quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A vida por meio de histórias. Ou o que há de real e de ficção no que lemos e vivemos

     O ato de ler pressupõe uma leitura não somente de textos, de palavras escritas. Não somente de imagens ou de sons. Mas sim uma leitura de nós mesmos e daqueles com quem convivemos. Ler transcende a força que a própria palavra carrega em si. Ler é criar um sentido próprio a si mesmo e ao mundo ao redor de si. É encontrar-se em um eu ainda desconhecido. Ler é, também e principalmente, saber ler a si mesmo e ao outro com o qual se estabelece uma relação de viver.
     A leitura literária é uma forma de leitura existente. É a leitura em que a liberdade e o prazer são ilimitados (ao menos deveriam ser). Porém, é uma modalidade de leitura, o que significa que há outras formas de leitura, formas estas que até desfrutam de maior trânsito social: jornais, revistas, textos na internet.
     Cada leitura tem uma história própria. Cada texto tem também sua história própria. Assim como cada leitor constrói sua história de leitura. É Lajolo quem afirma que “Cada leitor, na individualidade de sua vida, vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que, ao longo da história de um texto, este foi acumulando”.
     É por isso que não concebo a leitura como uma atividade inocente. Compartilho da opinião de Lajolo, e também da de Alberto Manguel, crítico literário, para quem “Toda história é uma interpretação de histórias: nenhuma leitura é inocente”. Não há como ler algo sem relacionar a outro algo, ou já lido, ou já ouvido, ou já presenciado. Uma leitura leva à outra. Uma leitura não só de livros, mas também uma leitura de vida. Vivemos nos relacionando. Vivemos nos lendo a aos outros também. Influenciamos e somos influenciados. Nossas histórias, lidas e vividas, embrenham-se em nossa formação de sujeitos e cidadãos que somos.
     Recentemente pude ler dois romances que me fizeram pensar bastante nesse cruzamento de vidas e de histórias. Duas narrativas nas quais vidas se cruzam e se completam, nas quais vamos, como leitores que somos, embrenhando-nos por entre personagens e histórias de vida, mesmo que tudo aquilo não passe de uma ficção bem construída, de uma narrativa que nos envolve, que nos perturba e/ou encanta, e que nos deixa, às vezes, reticentes quanto a nossas próprias vidas e histórias.
     “Rimas da vida e da morte” (Companhia das Letras, 2008), do israelense Amós Oz é o primeiro dos livros que li. Um livro em que o personagem principal torna personagens de livros as pessoas com as quais ele tem contato. Dá “vida” a elas. Cria histórias, em sua própria mente, mesmo sem conhecê-las, somente a partir do momento em que as vê. Um personagem que transita entre a realidade em que vive (que para nós é a ficção que lemos) e a ficção que cria a partir dessa realidade (que para nós se torna uma ficção dentro de outra ficção).
     Em sentido próximo, a história de “Cordilheira”, de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2008), também apresenta uma reflexão sobre os limites não definidos entre realidade e ficção quando o personagem argentino Holden cita um escritor guatemalteco que radicalizou ao decidir viver como se fosse os personagens que criava. E a personagem principal deste livro de Galera, a Anita, ao se relacionar com Holden e seus amigos, descobre que há pessoas, sim, que levam suas vidas como se fossem a de seus personagens, dos personagens que eles mesmos criam nos livros que escrevem, o que nos leva a se perguntar se não existem também, aqui nesta “vida real”, pessoas que vivem como personagens de livros que escreveram ou que leram.
     Se é que cabe ainda se discutir isto, estas duas narrativas propõem um pensar a respeito do limiar entre realidade e ficção. O Victor da Rosa, por exemplo, escreveu a mim, certa vez, após uma pergunta minha a ele sobre este assunto, dizendo que, para ele, a dicotomia ficção/real está caindo, e que um terceiro gênero indeciso se abre aí, o qual dá muita liberdade pra criação. Essas duas narrativas são exemplos disso, creio.
     Diz o Ferreira Gullar que a arte existe porque a vida não basta. Gosto disto. Mas, como diz meu amigo Guilherme, e se fosse a vida existe porque a arte não basta? Ou seja, não há segurança para afirmarmos os limites da criação literária. E além do mais, não se pode esquecer que é característica do texto literário a falta de limites e a liberdade de criação e de interpretação.
      Volto ao Manguel para encerrar este texto-mais-de-dúvidas-do-que-de-certezas-e-cheio-de-vazios. No seu último livro, “A cidade das palavras” (Companhia das letras, 2008), ele se pergunta se as histórias são capazes de mudar quem somos e o mundo em que vivemos. Eu acredito que sim. E acredito porque senti – e continuo sentindo – o quanto as histórias que já li mudaram meu eu, mudaram minha forma de pensar, sentir, e de agir no mundo. E o próprio Manguel apresenta uma resposta à pergunta que faz: “As histórias podem alimentar nossa mente, levando-nos talvez não ao conhecimento de quem somos, mas ao menos à consciência de que existimos – uma consciência essencial, que se desenvolve pelo confronto com a voz alheia”.
      Talvez assim nos aconteça, de fato, com quem se torna aquele “último leitor” descrito por Piglia em “O último leitor” (Companhia das letras, 2006). O leitor “extremo, sempre apaixonado e compulsivo; viciado, que não consegue deixar de ler, insone, sempre desperto”, para quem a leitura é uma forma de vida, para quem a literatura dá um nome e uma história, “retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser parte integrante de uma narração específica”. Somos, estes sujeitos-leitores, os últimos leitores, aqueles em busca do sentido experiência perdida, que dão à literatura uma utilidade que ela não comporta. Que dão ao livro o que não se cabe nele. Que dão à vida uma história que não é dela só dela. Que dão à história uma nova vida.

Ítalo Puccini