segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Estante



     Mexer em livros, para mim, é mergulhar dentro do que sou e de como me construo, e por lá me perder.
     Quando vou a sebus e/ou livrarias, empilho em minhas duas mãos tudo o que considero interessante levar para casa, seja para uma leitura imediata, seja para uma leitura futura. E por lá fico, estante por estante, livro por livro, sumindo por trás de suas formas, cores e palavras, até o momento em que encerro minha visita. É quando relembro tudo o que peguei, folheio cada livro para melhor conhecê-lo, equilibro o pensamento entre a necessidade, o desejo e a exceção (além dos recursos financeiros que me acompanham no momento), e faço uma dolorida triagem, acabando por levar sempre menos da metade do que gostaria. Nas primeiras vezes esse momento era mais difícil. Agora me resigno a ele, ajudando-me para isso a memória, trazendo à mente os livros que ainda me esperam em casa, saudosos de um contato mais próximo com minhas mãos e com meus olhos.
     Dor foi o que senti ao organizar meus livros em casa, espalhados que estavam pela prateleira que tenho sobre a cabeça aqui onde escrevo e pela cama que sobra em meu quarto, útil justamente para acomodar meus materiais de pesquisa e de leitura. Mas foi uma dor gostosa de sentir, e aqui o paradoxo é proposital por refletir o que foi sentido.
     No dia anterior mexi e remexi em meus cd´s e dvd´s. Todos organizados por aproximação, no que diz respeito aos estilos musicais. E, empolgado pelos momentos ali vividos, encarei uma reorganização dos livros, já ciente de que a entrega emocional seria mais intensa.
     Gosto de olhar para meus livros. Gosto de senti-los pelo tato. Gosto de folheá-los e de relembrar o exato momento em que foram lidos ou comprados, sendo que de alguns ainda não conheço seus interiores, seus poros de vida, os espaços entre palavras – e as próprias palavras – que os fazem ser o que são, para as quais construo os significados que me tornam quem sou.
     Nessa breve atividade de fim de tarde (ainda não tenho tantas estantes e tantos livros espalhados pela casa) voltei aos meus 14 anos, com a leitura que fiz de “O rádio, o futebol e a vida”, de Flávio Araújo, e de “Zico, 50 anos de futebol”, num mês de julho, na praia de Itaguaçu, durante as férias escolares de meio de ano, durante manhãs e tardes chuvosas e frias, enrolado entre cobertas e travesseiros, numa época em que eu respirava futebol.
     Memórias mais recentes também resgatei. Ao passar o pano em “O inventor da solidão”, de Paul Auster, comprado despretensiosamente numa feira do livro de Joinville; ao reler algumas crônicas sensíveis e marcantes de “Por que os homens não voam?”, do sensível e marcante Pablo Morenno; e ao encaixar “Uma história da leitura”, de Alberto Manguel, sempre tão recorrente aos meus textos sobre leitura, num novo lugar na estante, rodeados por novos livros sobre práticas de leitura, e com um espaço ainda disponível aos que no momento leio para o término de minha atual pesquisa, que daqui a pouco rumarão aos seus novos lares em meu quarto.
     Costumo dar aos livros, em meus escritos e falas, tratamento de como se tivessem personalidades e vidas próprias, pois acredito muito em que eles tenham, sim, suas vidas próprias, suas personalidades que os caracterizam como livros (sem contar as especificidades de gênero às quais eles dão vida e das quais recebem vida). Mais vivos ainda eles se tornam quando em contato com os olhos, a boca, os ouvidos, o tato, e todos os sentidos do ser humano, que a eles dá novos significados, que a partir deles forma-se enquanto ser humano e cidadão social, que sem eles e seus registros (ficcionais ou não) não existiria.
     Nessa breve atividade de fim de tarde ainda fiz uma pilha da qual irei me desfazer. Sem choro, sem lamentações. Livros espíritas, romances água-com-açucar, receitas de auto-ajuda. Já tiveram sua importância. Já encerraram seus ciclos por aqui. Agora seguirão adiante, conhecendo novos donos, novas prateleiras, sentindo novos cheiros, oportunizando novos aprendizados. Assim ocorre conosco, pessoas de carne, osso e cérebro. Assim ocorre com os livros, alimentos da mente humana.
    Até a próxima reorganização livresca, as biografias abrirão os espaços (ou a falta dos mesmos) na estante, seguidas pelos de filosofia, anteriores aos de educação/leitura, que abrem caminho para as crônicas e os contos, tendo como seqüência as poesias e os infanto-juvenis, seguidos pelos romances e pelos de literatura brasileira, que encerram a prateleira e levam à porta do armário, no qual dormem tranqüilos os best-sellers e mais alguns romances.

Ítalo Puccini