segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

um poema de hilda, um de drummond, um de maneca: tornando-me leitor

há poemas de que eu gosto e eu:
1) não sou capaz de explicar esse gostar,
2) não sou capaz de entendê-los.
e ainda’ssim gosto.
como explicar?


por exemplo este da hilst, a hilda:
“Águas. Onde só os tigres mitigam a sua sede.
Também eu em ti, feroz, encantoada
Atravessei as cercaduras raras
E me fiz máscara, mulher e conjetura.
Águas que não bebi. Crepusculares. Cavas.
Códigos que decifrei e onde me vi mil vezes
Inconexa, parca. Ah, toma-me de novo
Antiquíssima, nova. Como se fosses o tigre
A beber daquelas águas.”

parece-me que há uma profundidade maravilhosa aí, não alcançada por mim, talvez devido ao fato de eu não conseguir respirar lá tão embaixo. metáfora pobre, eu sei. porém sincera, no sentido de que sinto no poema uma escrita a ser admirada, uma verve (palavra estranha) poética que eu, enquanto leitor, ainda não internalizo, quiçá sinto.
talvez faltam-me leituras para isto, algo elementar, uma vez que nossa caminhada como leitores depende de uma coragem para encarar textos novos, difíceis, estranhamente estranhos para aquele nosso momento.
há dez anos, eu lia Drummond na escola e não compreendia como aquilo era considerado boa literatura, algo que me permite, agora sendo professor, entender a revolta de meus alunos diante dos mesmos textos que outrora eu abominava. e hoje eu leio um poema como “a flor e a náusea” e me deleito com tamanha sensibilidade crítica de um poeta cujo desejo era vomitar, através da palavra – ou de uma flor – o enjoo da época vivida, um tempo de fezes e de surdez:


“Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belo, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

eu hoje sinto essa flor a cada vez que leio este poema. e sinto-a sempre de uma maneira diferente, uma vez que sou um leitor diferente a cada leitura feita.
outro exemplo: a metalinguagem do maneca, o manoel de barros, no “matéria de poesia” não me era compreensível nos primeiros anos da faculdade e, de tanto lê-lo, é-me um poema/livros que, de tão internalizado em mim, com frequência envolvo-o em minhas aulas de literatura e de redação, tentando fazer com que um chevrolet gosmento grude nos meus alunos:


“Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia

Terreno de 10×20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolet gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que não levam a nada
têm grande importância

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos –
têm muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso

Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta
Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora
Aliás, é também objeto de poesia saber
qual o período médio que um homem jogado fora
pode permanecer na Terra
sem nascerem em sua boca
as raízes da escória

As coisas sem importância
são bens de poesia
pois é assim
que um chevrolet gosmento
chega ao poema
e as andorinhas de junho.”

voltando à hilda, li o livro “do desejo” (editora globo) sem sublinhar nenhum verso, sem rabiscar palavra alguma nas laterais das páginas, não compreendendo a maioria dos poemas. e não há desespero em mim, muito menos a triste ideia de tempo perdido. há, sim, este olhar reflexivo que fez brotar esta croniqueta (escrita enquanto a rafa canta, aqui no bar – faz favor, leitor, vai lá e lê a croniqueta anterior).
sendo assim, hilda, eu volto a ti daqui uns anos – no que diz respeito à tua poesia, pois nas crônicas nos entendemos muito bem, entre cascos e carícias (inclusive, esta é uma croniqueta inspirada pelas tuas, ou seja, repleta de versos e poemas) – com tantos livros a mais na minha bagagem leitora. tu me esperarás, eu sei. e o papo será muito bom.

ítalo puccini