quinta-feira, 12 de novembro de 2009

as narrativas de galera: fôlego

      dediquei-me a ler os livros do autor gaúcho daniel galera. não foi agora, não. já se vão umas três semanas. mas foram três livros numa semana só mesmo. livros de leitura pra lá de envolventes. livros de narrativas pra lá de bem escritas.
      daniel galera é autor novo, de apenas trinta anos. tem quatro livros publicados: “dentes guardados” (2001), “até o dia em que o cão morreu” (2003), “mãos de cavalo” (2006), e “cordilheira” (2008). este último, inclusive, ganhou terceiro lugar no jabuti 2009. dos quatro, li três, muitíssimo bem escritos.
      o que mais me impressiona na escrita do galera é a condução da narrativa. é o domínio da mesma. a segurança com que ele conduz os romances. a descrição impecável de cenas e personagens.
      “até o dia em que o cão morreu” foi também filmado. por beto brant e renato ciasca, sob o nome de “cão sem dono”. foi, para mim, o menos envolvente dos livros que li dele, e o mais porra-louca. não chega a ser um livro catártico. é uma novela, eu diria. a escrita é cuidadosa. a seqüência de ações, idem. o final, de certa forma, surpreende um pouco. mas não muito. talvez nisso resida um detalhe das histórias deste autor. uma certa previsibilidade. mas de forma alguma isso torna sua leitura enfadonha. justamente porque a condução se dá pela forma narrativa em si, pelo modo como tais histórias são apresentadas ao leitor. em “até o dia em que o cão morreu” não há como não se aproximar do personagem de mais ou menos vinte e cinco anos, cujo nome não é apresentado ao leitor, que gasta os dias olhando a cidade pela janela, bebendo cerveja e caminhando pela vizinhança. não há como não seguir seus passos (ou a falta dos mesmos), o cão que o acompanha, a relação que ele estabelece (ou tenta) com marcela. não há como não visualizar a porto alegre descrita ali.
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       e em “mãos de cavalo” essa mesma porto alegre é novamente descrita. com minuciosidade. mas são outros lugares da mesma porto alegre. são, também, outros olhares. é o olhar de hermano, principalmente. mas de bonobo, de naiara, de morsa, de adri. a densidade da narrativa de “mãos de cavalo” é impressionante. o tempo se alterna entre o passado e o presente do personagem. o tempo revive lembranças e explica fatos. mas não cura feridas. não alivia o sentimento de culpa de hermano. a história se mantém em um vai e vem até o final. o leitor balança nesse vai e vem. por ora é preferível parar. mas não há como não continuar. a aproximidade que se tinha antes com o personagem de “até o dia em que o cão morreu” se tem agora com hermano. encantei-me por demais com este livro. até hoje não me sai da cabeça as noites em que, antes de dormir, eu “entrava” na história de uma forma muito intensa, tamanha a força da narrativa.
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      e é essa aproximidade que se terá, depois, com a escritora anita, personagem em “cordilheira”. romance de lançamento da coleção “amores expressos”, que traz histórias de amor ambientadas em diversas cidades do mundo, este livro mais recente do autor gaúcho apresenta ao leitor uma narrativa mais descontraída que “mãos de cavalo”, mais linear na condição de tempo, porém mais envolvente e embaralhada no que diz respeito às ações dos personagens. personagens no mínimo estranhos para anita. argentinos de hábitos bizarros que seguem o lema de viver não suas vidas, mas a vida dos personagens dos livros que eles mesmos escreveram. um pensar sobre vida e arte, seus limites e conseqüências. uma história sobre perdas e recomeços. uma história com um final em aberto.
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      a escrita de daniel galera pede mais que uma leitura atenta. exige uma re-leitura. sua prosa rica em detalhes, as descrições minuciosas de cenas e atmosferas, e seus personagens apresentados aos leitores convidam a um não-desgrudar-se tão cedo. envolvem e cativam, não pelo que há de bonito, mas pelo que há de verdadeiro em cada um, em cada cena. pelo silêncio que se estabelece.

ítalo puccini

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A vida por meio de histórias. Ou o que há de real e de ficção no que lemos e vivemos

     O ato de ler pressupõe uma leitura não somente de textos, de palavras escritas. Não somente de imagens ou de sons. Mas sim uma leitura de nós mesmos e daqueles com quem convivemos. Ler transcende a força que a própria palavra carrega em si. Ler é criar um sentido próprio a si mesmo e ao mundo ao redor de si. É encontrar-se em um eu ainda desconhecido. Ler é, também e principalmente, saber ler a si mesmo e ao outro com o qual se estabelece uma relação de viver.
     A leitura literária é uma forma de leitura existente. É a leitura em que a liberdade e o prazer são ilimitados (ao menos deveriam ser). Porém, é uma modalidade de leitura, o que significa que há outras formas de leitura, formas estas que até desfrutam de maior trânsito social: jornais, revistas, textos na internet.
     Cada leitura tem uma história própria. Cada texto tem também sua história própria. Assim como cada leitor constrói sua história de leitura. É Lajolo quem afirma que “Cada leitor, na individualidade de sua vida, vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que, ao longo da história de um texto, este foi acumulando”.
     É por isso que não concebo a leitura como uma atividade inocente. Compartilho da opinião de Lajolo, e também da de Alberto Manguel, crítico literário, para quem “Toda história é uma interpretação de histórias: nenhuma leitura é inocente”. Não há como ler algo sem relacionar a outro algo, ou já lido, ou já ouvido, ou já presenciado. Uma leitura leva à outra. Uma leitura não só de livros, mas também uma leitura de vida. Vivemos nos relacionando. Vivemos nos lendo a aos outros também. Influenciamos e somos influenciados. Nossas histórias, lidas e vividas, embrenham-se em nossa formação de sujeitos e cidadãos que somos.
     Recentemente pude ler dois romances que me fizeram pensar bastante nesse cruzamento de vidas e de histórias. Duas narrativas nas quais vidas se cruzam e se completam, nas quais vamos, como leitores que somos, embrenhando-nos por entre personagens e histórias de vida, mesmo que tudo aquilo não passe de uma ficção bem construída, de uma narrativa que nos envolve, que nos perturba e/ou encanta, e que nos deixa, às vezes, reticentes quanto a nossas próprias vidas e histórias.
     “Rimas da vida e da morte” (Companhia das Letras, 2008), do israelense Amós Oz é o primeiro dos livros que li. Um livro em que o personagem principal torna personagens de livros as pessoas com as quais ele tem contato. Dá “vida” a elas. Cria histórias, em sua própria mente, mesmo sem conhecê-las, somente a partir do momento em que as vê. Um personagem que transita entre a realidade em que vive (que para nós é a ficção que lemos) e a ficção que cria a partir dessa realidade (que para nós se torna uma ficção dentro de outra ficção).
     Em sentido próximo, a história de “Cordilheira”, de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2008), também apresenta uma reflexão sobre os limites não definidos entre realidade e ficção quando o personagem argentino Holden cita um escritor guatemalteco que radicalizou ao decidir viver como se fosse os personagens que criava. E a personagem principal deste livro de Galera, a Anita, ao se relacionar com Holden e seus amigos, descobre que há pessoas, sim, que levam suas vidas como se fossem a de seus personagens, dos personagens que eles mesmos criam nos livros que escrevem, o que nos leva a se perguntar se não existem também, aqui nesta “vida real”, pessoas que vivem como personagens de livros que escreveram ou que leram.
     Se é que cabe ainda se discutir isto, estas duas narrativas propõem um pensar a respeito do limiar entre realidade e ficção. O Victor da Rosa, por exemplo, escreveu a mim, certa vez, após uma pergunta minha a ele sobre este assunto, dizendo que, para ele, a dicotomia ficção/real está caindo, e que um terceiro gênero indeciso se abre aí, o qual dá muita liberdade pra criação. Essas duas narrativas são exemplos disso, creio.
     Diz o Ferreira Gullar que a arte existe porque a vida não basta. Gosto disto. Mas, como diz meu amigo Guilherme, e se fosse a vida existe porque a arte não basta? Ou seja, não há segurança para afirmarmos os limites da criação literária. E além do mais, não se pode esquecer que é característica do texto literário a falta de limites e a liberdade de criação e de interpretação.
      Volto ao Manguel para encerrar este texto-mais-de-dúvidas-do-que-de-certezas-e-cheio-de-vazios. No seu último livro, “A cidade das palavras” (Companhia das letras, 2008), ele se pergunta se as histórias são capazes de mudar quem somos e o mundo em que vivemos. Eu acredito que sim. E acredito porque senti – e continuo sentindo – o quanto as histórias que já li mudaram meu eu, mudaram minha forma de pensar, sentir, e de agir no mundo. E o próprio Manguel apresenta uma resposta à pergunta que faz: “As histórias podem alimentar nossa mente, levando-nos talvez não ao conhecimento de quem somos, mas ao menos à consciência de que existimos – uma consciência essencial, que se desenvolve pelo confronto com a voz alheia”.
      Talvez assim nos aconteça, de fato, com quem se torna aquele “último leitor” descrito por Piglia em “O último leitor” (Companhia das letras, 2006). O leitor “extremo, sempre apaixonado e compulsivo; viciado, que não consegue deixar de ler, insone, sempre desperto”, para quem a leitura é uma forma de vida, para quem a literatura dá um nome e uma história, “retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser parte integrante de uma narração específica”. Somos, estes sujeitos-leitores, os últimos leitores, aqueles em busca do sentido experiência perdida, que dão à literatura uma utilidade que ela não comporta. Que dão ao livro o que não se cabe nele. Que dão à vida uma história que não é dela só dela. Que dão à história uma nova vida.

Ítalo Puccini