quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O leitor que move a utilidade literária

     A relação de afeto que a literatura demanda por parte do sujeito-leitor, daquele que se encoraja ao desconforto e a despir-se em uma relação íntima com o texto, maravilhosamente apresentada por Artur de Vargas Giorgi no DC Cultura de 14/06/2008, evocaram neste sujeito-leitor aqui um (re) pensar duas condições, a meu ver, inerentes à literatura: sua (in) utilidade no contexto escolar, e a condição de ser leitor desta literatura.
     Gosto muito de pensar e de sentir que as melhores coisas da vida não servem para nada, e nem precisam disso. Mas também sinto a necessidade de pensar na utilidade de algumas coisas, como, por exemplo a utilidade da escola e a utilidade da literatura enquanto disciplina escolar. Posso até amar que as diversas formas de arte sejam vistas como coisas-sem-serventia neste mundo consumista e utilitarista em que se vive hoje em dia, mas também preciso pensar a arte como sendo útil, pois para mim ela tem uma utilidade maravilhosa, que é a de me permitir sonhar, crer em algo, encontrar algum sentido para o viver. E, se em mim a arte provocou uma mudança no meu modo de ser/pensar/agir, eu preciso crer que o contato com ela poderá também provocar mudanças em outras pessoas, e aí eu me deparo com o útil que posso encontrar nela, e o aceito.
     Nessa contextualização é que vejo como possível indagar a importância e a utilidade da disciplina literatura dentro da escola. Sinto-me instigado a pensar nela como essencial. Não de uma maneira grosseira e prepotente, mas sim como uma convicção, uma segurança de que ela pode contribuir, e muito, no processo de formação dos sujeitos-alunos.
     A literatura é a arte da palavra escrita. É a manifestação do real e do imaginário através da palavra escrita. A literatura envolve, impreterivelmente, o ato de ler, uma prática de leitura. A leitura pode ser apontada como o meio mais eficiente para se alcançar o senso crítico. O ato de ler – independentemente do como e do o que se lê – está diretamente relacionado ao desenvolvimento da consciência do ser humano como cidadão participante de uma sociedade, dentro da qual ele possui direitos e deveres a cumprir, como também ao desenvolvimento do ser humano enquanto sujeito, enquanto um ser histórico, subjetivo, singular.
    Se a literatura é o trabalho desenvolvido com a prática da leitura do texto escrito (não só, mas principalmente), e se a leitura é condição sinequanom para a formação e o desenvolvimento do ser humano como um sujeito-social, a finalidade da literatura é a de contribuir, através de uma prática constante do ato de ler, para essa formação social e subjetiva do sujeito-aluno (a quem ela é primeiramente destinada na escola).
     Diante disso, qualquer indagação do porquê de se trabalhar a literatura na escola perde o sentido. Conforme as palavras apresentadas por Ana Maria Machado em seu Balaio: livros e leituras, As obras literárias nos convidam a um exercício de liberdade de interpretação e de respeito pelas diferenças. Colocam diante de nós o desafio de enveredar por um discurso que oferece diversos planos de leitura, numa linguagem rica em potencialidade inesperadas, cheia de ambigüidades. Como a vida.
     Neste quadro da utilidade da literatura há, então, um sujeito-leitor, proposto pelo filósofo e lingüista Umberto Eco em seus Seis passeios pelo bosque da ficção como um ingrediente fundamental não só do processo de contar uma história, como também da própria história.
     Um leitor perspicaz, sensível ao que existe ao seu redor, que constrói junto ao texto um sentido próprio, este que traz imbricadas em si dimensões de ler, de viver, e de estar no mundo deste sujeito-leitor. Um leitor que trata a leitura como interação com o mundo e consigo mesmo. Um leitor corajoso, que a todo o momento se vê diante de escolhas a fazer, que vive a batalha em busca do sentido apresentada por Marta Morais da Costa em seu Mapa do mundo: crônicas sobre leitura, na qual escritor e leitor, irmanados lutam a mesma luta vã, derrotados pela força da palavra, vingam-se espalhando seus sentidos em muitas e múltiplas interpretações.
     Este sujeito-leitor aqui discutido também pode ser o leitor trazido por Piglia, em O último leitor. O leitor extremo, sempre apaixonado e compulsivo; viciado, que não consegue deixar de ler, insone, sempre desperto, para quem a leitura é uma forma de vida, para quem a literatura dá um nome e uma história, retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser parte integrante de uma narração específica.
     Assim, o leitor dessa literatura útil é o leitor que interage com o texto, que cria e recria sentidos, que relaciona o texto a outros já lidos, a situações já vividas, que compreende as ideologias presentes em cada texto, e o fato de um texto nunca apresentar sentidos completos. É o leitor que Manguel, em Uma história da leitura, defende como aquele que lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo.
     É o último leitor, aquele leitor em busca do sentido experiência perdida, que dá à literatura uma utilidade inimaginável.

Ítalo Puccini