sexta-feira, 23 de outubro de 2009

um texto-história para uma história-poema

A vida é costura
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Uma palavra é um entrelaçamento de letras. Uma história é um entrelaçamento de palavras. E sentires.
_____A vida é por um fio. Sempre.
____Às vezes, um entrelaçamento de fios. Mais das vezes, embaralhados.
____Viver é desfiar palavras.
____João sabe disso.
____Que João?
____O “João por um fio”, criado pelo Roger Mello.
____João tem uma história própria. Este João. Uma história dele. Sobre ele. Uma história que ele deixou compartilhar conosco, seus leitores.
____Conhecer histórias é viver também. Um cruzamento de histórias. Costuras de vida.
____A história deste João começa assim:
______João se pergunta, ao dormir: “Agora sou só eu comigo?”.
_____Pode ser, respondemos. Como pode não ser.
_____João sonha quando dorme. O que significa que nem sempre seja ele com ele somente. E há os leitores, claro, que o acompanham enquanto ele dorme.
____Os leitores a quem cabem algumas perguntas de respostas-não-prontas:
____“Onde é que se esconde a noite que beija João?”
“Quem tem medo de um gigante chamado João? Ou quando é que o gigante dorme?”
“Se João cai no sono, com que paisagens ele sonha?”
“E se o medo derrama, João é que abre a torneira?”
“Que rede segura um peixe maior que a gente?”
“De que tamanho é o furo na colcha que cobre João?”
“Como se para um furo que não para?”
____De repente, eis que, num susto, João acorda, e se preocupa: “Quem desfiou minha colcha?”.
_____Nós, leitores, sabemos quem foi. Ou como foi que a colcha se desfiou. Mas não podemos falar a João. Não podemos porque ele precisa descobrir o desenrolar da sua colcha. Ele precisa sentir como isso aconteceu. Ele precisa aprender a costurá-la novamente.
____E João mostra saber disso: “No meio do vazio viu palavras espalhadas no chão”.
_____Então, ele resolve costurar palavras “como retalhos numa colcha”. E, ainda mais. “Enquanto costura, João inventa uma cantiga de ninar”.
_____Faz mais do que imaginávamos. Surpreende-nos.
_____E a nós, que acompanhamos João assim de perto, fica a pergunta: “De que tamanho é a colcha de palavras que cobre João?”.
____Mas não nos fica somente esta pergunta. Por trás dela há outra, que João espertamente nos deixa:
______De que tamanho é a colcha de palavras que nos cobre?
_____E, para respondê-la, cabe-nos fazer como João: ao sonhar, desfiar a colcha que nos cobre, abri-la, explorá-la. Expormo-nos. E, depois, costurarmos palavras que nos cobrirão novamente.
_____A vida são ciclos, mostra-nos João.
____A vida é um se despir para se conhecer.

Ítalo Puccini

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

o livro é. apenas. o amor é. também.

     reli o livro “as mãos”, do manoel ricardo de lima.
     já havia lido esse livro anos atrás.
     encontrei-o na biblio do sesc. peguei-o. li-o.
     gosto desse livro. gosto da narrativa – intimista, a meu ver – criada pelo manoel. da narrativa que, segundo consta na orelha do livro, tem pretensão de ser de amor, mas que nem por isso seja: “Este livro é só uma história de amor, como acredito que seja qualquer história de amor: uma alegria, uma impossibilidade, um gesto, um confinamento, uma delicadeza”.
     é um livro dividido em cinco capítulos: um, dois, três, quatro, um. começa onde termina. termina onde começa. como o amor, não? ou melhor, sem começo e sem fim. não é para ser entendido. como o amor. “este livro é somente”, ainda consta na orelha. começa com “um confinamento de tempo, tudo é dentro de casa. Entre paredes”. termina com “é que Lá fora, custa-me dizer, não existe mais”. é onde vírgulas e pontos se perdem.
     deixo aqui um trechinho. aquele que eu mais releio. não sei o porquê. nem há necessidade de se saber. apenas é. como o livro.
     “Apanhava as mãos, soltas, enrijecia os músculos do antebraço, erguia os ombros a cada tom mais alto, ou mais baixo, tanto fazia, creio, era sincero vê-La dar ordem ao piano, cantar: dizia a Ela, das mãos. Dizia do aperto, da frouxidão de existir, da possibilidade de terminar a canção, daquele fim de passeio ao piano, do preenchimento da casa, e me dava. Sem diminuir o nariz, para frente, cheirava o ar, fundo, olhava sério, sorria e me repetia a frase que um dia disse, eu, sem querer, em caminhada pelo parque, em dispersão sobre música poesia e água corrente, sobre a forma que Ela delineava o piano e sobre a atenção que me engolia estar ao lado, estivesse onde, fazendo o que fosse, parava tudo para ouvi-La, vê-La: Perto não se fica a quem não se conhece as mãos. Sorri, tímido, mas sorri com alegria que nem longe agora imagino descrever, nem conseguiria. Tudo está, parece-me, desapercebido” (p. 17)
     ah, e reler esse livro me fez voltar a ouvir nei lisboa.

ítalo puccini