domingo, 31 de março de 2019

des


      assim sem acento é prefixo de oposição, negação ou falta; com acento – dês – é preposição antiga, substituída atualmente por desde, e também ação do verbo dar conjugado na segunda pessoa do singular no presente do subjuntivo – que tu dês atenção a quem te ama – e no imperativo negativo: não dês atenção a quem não te quer. e entre essas duas acepções da palavra me interessa mais a primeira, mesmo que as frases de exemplo da segunda sejam muito oportunas.
      meu olhar para a palavra des enquanto falta existe desde que li, há anos, a terceira parte do “conto de facas”, do enzo, cujo título é justamente des, e os textos ali presentes entoam a dor de um fim de relacionamento, sendo o primeiro texto dessa parte justamente o motivo do término: “Descaso sm. 1. desatenção 2. falta de importância ou cuidado 3. desconsideração 4. neblina que se perfila nos olhos daquele que perdeu a única pessoa com quem se casaria em vida; espera, breu branco”. e os demais textos trabalham com palavras como descuido, desejo, desterro, descida, descrença, desaparecer, desperto, descartar, desconhecido e andes. 
      segundo enzo, ainda, des é nome a ser dado a quem abandona a pessoa amada – no texto intitulado “Quatro minutos de olhar”, há a seguinte explicação: “Texto sobre Yashodara, a esposa que foi abandonada por Sidharta Gautama, o Buda. Seu des”. e esse significado desde então mora em mim, mais ou menos latente de acordo com os acontecimentos cotidianos e com a intensidade da memória nas veredas das vivências. de modo que minhas recentes separação matrimonial e demissão profissional me reacenderam essa lembrança.
     pois há poucos dias eu criei uma playlist com o propósito de reunir músicas cuja temática fale sobre o sentimento de falta do eu lírico, oriunda de um abandono amoroso, ou seja, que contenham letras expressivas de mentiras sinceras, migalhas dormidas, raspas, restos e pequenas porções de ilusão – atitudes típicas de uma pessoa apaixonada quando em desespero diante da perda de um amor. não exatamente porque eu vivencie um caso assim, e sim devido ao meu interesse por esse recorte poético: não há nada melhor do que ouvir canções sobre dores amorosas quando estas não compõem o seu ser naquele momento. 
      e eu escolhi, também, saber de algumas pessoas próximas palavras cujo início seja com des, com a finalidade de ampliar o repertório de significados possíveis a essas três letras. e a experiência foi sensacional, a começar pela quantidade de palavras propostas por cada um dos convidados a esse exercício de pensar: houve quem me dissesse uma só palavra, foram duas pessoas – uma disse deslexia, enquanto a outra, despacito – escolhas bastante representativas de cada uma. em contrapartida, vieram 88 palavras de uma só pessoa, bastante destemida, inclusive merecedora de um prêmio pelo entusiasmo na brincadeira. e um convidado teve a desfaçatez de não participar: xablau pra você, irmão. 
     as palavras mais repetidas entre os dezessete participantes foram desespero, desdém e desculpas, ditas por sete deles, e dentre essas a de que eu mais gosto é desdém, pela sonoridade – gosto também, pelo som, de desditoso, deslize, desvario, desapego, desfile, desuso, desleal, desumano, deserto, desvio, desvelar, desaguar e desmembrar. inclusive, foi pensando nesses diferentes aspectos de se olhar para uma palavra que eu constatei quantas, por mais que comecem com esse prefixo cujo significado é de oposição à ideia da palavra original, não simbolizam sentido negativos, até mesmo porque são conjunções, preposições, conceitos ou variações verbais: destarte, desde, dessa, destro, desinência, desktop, desporto, design, destaque, desbravar, descer, desenhar e destino. e também há as que sugerem conotações positivas: desmentir, destemido, desinibido, destreza, despir, desejo, desencalhar, desbloquear, descomplicar, desarmar e desabafar.
     eu procurava, desde o início da brincadeira, por quatro palavras: descaso, desapaixonar, desonra e deslembrar. e elas apareceram assim: a primeira, três vezes; a segunda, duas vezes; a terceira, uma única vez; e a quarta, nem uma vez – só a encontrei no grande sertão do guima. enquanto tantas outras, ainda, alegraram-me porque tiradas do esquecimento em que viviam no meu mundo invertido: desordem, desatino, déspota, desdêmona, desamor, descanso, descaminho, desinteirar, desalinho, desalinização, desiluminador e desvelar. 
      por fim, gostei da reação dos participantes – menos do completo silêncio de um deles, atenção devidamente já chamada neste texto. a maioria não me questionou o porquê da minha intervenção, que foi: diga-me palavras que comecem com des. porém, alguns reagiram, mais ou menos surpresos, mais ou menos desconfiados, mais ou menos indignados, mais ou menos felizes: um me disse “tá faltando google na sua vida”,  demonstrando fina educação; três expuseram cansaço ou preocupação ao perguntarem “ajudei?”, “deu?”, “tá bão?”; um se assustou e questionou “assim do nada?”; outro dissertou raivosa indignação diante da minha recusa em explicar o motivo do meu pedido; e um me deixou muito feliz ao dizer que nunca mais pararia de pensar nessas palavras. 
     e esta croniqueta eu espero que cumpra essa função também, de instigá-los a continuarem à procura de palavras, no modo mais aleatório possível, relembrando-as, ressignificando-as e compartilhando-as. e a recompensa por mim prometida a cada um dos convidados – grato. daqui uma semana você receberá a recompensa – é este texto, em conjunto ao link da playlist, esta na qual há pelo menos uma música sugerida por cada um deles sobre dor amorosa, pra ser ouvida nos momentos bons e ruins, a depender da coragem e do impacto de um des na vida de cada um. 
ítalo puccini

segunda-feira, 25 de março de 2019

entre folhas

chove na diagonal
passado sobre a mesa
filtro de melancolia.

ítalo puccini

segunda-feira, 18 de março de 2019

onde nasce a fonte do ser

olhos de água
em braços de leão 
tatuagens em pincel.

ítalo puccini

domingo, 10 de março de 2019

o avesso

transar no espelho
de meia no chuveiro
beijo sem pudor.

ítalo puccini

sexta-feira, 1 de março de 2019

não é preciso olhar o olho do outro enquanto se lava louça

      ele prefere lavar a louça a transar é mais sincero quando lava a louça é escolha desejo querer vontade é o prazer de ouvir música e cantar de sentir prazer sem obrigações sem satisfazer alguém ou saber se está tudo bem porque não é preciso olhar o olho do outro enquanto se lava louça não é preciso tocar outro corpo muito menos dividir espaço e tempo ele sempre está atrás do tempo por vezes transa e se pergunta por que está fazendo aquilo com o outro fingindo entregar-se enquanto corpo desperdiçando o tempo que é seu não importa com quem eventualmente transe ele não se envolve sentimentalmente ele não sente amor e desejo pelo outro ele não se interessa em pensar no outro não sabe o que é sentir frio na barriga vazio no estômago medo de perder quem se ama ele se dedica exclusivamente a si e lavar a louça lhe permite pensar organizar-se mentalmente para tarefas cotidianas planejar passeios textos e respostas a e-mails lembrar de familiares e de momentos marcantes vividos ao passo que transar o sobrecarrega o tensiona lhe implica responsabilidade pelo outro então ele transa a esmo transa alheio e assim garante que com aquele outro não mais acontecerá ele não mais vivenciará a sensação de vazio que lhe invade o estômago nesses momentos nem o constrangimento de uma cama compartilhada ou de um contato físico carente de intenção e quando a consciência do ato o atravessa ele se esconde na própria vergonha esmorece fuma cigarros faz compras visita o mar e viajante exausto ele volta para lavar louças reconectado à própria frieza enquanto o mundo continua a girar mesmo que não haja mais louças 

ítalo puccini