sexta-feira, 6 de abril de 2012

Fodidos pela arte. E pela linguagem.

"Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louca aventura de viver no mundo".
Esse Eduardo Galeano, no texto "Celebração das contradições/ 2", no "Livro dos abraços", leva-me à palavra. Que por si só contradiz. E consequentemente acontece com quem dela faz uso. E que bom que assim é. Perfeição de entendimento tornaria o mundo mais caótico do que já é, acredito.
Existimos pela incompletude da linguagem. Não nos há como fugir disso.
Há uma passagem da peça "Passport", da Companhia Rústicos Teatral, em que um dos policiais diz ao outro algo mais ou menos assim (porque toda transcrição de fala é imperfeita por natureza): "O que me tranquiliza, chefe, é saber que nessa vida estamos todos fodidos".
E não é assim? 
A sinopse da peça diz: "Tudo acontece em alguma cidade, algum país esquecido. O Oficial e o Soldado exercem suas funções cotidianas sob a ordem dada em outro tempo. E em eterno presente, o Cidadão se vê em alguma cidad, algún país olvidado. Mesmo falando a mesma língua, Cidadão e Soldado não conseguem se entender quando chegam ordens do Oficial (o chefe). O Cidadão é preso como um suposto terrorista e é na cela que, segundo o diretor da peça, Samuel Kühn, os personagens são envolvidos “em situações absurdas desencadeadas, sobretudo, pelo conflito linguístico, em que são abordadas questões como a incomunicabilidade e a perda de sentido". A peça, baseada em um texto do dramaturgo venezuelano Gustavo Ott, explora os limites da linguagem, a incapacidade de comunicação entre as pessoas, mas não só. Ela inquieta o leitor que assiste a ela porque não há o que ser feito numa situação em que duas vozes dialogam cada uma em uma dimensão própria, podemos chamar assim. Nós que assistimos alcançamos essas duas dimensões (quem sabe?), mas não nos cabe intervir. Talvez se tornaria, a nossa, apenas uma terceira voz se perdendo entre as outras duas. Quanto mais alto o barulho, menos se ouve dele. 
Mas voltando à frase presente na peça, desde que assisti a ela duas vezes, não me sai da cabeça. E eu vivo repetindo-a, às vezes em alto e bom som. Como que para internalizá-la mais e mais. E para me sentir mais leve também. Porque haja mania grandioloquente de nossa parte em tornar maior aquilo que é tão pouco, não é mesmo? 
Eu escrevo personagens por aí. Dia sim, outro também. Vários personagens, às vezes. Noutras, grudo-me em um só. Sinto-me sempre acompanhado. Não só ouço, como também falo. Dividimos pedaços de vida. Compartilhamos felicidades e frustrações. Trilhamos caminhos separados, sim, mas unidos de alguma forma. Pela fala. E acreditamos num entendimento mútuo do que falamos entre nós. É melhor assim. Por mais que saibamos que entender mesmo a gente continua entendendo só o que queremos dizer e o que queremos ouvir. E o nosso querer não é nosso, no sentido de ser de dois. É um querer de cada um. Compartilhados. Misturados. Mas não tornado um só. 
Então que ter essa ciência, de que estamos fodidinhos - graças a deos - no mesmo barco alivia muito a vida. 
É uma forma de nos abraçarmos, talvez. 

Ítalo Puccini