domingo, 4 de junho de 2023

breves notas de um ensaio para o futuro

meu sobrinho de 3 anos, quando chamava o avô dele, meu pai, assim dizia: vovô vê o mar. e abriam os dois um sorriso largo e feliz, joaquim e vovô vilmar.


o pai morou na praia de itaguaçu por cinco anos, sendo a maior satisfação dele o fato de diariamente ver de perto o mar.

naquele mar, semanas atrás, eu joguei um pouco das cinzas do pai, numa tarde nublada e chuvosa de um domingo. também num domingo chuvoso e nublado, mas em urussanga, espalhei um outro pouco das suas cinzas na árvore em frente à casa da minha avó paterna, onde o pai brincava nas férias escolares na infância. em ambos os momentos, tive a sensação de que ele estava lá comigo, feliz.

*

nada disso desfaz da morte o absurdo.

lembro-me diariamente do título que rosa monteiro deu ao livro "a ridícula ideia de nunca mais te ver", escrito por ela após 1) perder o marido com quem vivera por mais de vinte anos 2) conhecer o diário que marie curie escreveu durante o primeiro ano da perda do seu amado, pierre. e em toda sessão de análise, nos últimos dois meses, repito não haver nada mais absurdo e ridículo que a morte e a impossibilidade de conversar com quem não está mais aqui vivo.

num trecho, escreve assim rosa monteiro: “A ideia simplesmente não entra na sua cabeça. Como é possível que não esteja mais? Aquela pessoa que ocupava tanto espaço no mundo, onde foi que se meteu? O cérebro não consegue entender que tenha desaparecido para sempre. E que diabos é sempre? É um conceito anti-humano. Quero dizer, que foge à nossa possibilidade de entendimento. Como assim não vou vê-lo nunca mais? Nem hoje, nem amanhã, nem depois, nem daqui a um ano? É uma realidade inconcebível que a mente rejeita: não vou vê-lo nunca mais é uma piada sem graça, uma ideia ridícula.”


hoje se completam dois meses da morte do pai. parece que faz cinco anos. a falta diária se veste de eternidade. paola denomina esse sentimento como perda existencial: não existe mais a mesma vida de antes a partir do momento em que se é órfão de um pai ou de uma mãe.

*

eu me lembro de quando li pela primeira vez "as intermitências da morte", do saramago, há mais ou menos quinze anos. nunca mais perdi o encanto de imaginar a morte se apaixonando e por isso deixando de matar. à época, inclusive, escrevi um conto intitulado "apaixonar-se é adiar a própria morte". gosto desse título até hoje. 

ondjaki escreveu recentemente, na revista 451, que a morte é um lugar estranho. pois prefiro ainda a palavra escolhida por rosa monteiro.

sinto que escrever não é suficiente - apesar de teimar nisto - mas sim apenas um sublimar paliativo.

*

o maior prazer que meu pai sentia quando internado e ainda lúcido era beber uma água bem gelada. ele nos exigia buscarmos no corredor água gelada, mesmo havendo no quarto uma jarra recém-trazida de água fresca. e a cada gole ele fazia um "aaah" de plena satisfação. foi, imagino, sua última alegria na vida. talvez uma das.

no seu último sábado vivido, à noite liguei no celular o jogo do flamengo e posicionei o aparelho de modo a nós dois assistirmos. já fazia dois ou três dias que o pai não respondia mais com lucidez às intervenções externas, mas eu o vi nitidamente sorrir quando o fla fez um gol e eu disse, erguendo firme a mão dele: pai, gol do mengo, um a zero pra nós. sua última lembrança rubro-negra foi uma vitória, disso tenho certeza.

há poucos dias, o mengo venceu novamente o flu, eliminando-o e passando de fase na copa do brasil. volto à rosa monteiro e penso: como assim não posso enviar uma mensagem a meu pai para comemorarmos juntos essa classificação?

como é ridícula a morte.


*

a imagem mais marcante que guardo nas retinas de mim é o respirar lento de meu pai nas últimas horas de vida. era eu quem estava ao lado dele, no quarto do hospital, naquela tarde e noite de terça-feira. eu via o peito dele subir e descer de maneira gradativamente mais lenta. foi escolha médica a indução de um respirar menos sofrido ao pai. eu e fran concordamos com esse conforto a ele, mesmo que lhe significasse o apagar mental antes de efetivamente parar de respirar. não me lembro dessa imagem de forma trágica. também não encontro alegria nela. eu me sentia vendo de perto a inevitabilidade da morte quando não apaixonada.

ainda não sei o que fazer com a lembrança do momento em que coloquei a mão no peito dele e...

não existe despedida que ampare a morte de um pai.

*

nas semanas seguintes ao falecimento do pai, canalizei meu luto numa compulsão por doces. transitei por padarias, especialmente nas quais estive com ele. eram encontros frequentes que nós tínhamos e dos quais muito gostávamos: um café, um salgado, mais um café, um doce, um suco de laranja, outro doce, talvez um último cafezinho. lembro-me do nosso último café. e do último cigarro que ele fumou.

sempre pensei na morte de meu pai. desde a infância vivi o medo de perdê-lo, especialmente para o cigarro ou a bebida. e nas minhas sessões de análise entendo o quanto esse pensamento representava uma morte simbólica de um medo meu de repetir meu pai. eu quero encontrar uma maneira de viver com autoria minha própria vida. e por consequência contradizer belchior: não necessariamente seremos os mesmos a vivermos como nossos pais. 

quando eu tinha dez anos, meu pai colocou pra tocar o álbum "vício elegante", do belchior. tenho até hoje esse cd de capa azul e essa marca de nascença.


nas sessões de análise, pois, percebo que pela morte de meu pai posso agora fazer fluir de dentro de  mim uma represa chamada filho.

*

ítalo puccini