os poemas satíricos e religiosos do poeta baiano, por exemplo, apropriamo-nos das críticas dirigidas pelo boca do inferno – o seu singelo apelido – ao governo do estado, à sociedade e à igreja naquele século, da mesma forma que se torna possível a nós conhecermos com riqueza de detalhes o linguajar do morador do interior da ilha de santa catarina, seus costumes, suas crenças e superstições em figuras míticas, tais quais lobisomens, bruxas e até o diabo, representado pela figura do anjo lúcifer.


sobre gregório, eu converso com meus alunos salientando a relevância cultural do seu texto, afinal, vivemos hoje quatro séculos à frente do momento retratado por ele, e ainda assim sua veia satírica se mantém atual, significando a ausência de avanços comportamentais no que diz respeito a nós, seres humanos. basta, para isso, a leitura de um poema tal qual este a seguir, no qual está exposta nossa atitude curiosa e egoísta:
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,

Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.


já cascaes faz uso constante de uma linguagem cuja preocupação reside no registro da língua falada pelos moradores de florianópolis quando a cidade ainda era denominada nossa senhora do desterro, uma língua, portanto, marcada por peculiaridades fonéticas, morfossintáticas, semânticas e lexicais:
“– Primo Nicolau! Vossa mecê acardita memo de vredade naquelas istória que o nosso povo lá das ihias dos Açôri (i) contavo prá nóis como vredaderas?
Ah!... Sim, acardito de vredade, sim, minha prima! E inté agora me veio uma delas, no bestunto da minha cabeça e que eu acho ela memo munto inzata. Como tu bem sabes e vancês todos que tão aqui me osvindo, aquelas ihia dos Açôri, de ondi os nosso avó, foram sempre munto infestada por muhié bruxa que roubam embarcação prá móde fazê viagem inté a Índia em quatro horas; que dão nóis nos rabo e crinas dos cavalo; chupo sangue de criancinha; intico com as pessoa grande e pratico mil malas-arte.”
no entanto, também há um viés crítico nos contos do escritor catarinense, como por exemplo através da negação ao uso do nome florianópolis, uma vez que o autor era contrário à politicagem inserida no projeto de modernização e urbanização da querida ilha de nossa senhora da conceição, vocativo utilizado pelo narrador tantas vezes ao longo do livro.
ainda, são múltiplos os caminhos a serem percorridos a partir da leitura dos textos desses dois escritores, conforme eu converso com meus alunos. gregório, por exemplo, fez uso reiterado de figuras de linguagem e de inversões sintáticas nos seus poemas, transitando pelo gênero lírico ao descrever a mulher amada e uma vida amena ao lado dela – inclusive, retomando o carpe diem, essência da estética clássica e neoclássica – enquanto cascaes explorou a riqueza sonora da linguagem açoriana, assim como, o imaginário popular na constituição cultural de um povo. com isso, da bahia a florianópolis, entre poemas e contos, é possível a nós conhecermos um pouco mais de nossa cultura brasileira.

ítalo puccini 

sexta-feira, 20 de março de 2015

cãimbra

uma crônica em forma de poema eu escrevi pros meus amigos do
grupo “udesc ou itapema?” que eu criei essa semana no whatsap
depois que eu comprei um iphone rosa
grupo composto por três pessoas um grupo aliás fonte de inspiração
por exemplo para esta espécie de crônica em forma de poema
que eu disse a eles que escreveria depois de lhes fazer a seguinte pergunta
vcs já sentiram cãimbra na uretra
assim mesmo com til e m e palavra abreviada
porque eu me recuso a escrever formal ou corretamente em chats
na verdade eu me liberto nesses espaços de interação virtual
eu que sempre fui fechado à ideia de modernidade tecnológica
agora percebo o quanto minha produção escrita advém de tais veículos
mas também muito disso se deve à intimidade que tenho
com algumas pessoas com as quais dialogo por ali
inclusive acho que vou falar disso na análise
é uma contradição interessante
mistura repulsa com criação poética
eu tou há meses querendo escrever um poema e nada consigo
agora com cinco dias de whatsap este poema mesmo que quase narrativo
assim me brota
uma aberração poética na verdade fonte de críticas por parte dos críticos literários
online
é uma raça bastante numérica que deve sentir cãimbra na uretra ao mijar
para a qual eu não dou a mínima afinal se eu fosse escrever pensando em quem vai ler
eu jamais escreveria algo eu iria sei lá lecionar literatura
então que a minha escrita não se preocupa com o leitor
ao contrário de brás cubas que se dirigia aos seus de maneira agressiva
eu faço pouco caso eu sou displicente
eu escrevo poemas enquanto assisto a jogos de futebol
eu escrevo poemas com versos clichês
enquanto vejo o meu ídolo messi fazer poesia com a bola nos pés
mas esta metalinguagem da qual me utilizo é apenas recurso estilístico para desconversar
para tergiversar
para irritar
para não pensar na cãimbra que sinto na uretra
vcs também a sentem
ponto de interrogação

ítalo puccini

sexta-feira, 13 de março de 2015

a metalinguagem da necessidade fisiológica

é bom às vezes não colocar o mata mosquito no banheiro afinal quando surge com força a vontade de fazer cocô naquelas vezes em que não há tempo de pegar algo e levar pra ler a ausência do mata mosquito tem como consequência a presença de alguns desses bichinhos em tal lugar eles entram através da janela do duto o único caminho de ventilação ou seja não há como mantê-lo fechado o banheiro fede demais então eu prefiro lidar com os insetos a lidar com o mau cheiro e até mesmo é uma maneira de me ocupar durante aquela ação naquele espaço uma vez que sem livro ou palavras cruzadas e com o celular largado em algum cômodo da casa a presença dos mosquitos torna o momento bastante interativo por exemplo eu pego a toalha de rosto pendurada ao lado do bacio e do granito da pia porque tudo no banheiro é compacto ao extremo e com ela eu inicio minhas tentativas de fazer morrer aqueles seres ariscos que quanto mais são acertados menos cambaleiam parecem saber da existência de uma guerra ali estabelecida eles escapam das toalhadas voam para trás de mim de modo a impossibilitar-me de acertá-los e às vezes se escondem dentro do box lugar onde eu não os alcanço com a toalha dessa forma eu aproveito para descansar um pouco relaxar curtir o momento contar azulejos eu e os azulejos temos uma relação numérica eu os vejo e já começo a contá-los seja na diagonal, na horizontal ou na vertical até que percebo um mosquito pousando em um deles em um dos azulejos paro imediatamente a minha contagem afinal depois eu posso reiniciá-la me é sempre um prazer contar azulejos é uma mania é motivo para tratar em terapia quem sabe e eu recomeço as toalhadas em direção aos bichinhos interativos eu repito os meus movimentos eles repetem os seus movimentos eu repito palavras neste texto propondo assim uma metalinguagem não só literária como fisiológica uma reflexão sobre o ato da escrita advindo de uma vontade de fazer cocô que vem com força e me impossibilita pegar algo pra ler e realmente não há nenhum material de leitura no banheiro porque o banheiro é muito compacto apartamentos hoje em dia são compactos o casal não pode mais dialogar no banheiro enquanto um toma banho ou outro faz xixi ou cocô por exemplo isso não acontece mais nos apartamentos modernos feitos para a classe média assim não há espaço para algum suporte onde caibam livros revistas palavras cruzadas qualquer material de leitura o que é uma pena afinal ler no banheiro traz consigo a certeza de que não haverá ninguém fazendo perguntas tal qual o que é que você está lendo porque uma das situações mais deselegantes a serem vivenciadas envolve uma pessoa um livro e uma outra pessoa quanto esta última chega e interrompe a concentração daquela primeira com a típica pergunta o que é que você está lendo e no banheiro não há como algo assim ocorrer principalmente nesses apartamentos modernos onde tal lugar é um cubículo onde tudo é muito compacto e justamente em função disso que não há material de leitura para eu ler enquanto faço cocô sendo assim me resta matar os mosquitos quando o mata mosquito não está colocado na tomada e como houve um aumento excessivo na conta de energia elétrica nos últimos meses eu não posso abusar desse elemento químico cuja ação envolve o assassinato animal portanto haverá sim muita interatividade durante esses momentos do meu dia-a-dia garantindo quem sabe a produção de futuros textos posso até não escrever resenhas de livros que li no banheiro mas quem sabe eu me torne um escritor de narrativas metalinguísticas envolvendo as necessidades fisiológicas

ítalo puccini