terça-feira, 29 de outubro de 2013

O Modernismo Português e Fernando Pessoa

aproveitando a sequência de textos extensos, um artigo - escrito em 2008 - no qual abordo a poesia de pessoa e seus heterônimos, relacionando ao período literário modernista.
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(um trecho)


Unidade quem sabe Pessoa tenha alcançado, mas também o que se vê são três personalidades que não se complementam em muitos aspectos. O mestre é Caeiro, o Pai, com a sabedoria e a calma invejadas por seus dois irmãos, a quem dá origem: Ricardo Reis, um epicurista triste, de tradição clássica, ligado à mitologia pagã, para quem a emoção podia ser controlada pela razão, e Álvaro de Campos, o mais ligado à tendência futurista, engenheiro formado, de versos fortes, diretos, feitos mais na inspiração do que na arte de criação.

            Refletindo o momento da época – a desestruturação do mundo na 1ª Guerra Mundial, a instabilidade em Portugal pela mudança de regime político, as diferentes formas de expressão cultural apresentadas pelas vanguardas – Fernando Pessoa multiplicou-se em diversos heterônimos, destacando-se os três já citados. As expressões artísticas seguiam o cenário em que se faziam observar. Fragmentavam-se, espalhavam-se em diferentes e inconstantes formas de representar o viver, o pensar e o sentir. Pessoa foi o exemplo mais claro.

            O fato é que sua poesia, seus sentimentos, suas idéas e suas vontades de ser – e, conseqüentemente, de viver – angustiavam-no, como bem sintetizado por Álvaro de Campos:


Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,

Quando mais personalidades eu tiver,

Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,

Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,

Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,

Estiver, sentir, viver, for,              

Mais possuirei a existência total do universo,

Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.

                                                           (Poesias de Álvaro de Campos, 1983, p. 187).

Dessa angústia, então, “nasceram” três personalidades completas, distintas e semelhantes em alguns aspectos, que, se não conseguiram dar ao poeta a unidade buscada, muito próximo disso chegaram.

(na íntegra)

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

"uma necessidade é um desejo que enlouqueceu"

faz tempo, já, eu lancei uma daquelas perguntas-cretinas a algumas pessoas, por e-mail: “que personagem você gostaria de ser?”. a pergunta advém do gosto que tenho pelo palomar, personagem homônimo do ítalo, o calvino. e como a preguiça é inerente ao ato da escrita, esse remendo de texto ficou por um bom tempo parado, sem que eu tivesse a mínima vontade de mexer nele. até que encontrei o livro “palomar” à venda, depois de anos procurando-o. e isso ocorreu na livraria cultura, em curitiba, aquele aconchego de lugar dividido em três pisos, muito espaçoso, colorido, repleto de livros que aqui por joinville eu não consigo, e onde os que lá trabalham, sem serem chatos, sorriem e conversam com o cliente, procurando atender a todas as necessidades deste.
então, encontrada a obra, reli-a. ‘treli’, na verdade. um livro belíssimo, escrito com uma sutileza que convida o leitor a ler cada texto e, antes de seguir ao próximo, parar e pensar no que acabou de ler. “palomar” é isto, é um livro no qual não se acelera. em que a leitura é ritmada, é cuidadosa como a escrita, em que um segundo de distração coloca em risco uma frase de rara beleza e ironia.
se eu pudesse ser um personagem, eu seria o palomar. por considerar-nos (a ele e a mim ) semelhantes, porém com salutar diferença. o sr. palomar gosta é do silêncio, eu também; gosta do ato de observar, de conjectuar, de pensar, eu também; mas não de dizer, e aqui eu já me vejo diferente dele. não porque eu seja um falante-contínuo, e sim porque muito escrevo do que observo e penso – e sinto. ele não. e é nisso que recai minha grande admiração por ele. pois o sr. palomar pensa, não diz nada, apenas observa, e leva o leitor a um pensar sem medidas, a um pensar muito provavelmente não pensado, a um estado de consciência ainda não atingido. a um silêncio ainda não experimentado.
e aquela tal pergunta-cretina veio-me a partir de uma reflexão, a de que nem sempre a paixão por um personagem vem associada à vontade de sê-lo. é nisto que reside o cuidado em tal resposta. por vezes, a identificação existe, seja pela semelhança ou pela diferença, o que não significa que queiramos abrir mão de quem somos para sermos outro. edu explicita bem isso: “Veja o caso da Emília do Lobato. Sou apx por ela, mas não queria ser uma boneca, nem viver no sítio do picapau, por mais mágico que fosse. Mas outra criança, a Zazie (de um livro de Raymond Queneau), essa eu gostaria de ser. Por ser tão desbocada e esperta quanto Emília, e pelos amigos e parentes doidíssimos que ela tem em Paris”. o contrário da josi, apaixonada “uma vez por Rosálio, - o homem mais sensível que já vi - em o Voo da Guará Vermelho, da Maria Valéria Rezende”, o que não significa que ela queria sê-lo. a identificação da josi é com outras três personagens: macabéa, da hora da estrela da clarice, um pouco palomar também, “mas assumo todas as características da personagem sem nome em 'Tudo o que você não soube', da Fernanda Young”.
camila pimenta e enzo, ambos de itajaí, responderam e me deixaram ‘boiando’, por não conhecer os personagens citados. e que justificativas as deles! ela: “Eu sou apaixonada pelo João Dias, do livro Aritmética, da Fernanda Yong, e por sinal queria muito ser a América, do mesmo livro... acho toda a história dos dois tão genuína e louca... me arrepio toda.... ai ai ai!!!!”. ele: “Eu gostaria de ser Margaret Schlegel, daquele colosso de livro chamado "Howards End"! Aliás, eu acho que já sou ela.. só que numa trama como aquela é que a gente gira o bombril!”
e o gui contini, para finalizar, foi pelo universo infanto: “um personagem que eu gostaria de ser é o "Mortimer", da trilogia "Mundo de Tinta", da maravilhosa Cornelia Funcke.... Personagem o qual tem o poder da leitura, de retirar ou colocar nos (dos) livros pessoas, personagens, dando vida às palavras e tendo uma leitura estupendamente essencial”. e quem é que não tem esse desejo de, vezemquando, fazer saltar das páginas um personagem? escrever esta croniqueta tem um poucomuito disso, e daí vem o título dela, uma frase do osho. é um desejo-leitor. mas bem pode vir a ser uma necessidade-leitora.

ítalo puccini

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

livros não salvam o mundo. nem as pessoas.

ambiguidade proposital no título. porque de salvação já basta a bíblia e sua promessa-nunca-cumprida. aliás, está aí um bom exemplo de um livro que amarra a narrativa à autoajuda. que embaralha um realismo ao fantástico e ao romântico. que suscita no leitor esperanças ao mesmo tempo em que o exime de responsabilidades e o cobra de posturas individuais e sociais. enfim, uma contradição exemplar, como todo bom livro deve provocar.
tem uma frase clássica atribuída ao caio graco e ao mário quintana nas esquinas porraí que diz assim “Livros não mudam o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”.
sim e não.
é cômodo – e eu já fiz isso por demais – atribuir aos livros – e, consequentemente, à leitura e à literatura – a responsabilidade pela mudança de caráter e de comportamento das pessoas. registre-se que uma mudança para melhor, é claro. digo que é cômodo porque me parece que se exime do sujeito uma tomada de atitude que independe dos livros e uma própria formação cognitiva, psicológica e social que da mesma forma não apresenta relação direta com bagagem leitora.
o romantismo é vizinho da utopia. ambos não me agradam muito porque, a meu ver, apresentam uma fugacidade exagerada – na verdade, ambos apresentam o exagero como condição necessária para um olhar o mundo. e este olhar se coloca muito distante de uma possível realidade, lidando apenas com uma idealização da mesma.
os livros não mudam o mundo e os livros não salvam as pessoas. não são remédios como os vendidos nas farmácias. olhar para a literatura dessa forma é torná-la uma religião: a salvação está em deus. a salvação está nos livros. duas visões simplórias. dois movimentos humanos que se eximem de uma responsabilidade sobre si. o fanatismo já está acabando com o futebol há bastante tempo. não precisa acabar com a arte também.
então o que nos leva a ler? depende, primeiramente, o que se lê. posso afirmar que é o contato com outras vidas que me leva à leitura de romances e de contos, assim como é uma aproximação com possibilidades de trabalho com a linguagem que me coloca junto a livros de poemas. é o meu gosto por futebol que me faz ler crônicas futebolísticas, e é meu trabalho como professor e pesquisador que me tornam leitor de livros teóricos. nada disso me salva de algo. apenas me complementa, ajuda-me a tornar-me quem sou, nesse processo, ainda bem, contínuo, ininterrupto.
para amarrar a conversa, um exemplo: diz assim o personagem antônio jorge da silva, do angolano recém-ganhador do prêmio portugal telecom de melhor romance, valter hugo mãe, em seu “a máquina de fazer espanhóis”: “fora uma ingenuidade da minha parte achar que armado com um livro me armara para todos os inimigos do mundo”. retiremos a frase do contexto no qual ela está inserida – um hospício, lugar em que se passa todo o romance citado – para trazê-la a esta discussão: não é armando-se de livros que alguém vencerá seus inimigos. é lindo pensar assim? pode ser. mas não me satisfaz. traz-me medo, a bem dizer. porque ingenuidade em excesso me preocupa. a vocês não?
prefiro o amargo ao doce no modo de olhar o mundo. porque o amargo ao menos me parece propor uma possibilidade de mudança. o doce estabiliza e deixa estar. até azedar.

ítalo puccini

quarta-feira, 17 de julho de 2013

o que é a solidão?

mais uma croniqueta que brota a partir de uma daquelas perguntas-sacanas. e justamente por serem perguntas assim queridas é que as envio aos amigos mais próximos, por acreditar neles, que eles tenham a contribuir com a reflexão proposta.
e tal indagação veio a mim porque tenho reparado que procuro preencher minha solidão com a leitura e a escrita. e que recorro a essas duas práticas pelo fato de elas me possibilitarem uma conversa, uma interação – não necessariamente com outra pessoa, no sentido de ler um escrito de um conhecido ou até mesmo de escrever para alguém próximo. é no sentido de dialogar, ainda que não no mesmo instante, com outra voz, que em algum momento parou para escrever aquilo que eu vim a ler, ou que em algum momento parará para ler o que tou a escrever. (eu, pelo menos, escrevo para ser lido. assumo e defendo este movimento de ir e vir que torna a leitura o que ela é).
o que me ocorreu enquanto elaborava este parágrafo anterior foi que se eu busco a leitura e a escrita para me acompanharem durante minha solidão (porque solidão é período, sempre necessário. mais adiante retomo essa ideia) eu acabo por não me deixar acompanhar apenas por ela, a solidão. parece-me mais uma fuga, já que não tou permitindo-me a ficar de fato sozinho.
estar só não seria não estar interagindo com nada a não ser comigo mesmo?  
essa palavrinha dá caldo, como diz a eliana, minha terapeuta. segundo ela, solidão é um sentimento, e, sendo assim, é subjetivo. “É provável que nossas respostas encontrem eco uma n’outra, algo como um vazio, uma sensação de não pertencimento, de não estar, de desamparo, sensação essa, na maioria das pessoas, localizada no peito”. ela e enzo me fazem pensar naquela solidão sentida mesmo em meio a algum grupo. e edu lembra que não vivemos num deserto, e que, portanto, “temos história, memória afetiva, ligações, compromissos, cultura”, algo similar ao proposto pelo filósofo mário sérgio cortella. como isso é possível? talvez seja o que o david foster escreveu em “infinite jest”: “que solidão não é função de se estar só”. é o não pertencimento.
enzo ainda fala sobre o “estar nada”, defendido por osho, o qual representa aquela solidão que nos leva “pra longe do ego, daquela solidão que precisa de algo, que precisa ser alguém, estar com alguém”. porém, às vezes este “nada” pode ser destrutivo, no sentido de trazer-nos ‘noias’, então que aquilo que vier a preencher tal estado já é salutar: “o nada positivo seria, por exemplo, aquele bem-estar de não sair da cama, amando o dia, a temperatura do ar, a postura que seu corpo alcançou sobre a cama, a paz interior. tomar banho e se perder no tempo. isso é um estado de graça. e, como todo estado de graça, não dura muito tempo. está fadado a falecer, não há como trazê-lo de volta quando você quer”.
enfim. solidão é dinheiro na mão, diz a rafa, cantando paulinho da viola. e a solidão talvez seja um sentimento (é mesmo um sentir?) necessário para alguns momentos da vida porque não considero possível sentir-se só o tempo todo, muito menos nunca sentir-se assim. entretanto, o contrário é o que mais acontece, a fuga desses momentos – que então acabam por serem poucos – nos quais nos sentimos solitários. por que fugimos? talvez pelo fato de a solidão amedrontar. é o que me parece. é poeira tomando assento, como canta o djavan em “açaí”, uma porrada de imagem. e é silêncio, conforme proposto pelo fox, mais uma vez fechando uma croniqueta: “eu continuo com a opinião de que quem melhor pode te responder essa pergunta é uma parede. tudo o que ela não vai te dizer, pois não pode, é exatamente o que você tem que escutar sobre a solidão. o vazio”.
      eis a sensação que não nos abandona.

ítalo puccini