sábado, 16 de maio de 2015

no jardim atrás de nossa casa

ver o filho ser mandado para fora de casa talvez tenha sido a maior dor da sua vida.
sempre submissa a uma voz masculina que, de maneira grosseira e autoritária, demarcava o ambiente familiar, helena recebera educação formal de seus pais – ele militar, ela dona de casa. jamais pôde desligar-se de uma rotina que incluía afazeres domésticos, desde arrumar o quarto do irmão a encerar o piso dos cômodos do lar, inclusive sendo responsável por limpar os janelões, estes que, para ela, simbolizavam o lá fora, aquele espaço-tempo ausente. tão bonito deve ser olhar de lá para cá, pensava ela, cuja vida sempre fora por entre os cômodos da enorme casa da família, de onde nunca saíra, senão quando se casou – o pai chegou para jantar, naquela noite, acompanhado de um amigo, dono de uma fábrica de roupas no centro da cidade. este, bem apessoado, de cabelos grisalhos e sorriso sedutor, contador de causos envolvendo as famílias mais conhecidas da região e opinador sobre assuntos políticos e econômicos, encantou a todos os presentes na ceia, menos à helena: tão boçal quanto meu pai.
- minha filha, venha conhecer o seu futuro marido. certamente, um homem que a tratará com o melhor que uma mulher como você pode querer.
uma mulher como ela.
ser mãe tornou-se um processo natural. assim como fora casar-se com joão roberto filho – natural porque obrigatório. joão exigira que a criança tivesse o seu nome, também nome do seu pai. devido a isso, acrescentara neto ao filho: joão roberto neto. e um eco que perturbava helena, mesmo que ela não tivesse consciência de que os calafrios que sentia ao ouvir o nome do filho se devessem a essa cacofonia, fruto de mais uma ação ególatra do seu marido – além dos jantares dos quais somente ele participava, das viagens individuais a trabalho e do escritório, espaço destinado somente a ele. eu mesmo o limpo, semanalmente, orgulhava-se.
a única escolha que coubera a helena fora a do nome a ser dado à filha do casal, prevista para nascer dali a cinco meses. esta criança – fruto de uma relação sexual ocorrida a partir do estado embriagado e, por consequência, violento do marido: só assim para ele tocar-me, pensava ela, prensada contra a cama por aquela forma desengonçada, que, após três minutos de contato físico, levantou-se e foi limpar-se no banheiro – era, para a mãe, a possibilidade de ter uma companhia novamente, de amenizar a dor deixada pela saída de joão, por quem ela chorava baixinho diariamente, há dois meses: vou protegê-la desse mundo cruel, eu juro que vou. para o pai, mais uma a contribuir com o serviço doméstico: agora você vai ter uma pessoa a te ajudar a manter essa casa limpa. vê se a educa direito, para não perdê-la também.
- ela vai se chamar maria.
- ok.
joão e maria. e a originalidade do casal.
porque fora de joão roberto filho a ordem para que joão roberto neto saísse de casa, e não volte nunca mais a pisar os pés nessas terras que são minhas, seu fedelho, metido a intelectualzinho, caia já fora daqui, eu não acredito que coloquei em você o meu nome, o nome do meu pai, de pessoas trabalhadoras como nós, que batalham dia após dia para o enriquecimento da família, para colocar o pão na mesa, para ampliar nossos poderes nessa sociedade hipócrita e gananciosa como é a nossa, e agora você me dá esse desgosto, de ter um filho metido nos grupos sociais, em estudo sociológicos, revolucionários, e ainda por cima baitola!
ver o filho ser mandado para fora de casa.
joão não respondera aos gritos do pai. no centro da sala de jantar, onde estavam, ele via o peito do velho subir e descer com força e rapidez. imaginou, inclusive, que presenciaria um novo infarto, infelizmente não acontecido, pensava, enquanto se dirigia para fora da propriedade da família. porém, antes de virar as costas para a casa onde vivera seus vinte anos, caminhou até a presença de helena – postada rigidamente no canto da sala, segurando o choro e a dor que lhe apertavam o peito, cujos olhos diziam não vá, meu filho, por favor, não vá, não me abandone aqui – deu-lhe um beijo no rosto, abraçou-a com ternura e disse-lhe, olhando naqueles olhos já embaçados, eu volto, mãezinha. eu volto para buscar você e minha irmã.
encarou, então, mais uma vez seu pai, o homem que se orgulhava do patrimônio que construíra, o homem que fora pioneiro no êxodo urbano ocorrido no país nas últimas três décadas, que se tornara tão influente a ponto de mandar prender, soltar e matar quem quisesse na cidade. não sabia, joão, se dirigia àquele homem alguma palavra ou se apenas se virava e saía; estava em dúvida entre ignorá-lo ou partir pra cima dele, surrá-lo – até que algum segurança viesse afastá-lo dali; pensava também em quebrar os objetos decorativos, que tanto orgulhavam ao pai. mas não foi capaz de mexer-se. concentrou-se no que sentia, na presença de sua mãe ali no ambiente, na força que precisaria ter para viver longe dela por algum tempo indefinido, sem a certeza de que ela suportaria aquela separação.
não adianta mandar alguém atrás de mim, seu assassino. eu estarei bem longe daqui, fique sossegado. mas eu volto, estando você vivo ou não, doente ou saudável. eu volto. para buscar o que é de minha mãe, estas terras de que você tanto se orgulha, que somente são suas porque você as roubou dela, do pai dela, meu avô materno, da mesma forma como você fez com as terras dos seus irmãos, inclusive mandando matar o tio flávio em um passeio de barco. não tente fazer igual. eu vou saber de tudo o que acontece aqui nessa casa que você construiu com sangue e roubo.
um juramento. um silêncio.
a maior dor da sua vida.
nem mesmo a dor do parto normal com que tivera o filho – ela insistira tanto por uma cesárea, sempre negada pelo marido, para quem o primogênito deveria nascer dentro da residência da família – sobrepusera-se àquela cena, ocorrida há três meses. daquele dia em diante, helena vivera arrastando-se pelos cantos da casa. abandonara o serviço doméstico, alimentava-se apenas porque era obrigada pela cozinheira e nem mesmo reagia às investidas violentas do marido, que a cada dia bebia mais e, nesses momentos, maltratava-a, chamando-a pelo nome do filho. eu não me importo de apanhar pelo meu filho, eu não me importo, gritava ela, por dentro, sem emitir um só gemido.
foi inevitável que maria viesse a falecer antes mesmo de nascer. o que não levou joão roberto filho a desfazer-se da ideia de que cabia à mãe o primeiro beijo na filha à quem tivera a oportunidade – a única escolha que coube a ela – de dar um nome. beije agora a sua maria, helena. beije a menina que nasceria para ajudá-la nos serviços da casa. tome-a no colo, antes que eu a enterre no jardim atrás de nossa casa, ao lado de onde está enterrado, há um mês, o seu outro filho, o joão roberto neto.

ítalo puccini