Eis
o que é possível encontrar no filme “Narradores de Javé”, dirigido por Eliane
Caffé, vencedor de melhor filme no VII Festival Internacional de Cinema de
Punta Del Este (2004) e no 5º Festival de Cinema des 3 Ameriques (2004, Quebec,
Canadá). Produção nacional de 2003 que aborda o sumiço da cidade de Javé, a ser
submersa pelas águas de uma represa.
Taí
um filme que procuro trabalhar em sala de aula com turmas do Ensino Médio,
abordando não somente a desagradável situação da tomada de terras alheias, mas
também a importância da escrita, e sua distância para a oralidade. São
conversas que transitam pela trama, pela importância que adquirem a memória e a
oralidade na história, e pelos caminhos através dos quais o filme nos leva à
literatura.
Tudo
acontece a partir do drama que enfrentam os moradores de Javé: a instalação de
uma usina elétrica no vilarejo vai levá-lo a não mais existir no mapa. E a
solução que lhes resta é uma só: registrar por escrito o vilarejo, tornando-o
de valor histórico e científico, conforme falam. É preciso contar a história de
Indalécio, o fundador de Javé.
Eis,
então, o momento em que surge o personagem Antonio Biá, o salvador dos
habitantes de Javé, aquele que em anos anteriores fora expulso de lá pelo
motivo que agora o trazia de volta: a escrita de histórias. Biá é chamado para
escrever a história de Javé, por ser o único ali que sabe escrever (Biá
trabalhava na agência dos correios em Javé. Como ninguém fazia uso da escrita e
da leitura, ele passou a inventar histórias dos moradores da localidade, como
forma de tornar a agência movimentada, e assegurar seu emprego. Justamente por
isto foi expulso pelos moradores quando descobriram o que ele inventava).
No
momento em que Biá passa a ouvir as histórias dos moradores de Javé é que
passamos nós, telespectadores, a percebermos como a memória oral de cada um
privilegia aspectos e detalhes que ninguém conhece, e que jamais serão
registrados como de fato aconteceram. Passamos a perceber o quanto a escrita
não dá conta daquilo que é da oralidade. E também o quanto toda escrita fica
marcada por aquele que a produz, o que nos leva a pensarmos na isenção do
historiador no momento de registrar uma história.
Biá vai
ouvindo as versões de cada habitante de Javé. Cada um "puxando a
sardinha" para o seu lado, apresentando algum detalhe que antes não havia.
Como já dizem os ditados, quem conta um conto, aumenta um ponto. E existem
sempre três verdades: a minha, a sua, e a que de fato existe. E Biá deixava
claro aos moradores: Uma coisa é o fato acontecido. Outra, o fato escrito. E
as verdades produzidas pelos moradores do vilarejo são compostas de memória.
De uma memória mítica, onde se encontra com a fala. Uma memória que é feita de
fala, que é produzida pela narração.
Diante
disso, algumas pontes que podemos estabelecer com a literatura fazem referência
a dois aspectos textuais apresentados pelo teórico Mikhail Bakhtin, a polifonia
(as várias vozes de um discurso, uma vez que a coexistência de inúmeros
narradores, narrativas e formas de narração compõem uma heterogeneidade
discursiva, que é o que observamos no filme, nas várias narrativas que o compõem)
e o dialogismo, a partir de uma citação do próprio Bakhtin: "Tudo se reduz
ao diálogo. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina, nada
resolve. Duas vozes são o mínimo de vida".
Além
disso, importante lembrar das várias leituras que podem e devem ser feitas de
uma mesma história. A história de Javé é, na verdade, as histórias de Javé. A
história de cada morador é a leitura que cada um deles faz da localidade em que
vive, o que prova que não existe uma só maneira de se ler algo, e sim maneiras
de se ler. E de se escrever.
Ítalo Puccini
Ítalo Puccini