diz a gramática que o verbo “amar” é transitivo direto, ou seja, não exige uma preposição após o seu uso: quando se ama, ama-se alguém. então por que o título acima? porque assim mário de andrade intitulou uma de suas obras mais repercutidas – juntem-se a ela “Pauliceia Desvairada” e “Macunaíma”. talvez porque quem ama, ama. e pronto. desnecessárias são as explicações sentimentais.
há, neste romance de mário, um narrador que propõe ao leitor, desde as primeiras páginas, uma liberdade de interpretação, um pacto mantido a partir do pressuposto de que, conforme afirma o crítico alberto manguel, em “Uma história da leitura”, “é o leitor que lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo”, algo observável neste trecho do livro de andrade: “Se este livro conta 51 leitores sucede que neste lugar da leitura já existem 51 Elzas. É bem desagradável, mas logo depois da primeira cena, cada um tinha a Fräulein dele na imaginação. Contra isso não posso nada e teria sido indiscreto se antes de qualquer familiaridade com a moça, a minuciasse em todos os seus pormenores físicos, não faço isso. Outro mal apareceu: cada um criou Fräulein segundo a própria fantasia, e temos atualmente 51 heroínas pra um só idílio. 51, com a minha, que também vale. Vale, porém não tenho a mínima intenção de exigir dos leitores o abandono de suas Elzas e impor a minha como única de existência real. O leitor continuará com a dele. Apenas por curiosidade, vamos cotejá-las agora. Pra isso mostro a minha nos 35 atuais janeiros dela”.
e assim o narrador apresenta aos seus 50 leitores – que, sabemos, são tantos mais – a fräulein, a personagem elza, permitindo a cada leitor criar sua própria imagem e seu próprio conceito de quem ela é. com esse recurso, mário de andrade convida o leitor a imergir ainda mais na obra, estabelecendo-se uma cumplicidade entre todos: autor, narrador, personagem e leitor. e mais adiante, no romance, há um outro trecho no qual o autor narra como a personagem lhe surgiu: “Que mentira, meu Deus! dizerem Fräulein, personagem inventada por mim e por mim construído! não construí coisa nenhuma. Um dia Elza me apareceu, era uma quarta-feira, sem que eu a procurasse. Nem invocasse, pois sou incréu de mesas volantes e de médiuns dicazes”.
ainda, em toda a sua obra, mário de andrade lutou por uma língua brasileira mais próxima do falar do povo, sendo comum iniciar frases com pronomes oblíquos e empregar as formas “si, quasi, guspe” em vez de “se, quase, cuspe”, por exemplo. ou seja, os brasileirismos e o folclore detiveram máxima importância para o poeta e romancista, e, além disso, as poesias, os romances e contos de sua autoria se revestem de uma nítida crítica social, cujo alvo são a alta burguesia e a aristocracia do início do século xx. desse modo, “Amar, verbo intransitivo” é também um romance preocupado em se aprofundar na estrutura familiar da burguesia paulistana, sua moral e seus preconceitos, ao mesmo tempo em que trata, em várias passagens, dos sonhos e da adaptação dos imigrantes à agitada paulicéia.
outrossim, empenhado em pesquisar os elementos mais característicos da identidade nacional, mário viajou pelo brasil coletando exemplos de manifestações folclóricas e musicais, na tentativa de compreender melhor a essência do país. para isso, pensou na criação de uma “gramatiquinha da língua brasileira”, que incorporasse os falares regionais e os neologismos sintáticos. não o fez efetivamente, mas suas produções apresentam uma provocação linguística encontrada em poucos autores – principalmente situando no começo do século passado – sobre isso, segundo Telê Porto Ancona Lopez, estudiosa da obra de mário, “Quando do aparecimento do livro, Manuel Bandeira justificou o aspecto mais chocante para a época: ‘A linguagem do romance está toda errada. Errada no sentido portuga da gramática que aprendemos em meninos. Do ponto de vista brasileiro, porém, ela é que está certa, a de todos os outros livros é que está errada. Mário se impõe à sistematização de nossos modismos’”.
logo, sendo a língua uma realidade essencialmente variável – e qual realidade não é? – pressupõe-se a inexistência de formas ou expressões intrinsecamente erradas. assim, a crença na dualidade textos errados ou textos corretos não é cabível como parâmetro de leitura sem haver um contexto, existindo a necessidade de um olhar de adequação: textos mais ou menos adequados ou mesmo inadequados a determinadas situações. exatamente o proposto por mário de andrade, a partir de um olhar linguístico sobre a língua portuguesa, atento ao uso efetivo dos próprios falantes e não aos manuais de gramática.
isto porque da teoria à prática a distância provoca redemoinhos. tal qual também no amor, esta impossibilidade transitiva.
ítalo puccini