clara é o nome da nossa vira-lata, que há vinte dias está conosco, presente recebido da mãe da amanda, da própria amanda e do marco vasques – isto porque sobram cães e gatos na casa da dona maria, e, num domingo qualquer, almoçando por lá uma deliciosa carne preparada pelo chef literário vasques, a rafa bateu o olho nessa princesa de apenas quatro meses, de pelagem preta, com as patas, o peito e os traços da cabeça em tom amarronzado e uma barriguinha saliente, rosada, um charme a mais nesse corpinho miúdo de patas grandes, que dia a dia vem espichando, parecendo uma mistura de rottweiler com basset, sendo na verdade uma vira-lata puríssima, de pai e mãe vira-latas, ambos de tamanho médio.
uma
das orelhas dela insiste em ficar dobrada para trás.
inicialmente, demos a
ela um nome composto: clara nunes. porém, a referência é muito forte, cuja
história de vida contém marcas que, a nosso ver, não caberiam a esse tisco de
cão. assim, abreviamos. chama-se, agora, clara. nos momentos de puro-amor ela é
clarinha, cuti-cuti, ai mo deuzo, amor da minha vida; entretanto, quando
apronta, o tom de voz aumenta, e a chamada é: clara, não! – alternância esta que ocorre com bastante frequência ao longo do
dia, por exemplo: quando ela desembesta a correr pra lá e pra cá, pulando,
latindo, devido às provocações que fazemos, ou quando ela dorme, tão linda,
aninhada aos nossos pés, ela é a clarinha; diferentemente dos momentos em
que cava buracos no gramado, tenta morder chinelos, tapetes ou almofadas ou faz
manha para dormir, deixando de ser a 'inha' e tornando-se uma
simples cachorra que merece apanhar e ficar de castigo.
porque o amor e o ódio
se imanam nas fogueiras das paixões, já cantava a elis.
e agora durante as
férias um pouco da rotina – sobre dormir e acordar – tem sido assim: clara dorme no nosso
quarto, amarrada a guia à coleira e ao cabideiro, deitada sobre um tapete,
aninhada a um ursinho igualzinho a ela, de cor preta com manchas em marrom. clara
dorme presa à guia devido a uma simples razão: não ficar durante a madrugada
andando pelo apê, fazendo tec-tec-tec-tec com as compridas unhas, barulho este
realçado pelo piso amadeirado cá de casa. e ela dorme que é uma beleza, até
umas 6h ou 7h da manhã, quando uns baixinhos sons de choro podem ser ouvidos: é o momento de levantar, tirá-la da guia e ir com ela para a parte
externa, o gramado. enquanto ela come a ração e bebe a água e depois faz suas
necessidades, eu preparo umas torradas com geleia e me sento também lá fora, a
ler e a comer, lutando bravamente contra os mosquitos ainda presentes ao raiar
do dia. minutos depois, é hora de voltarmos a dormir. ela entra sozinha em casa
e já se dirige ao quarto, para onde também vou. assim temos mais umas horas de sono, a depender do momento em que acordará o vitinho, pois é ele
quem vai ao nosso quarto soltá-la e começar a algazarra do dia, tão bem feita
pelos dois.
bola de meia, bola de
gude, o solitário não quer solidão.
e a clarinha muito
menos. onde nós estamos, lá está ela – agora que escrevo, por exemplo, está deitada sobre meu pé, dormindo profundamente; enquanto preparamos o café, o
almoço ou a janta: deitada no tapete ao pé da pia; enquanto assistimos às
séries e aos filmes na televisão da sala: deitada nos nossos pés, no chão, no
pufe ou no sofá, entre nós; quando nos levantamos para ir a outro cômodo:
tec-tec-tec-tec, lá vem ela atrás. paramos de andar, ela para e senta. voltamos
aonde estávamos, ela volta também. vou lá fora jogar o lixo, ela chora dentro
de casa. houve uma manhã, inclusive, em que eu, caindo de sono, deixei-a na
parte externa do apê, fechei a porta e voltei a dormir. levantei-me perto das
dez, fui procurá-la e cadê? (aí vem o desespero: tum-tum-tum!). corri pelo
prédio, a procurá-la. rafa a encontrou, em poucos minutos, quando a vizinha do apartamento ao lado abriu a porta e a trouxe. disse que a encontrou presa na grade que divide
nossos jardins, tentando passar para o lado de lá. ou seja, quando se viu
sozinha, bateu o desespero do abandono, fugiu para a família ao lado – não sem
antes muito chorar e latir.
agora, ela vai lá fora,
senta e olha.
e o título desta
croniqueta-quase-ensaio é oriundo do livro que tou lendo nessas duas semanas de
rotinas-com-a-clara: a elegância do ouriço, de muriel barbery, cuja história
envolve duas narradoras: paloma, adolescente de 12 anos que promete suicidar-se
no dia do seu próximo aniversário, e renée, zeladora do prédio onde paloma e
outras tantas personagens vivem, no centro de paris. o objetivo de vida de
ambas é o mesmo: apagar os traços de suas existências. os capítulos se alternam
entre essas duas vozes narrativas que tão bem escrevem e conversam com o
leitor, propondo uma série de reflexões existenciais, a partir da realidade
frívola que as cerca, isto através de ironias e descrições divertidas
sobre o comportamento de cada personagem, coincidências que envolvem variadas
manifestações artísticas e cenas cotidianas junto às quais o leitor pode muitas
vezes se reconhecer. é, a meu ver, um livro que pede uma leitura mais lenta,
espaçada, um pouco por dia. senti isso desde que comecei a lê-lo e dessa forma
tenho feito, aproveitando-me do despertar matinal de clara para isso, para ler
algumas páginas e então parar, voltar a dormir, quem sabe durante o dia ler
mais. parece-me que há livros para serem lidos assim, a partir do ato de levantar a
cabeça após a leitura, proposto por barthes, o mesmo movimento que faz clara ao
ir para a área externa do apartamento: ela anda um pouco, para diante da
comida, olha, sente o cheiro, senta e então começa a comer; a seguir,
levanta-se, anda outro pouco e senta-se no limiar do piso com o gramado, olha,
sente o cheiro, para só depois andar pelo próprio gramado.
eis a elegância de
clara.
ítalo puccini.