sábado, 9 de outubro de 2010

Dois pra lá, dois pra cá: os romances de Chico

     É assim que eu, enquanto leitor, classificaria os quatro romances escritos pelo compositor e escritor Chico Buarque, o ícone da Música Popular Brasileira, que há muito tempo apresenta uma ligação muito grande com a literatura, variando por gêneros como peças teatrias, novelas e romances.
    A escrita de Chico apresenta uma crescente. O que é muito bom sinal. Não tenho leitura das peças “Roda viva” (1968), “Calabar” (1973), “Gota d’água” (1975) e “Ópera do malandro” (1979), nem da novela “Fazenda modelo” (1974), o que me permite fazer a afirmação acima com base apenas em seus quatro romances, escritos entre 1991 e 2009: “Estorvo” (1991), “Benjamim” (1995), “Budapeste” (2003) e “Leite derramado” (2009), todos lançados pela Companhia das Letras.
    Fiz leitura iniciais aleatórias destes quatros. Há uns cinco anos, li primeiro “Budapeste”, e depois parti para “Estorvo”. E fiquei por ali. Recordo-me de ter gostado do primeiro – apesar de ter encontrado algumas dificuldades na leitura, como de manter a atenção à narrativa, um tanto quanto solta (ou somente era um alto grau meu de disperssão) – e de não ter gostado do segundo, um emaranhado narrativo de frases e parágrafos longos, de mistura de personagens e de ações, uma tentativa de catarse literária que, à minha prática leitora, ficou mal construída, uma vez que não cumpriu com a premissa básica de firmar o leitor na narrativa e de conduzi-lo por ela.


     E agora do lançamento do quarto romance do autor, resolvi, antes de encarar “Leite derramado”, retomar as duas leituras feitas há mais tempo, e de fazê-las em ordem de publicação. Sendo assim, portanto, retomei “Estorvo”, mas desta vez progredi junto a mim mesmo. Ao invés de ir até o final mesmo o achando ruim, parei um pouco antes da metade, pois se até ali, pela segunda vez, o romance não havia me fisgado como leitor, não me daria ao trabalho de ir até o final para fazer a mesma leitura anterior. “Estorvo” é a história, escrita em primeira pessoa, de um personagem que não sai do lugar. Que sonha com muito, e vive com pouco. Que se apresenta todo desajustado no que diz respeito às regras sociais: não se adequa a nenhum emprego, aceita ser sustentado pela mulher e pela irmã, é incapaz de administrar os bens da família após a morte do pai, não valoriza bens materiais (perde muitos deles) e não reage a nada disso. Um personagem atônito. Alheio. Levado pela ação. A história de “Estorvo” direciona para um mundo impedido, quase que inalcançável para o personagem que não consegue superar o passado, onde não há esboço de resistência nenhuma. O personagem não se leva a nada. É levado. E se deixa. E a narrativa, idem. Ela busca se apresentar da forma como apresenta o personagem. Ideia boa, muito, muito bem feita pelo próprio Chico em “Leite derramado” (já vou chegar lá), mas não neste primeiro livro.


     E não também em “Benjamim”. Outro personagem andando torto por aí. Um ex-modelo fotográfico que, como uma câmara invisível, vê o mundo desfilar diante de seus olhos sob uma atmosfera opressiva. Sem conseguir, com isso, distinguir o que vê fora de si do seu passado, e de si mesmo. Assim segue Benjamim, cruzando com uma série de personagens nada seguros de si, iguais a ele. Nenhum problema até aí, desde que fosse bem escrita esta narração. O que, em minhas leituras, não é. Parece-me uma narrativa tão atordoada quanto à de “Estorvo”. Uma narrativa que busca seguir o que ela mesma apresenta. Mas que derrapa nesta busca. O clima opressivo é resultado  do próprio estilo de narrar. Mas esta narração não se sustenta para o leitor. É um vai e vem que, por mais atento que esteja este leitor, ele se perde. Ou, se consegue acompanhá-la (a narrativa), ela pouco lhe significa. Foi assim que me senti lendo – ou tentando ler – “Benjamim”. E não, não fui até o final. O livro que me desculpe por este julgamento precipitado. Tenho o direito de seguir ou não com a leitura. Como leitor, o livro é meu, e com ele faço o que quiser, e se em metade das páginas ele não me fisgou em nada – nem na trama, nem na narrativa – é meu direito colocá-lo de lado e pré-julgá-lo como fraco nesse sentido. Pennac me alivia ainda mais quando me recordo dos terceiro direito do leitor, proposto por ele: “O direito de não terminar um livro”.


     Depois dessas duas leituras que pouco ou nada cativaram, parti para “Budapeste”, com a esperança de abraçar ainda mais a história, de me sentir tocado pela narrativa ainda mais do que na primeira leitura feita anos anteriores. E assim aconteceu. Consegui “grudar” nesta narrativa escrita por José Costa (que muito bem poderia ser Chico, dado os elementos de metaliteratura presentes na trama). Costa é aquilo que conhecemos por ghost-writer. O cara que escreve textos para outros assinarem como se fossem seus. E Costa escrevia mais do que somente textos como artigos para jornais e revistas. Ele escrevia livros. Romances pelos quais outros autores recebiam a devida fama. E de repente o leitor acompanha José Costa por Budapeste. Um erro de escala e ele para por lá. E sem tesão pela vida profissional e pessoal que leva, transita entre o Rio de Janeiro e Budapeste. Mantém o casamento no Rio, com Vanda – mas um casamento em que o melhor para os dois é a distância que mantém um do outro – e passa a viver nova vida com Kriska, em Budapeste.
    A linha narrativa de “Budapeste” é bem construída. É o famoso lá e cá. O livro é dividido em seis ou sete capítulos. Que servem apenas para jogar o leitor ora para o Rio de Janeiro, ora para Budapeste. Fica mais fácil de acompanhar a narrativa. Ou menos difícil. Porque, de fato, é preciso muita atenção do leitor em cada linha. Para não perder o cuidado que é preciso se ter com uma língua desconhecida. Com uma língua que está sendo aprendida: “(...) à palavra partida ao meio como fruta que eu pudesse espiar por dentro”. Ainda mais sendo o húngaro, a única língua que o diabo respeita, segundo diz o livro. Também para não perder trechos que muito podem significar, como este: “Quando se abriu um buraco nas nuvens, me pareceu que sobrevoávamos Budapeste, cortada por um rio. O Danúbio, pensei, era o Danúbio mas não era azul, era amarelo, a cidade toda era amarela, os telhados, o asfalto, os parques, engraçado isso, uma cidade amarela, eu pensava que Budapeste fosse cinzenta, mas Budapeste era amarela”.


     E, por fim, após este suspiro com “Budapeste”, este alívio de leitura “Buarquiana”, encantei-me com “Leite derramado”, com a história de Eulálio e toda sua saga familiar (que tem início na corte portuguesa, atravessa os períodos do Império e da República Velha, e desemboca nos dias de hoje). Eulário Montenegro d'Assumpção, nascido em 16 de junho de 1907, um idoso centenário agonizando no leito de um hospital, que, quase num monólogo, discorre sua vida – ou fragmentos dela que a memória lhe permite – à filha que o acompanha no leito e às enfermeiras que dele tratam, contando tudo de modo muito confuso e algo delirante, talvez como fora mesmo sua vida. A narração de Eulálio, e de sua vida, perpassa como cenário de fundo a decadência de determinada elite brasileira.
     O que mais me encantou neste mais recente romance de Chico foi justamente o que mais me desagradou nos dois primeiros. A narrativa. A forma como a história é narrada ao leitor. O domínio de narração que o leitor encontra ao acompanhar tudo o que vai contando Eulálio mostra o avanço e o amadurecimento de Chico enquanto escritor, uma vez que, se em “Estorvo” e em “Benjamim” se encontra uma narrativa que não prende – que inclusive atrapalha o leitor – em “Budapeste” e principalmente em “Leite derramado” é possível se deparar com um domínio narrativo que leva o leitor a grudar nas páginas, a correr toda a história e a quase não senti-la passando. Não há o peso dos dois primeiros romances. Pelo contrário. Há um texto que abraça o leitor e que o embala. Fica a sensação de vivenciar a narrativa de dentro mesmo. Um convite a continuar a leitura, como neste trecho no começo do romance: “Se você chamar um táxi, posso lhe mostrar a fazenda, a capela e o mausoléu”.
     Este “você” é o leitor? Não sei. Não sabemos. Cada um lê da sua forma. Eu li como sendo uma frase dirigida a mim mesmo, ao leitor que começa a acompanhar a trajetória de Eulálio. O leitor para quem o velho narra sua história. Sim, ele narra para a filha e as enfermeiras, que se revezam, mas ele sabe que está narrando é para o leitor, para o seu leitor, para aquele que buscará conhecer sobre o que ele tanto faz questão de contar. O leitor que mais para o final do romance ainda recebe o aviso: “Mas você perdeu lances fundamentais da minha vida. Do jeito que anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhavado, sem pé nem cabeça”.
     A escrita de Chico Buarque neste último romance sugere esta aproximação com o leitor. Aproximação que, parece-me, vem sendo buscada por ele desde o início de seus escritos de romances publicados. E que estas leituras em sequência dos quatros livros apresentam um avanço nessa caminhada. Um cuidado pouco visto nos textos literários, de pensar o leitor durante o processo de escrita. Quem é o leitor que lê este meu texto? Que texto se tornará este texto que agora é meu? Chico talvez imagine o que seu texto se tornará. Mas só. Ele não é mais dono a partir do momento em que eu passo a ler este texto. Então, com a devida licença, rascunho estas minhas leituras.

Ítalo Puccini