segunda-feira, 26 de agosto de 2019

poema pra dentro

fiz da solidão 
morada

casa de concreto
em quadrado

formato em que
não me cabem
cantos

ou contornos 

exercício de endurecer
por força da vida

ítalo puccini

domingo, 18 de agosto de 2019

tudo dói

faço nascer em mim um câncer
instante no qual
ao outro não perdoo:
exímio rancoroso que sou

faço desse sentimento
um sinônimo de arrogância

quando estufo o peito
e empino o queixo

para mostrar
a inexistência
em mim
da dor

mentira que alimento diariamente

ítalo puccini


domingo, 11 de agosto de 2019

minha antropofagia

edu foi uma paixão que me aconteceu
um acidente
autossabotagem
de um ideal nascido em mim na infância
de repetir minha mãe encantada por meu pai
mas com um novo final
feliz

edu sempre me foi uma criança
meu peter pan
uma eterna ausência de horário
com quem os momentos felizes
foram os imprevisíveis
e
como se fosse a primeira vez
aprendi a esperar o inesperado
a namorar em bandeiras separadas
a confiar na distância

edu foi minha paixão em palavra
o simbólico do traço que me atrai
enraizado em mim feito memória
os blogs
o papelão
os filmes
os shows
os livros

eu sempre quis me apaixonar por um homem
e edu apareceu a mim
enquanto prazer de linguagem
esse instrumento a partir do qual
escrevemos nossa história

eu penso em edu quando leio
e principalmente enquanto escrevo
lembrança mastigada
saudade engolida

edu é minha antropofagia cultural
meu nonsense vestido de poesia
esta sem a qual
não somos capazes de viver

ítalo puccini


segunda-feira, 5 de agosto de 2019

a intransitividade do verbo amar


     diz a gramática que o verbo “amar” é transitivo direto, ou seja, não exige uma preposição após o seu uso: quando se ama, ama-se alguém. então por que o título acima? porque assim mário de andrade intitulou uma de suas obras mais repercutidas – juntem-se a ela “Pauliceia Desvairada” e “Macunaíma”. talvez porque quem ama, ama. e pronto. desnecessárias são as explicações sentimentais.
     há, neste romance de mário, um narrador que propõe ao leitor, desde as primeiras páginas, uma liberdade de interpretação, um pacto mantido a partir do pressuposto de que, conforme afirma o crítico alberto manguel, em “Uma história da leitura”, “é o leitor que lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo”, algo observável neste trecho do livro de andrade: “Se este livro conta 51 leitores sucede que neste lugar da leitura já existem 51 Elzas. É bem desagradável, mas logo depois da primeira cena, cada um tinha a Fräulein dele na imaginação. Contra isso não posso nada e teria sido indiscreto se antes de qualquer familiaridade com a moça, a minuciasse em todos os seus pormenores físicos, não faço isso. Outro mal apareceu: cada um criou Fräulein segundo a própria fantasia, e temos atualmente 51 heroínas pra um só idílio. 51, com a minha, que também vale. Vale, porém não tenho a mínima intenção de exigir dos leitores o abandono de suas Elzas e impor a minha como única de existência real. O leitor continuará com a dele. Apenas por curiosidade, vamos cotejá-las agora. Pra isso mostro a minha nos 35 atuais janeiros dela”. 
     e assim o narrador apresenta aos seus 50 leitores – que, sabemos, são tantos mais – a fräulein, a personagem elza, permitindo a cada leitor criar sua própria imagem e seu próprio conceito de quem ela é. com esse recurso, mário de andrade convida o leitor a imergir ainda mais na obra, estabelecendo-se uma cumplicidade entre todos: autor, narrador, personagem e leitor. e mais adiante, no romance, há um outro trecho no qual o autor narra como a personagem lhe surgiu: “Que mentira, meu Deus! dizerem Fräulein, personagem inventada por mim e por mim construído! não construí coisa nenhuma. Um dia Elza me apareceu, era uma quarta-feira, sem que eu a procurasse. Nem invocasse, pois sou incréu de mesas volantes e de médiuns dicazes”. 
     ainda, em toda a sua obra, mário de andrade lutou por uma língua brasileira mais próxima do falar do povo, sendo comum iniciar frases com pronomes oblíquos e empregar as formas “si, quasi, guspe” em vez de “se, quase, cuspe”, por exemplo. ou seja, os brasileirismos e o folclore detiveram máxima importância para o poeta e romancista, e, além disso, as poesias, os romances e contos de sua autoria se revestem de uma nítida crítica social, cujo alvo são a alta burguesia e a aristocracia do início do século xx. desse modo, “Amar, verbo intransitivo” é também um romance preocupado em se aprofundar na estrutura familiar da burguesia paulistana, sua moral e seus preconceitos, ao mesmo tempo em que trata, em várias passagens, dos sonhos e da adaptação dos imigrantes à agitada paulicéia. 
     outrossim, empenhado em pesquisar os elementos mais característicos da identidade nacional, mário viajou pelo brasil coletando exemplos de manifestações folclóricas e musicais, na tentativa de compreender melhor a essência do país. para isso, pensou na criação de uma “gramatiquinha da língua brasileira”, que incorporasse os falares regionais e os neologismos sintáticos. não o fez efetivamente, mas suas produções apresentam uma provocação linguística encontrada em poucos autores – principalmente situando no começo do século passado – sobre isso, segundo Telê Porto Ancona Lopez, estudiosa da obra de mário, “Quando do aparecimento do livro, Manuel Bandeira justificou o aspecto mais chocante para a época: ‘A linguagem do romance está toda errada. Errada no sentido portuga da gramática que aprendemos em meninos. Do ponto de vista brasileiro, porém, ela é que está certa, a de todos os outros livros é que está errada. Mário se impõe à sistematização de nossos modismos’”.
     logo, sendo a língua uma realidade essencialmente variável – e qual realidade não é? – pressupõe-se a inexistência de formas ou expressões intrinsecamente erradas. assim, a crença na dualidade textos errados ou textos corretos não é cabível como parâmetro de leitura sem haver um contexto, existindo a necessidade de um olhar de adequação: textos mais ou menos adequados ou mesmo inadequados a determinadas situações. exatamente o proposto por mário de andrade, a partir de um olhar linguístico sobre a língua portuguesa, atento ao uso efetivo dos próprios falantes e não aos manuais de gramática. 
isto porque da teoria à prática a distância provoca redemoinhos. tal qual também no amor, esta impossibilidade transitiva. 

ítalo puccini