quinta-feira, 21 de maio de 2020

ainda a pedra

em itabira mais vale
uma barragem no morro
que um drummond vivo

ítalo puccini


sexta-feira, 8 de maio de 2020

a sobrevivência enquanto instinto


– Você já desejou ter morrido?
– Não. É bobagem querer luxo em tempos como estes.

     não existe força para chorar, apenas para ir adiante, mesmo que ir não garanta chegar a algum lugar muito diferente daquele em que já se está. assim podemos pensar “A estrada”, do norte-americano cormac mccarthy, de quem já li também de “Onde os velhos não têm vez” e “Meridiano de Sangue”, publicados no brasil, respectivamente, em 2007, 2006 e 2009, cujas temáticas se assemelham: personagens no limiar da vida, em uma realidade passada, presente ou futura similar, de abandono e desesperança.
     a epígrafe deste texto é um dos diálogos estabelecidos entre pai e filho na infinita estrada por onde caminham. são os dois os personagens a partir dos quais a narrativa desse livro se estabelece – “cada um o mundo inteiro do outro” – e, no caso do diálogo acima, é a pergunta do filho para o pai. e há muitas perguntas assim com um quê de ingenuidade. afinal, o garoto é apenas uma criança de mais ou menos oito ou nove anos, que se vê caminhando para o sul e litoral dos estados unidos com seu pai, em um cenário de destruição total, em que não restou nada do mundo como o conhecemos. são pouquíssimas as pessoas que sobreviveram a esse fim do mundo tão recorrente nas produções de cormac. 
     essa obra de mccarthy, inclusive, foi filmada para o cinema em 2009, em produção homônima, assim como “Onde os velhos não têm vez” – esta em 2007, pelos irmãos coen, com uma mudança no nome: fracos no lugar de velhos – ambas vencedoras de prêmios renomados no meio cinematográfico. “Onde os fracos não têm vez”, por exemplo, venceu o oscar 2008 de melhor filme, além dos de melhor ator coadjuvante, melhor roteiro adaptado e melhor diretor; enquanto “A estrada” ganhou melhor filme no bafta 2010 e o leão de ouro no festival de veneza 2009. tanto nessas duas películas quanto nas obras literárias das quais se originaram, é possível sentir uma vontade de ajudar os personagens nos conflitos internos e externos que vivenciam, em virtude da capacidade narrativa de imersão psicológica em meio à violência mundana. 
     sobre “A estrada”, o sentimentalismo, se existe, é do leitor. pois a escrita oferece a concretude dos fatos e no máximo as dúvidas de uma criança que  quer entender um pouco mais sobre o que vive. é uma história de persistência para a sobrevivência. uma persistência por algo que não se sabe aonde chegará, mas simplesmente ficar onde se está é um atestado de óbito. desse modo, o pai conduz o filho – ambos personagens sem nome – numa infinita caminhada contra a fome, o frio e os perigos de se depararem com as “pessoas do mal”. é assim que o pai apresenta ao filho aqueles de quem vez ou outra eles fogem ou se escondem, que, caso os encontrem, não só os matarão, como os tornarão alimento. e essa ausência nominal se entende uma vez situada uma realidade pós-apocalíptica, na qual viver é uma condição de estrita sobrevivência, de manter o funcionamento do organismo corporal e mental, nada mais sendo relevante. 
     ainda, em contraste aos que são “do mal”, talvez como uma forma de não deixar morrer no filho a capacidade de nutrir esperança – ou de aprender a não desistir – o pai lhe ensina sobre as “pessoas do bem”, mais raras, mas ainda existentes. e assim cormac constrói uma personagem criança com suaves características de amadurecimento que se desenvolvem durante a narrativa, como a preparar-lhe para o que acontecerá ao final, quando será preciso tornar-se capaz de escolhas independentes e racionais, desprovidas de apego emocional, sem contudo perder a ternura, tão peculiar a ele no decorrer da história.
     há um momento, inclusive, no qual o leitor se sente também esperançoso de encontrar nas páginas seguintes um mundo mais próximo ao que hoje conhecemos: cores e construções vivas, ir e vir de pessoas, comida nos supermercados. é mais ou menos na metade do livro, quando pai e filho descobrem um esconderijo subterrâneo em uma das casas ainda não destruídas. um esconderijo repleto de alimentos enlatados e conservados. um esconderijo onde eles ficam por dias, não se sabe quantos exatamente – pois  outra característica do livro é a ausência de elementos temporais para situar o leitor, algo compreensível, afinal, se pai e filho não sabem que dia, mês ou ano é, por que nós deveríamos saber?
     eles caminham em direção ao sul, onde é menos frio, segundo o pai. e em direção ao litoral, à água do mar, onde podem encontrar ainda, quem sabe, animais, algum elemento da natureza, sabe-se lá. caminham porque ficar parado não adianta nada. caminham carregando alguns cobertores puídos, um carrinho de compras com alimentos cada vez mais escassos e um revólver com poucas balas. poucas e marcantes balas. o mundo pós-apocalíptico descrito por mccarthy, além da quase ausência de cor e dos destroços materiais, apresenta ao leitor uma necessidade de sobrevivência inexplicável racionalmente, uma questão animalesca de instinto: ao mesmo tempo em que nos deparamos com um pai sobrevivendo pelo filho, há personagens que sobrevivem por e para comerem os outros poucos ainda vivos.
     por fim, “A estrada” marca também pela forma como é narrada. uma narrativa tão seca quanto o que sobrou de um mundo destruído, cujos detalhes não nos são explicados – e nem há necessidade de. conforme diz um dos raros personagens secundários que aparecem na história: “Acho que em tempos como estes quanto menos se disser melhor”. é o que faz cormac mccarthy nessa obra, característica mais uma vez observada num dos últimos diálogos entre pai e filho, em que aquele inicia com uma pergunta:
     “Quer que eu conte uma história?
     Não.
     Por que não?
     O menino olhou para ele e desviou o olhar.
     Por que não?
     Essas histórias não são verdadeiras.
     Elas não têm que ser verdadeiras. São histórias.
     É. Mas nas histórias estamos sempre ajudando as pessoas e nós não ajudamos as pessoas.
     Por que você não me conta uma história?
     Não quero.
     Está bem.
     Não tenho nenhuma história para contar.
     Você podia me contar uma história sobre você mesmo.
     Você já conhece todas as histórias sobre mim. Você estava lá.
     Você tem histórias por dentro que eu não conheço.
     Quer dizer como sonhos?
     Como sonhos. Ou coisas em que você pensa.
     É, mas as histórias deveriam ser felizes.
     Elas não têm que ser.
     Você sempre conta histórias felizes.
     Você não tem nenhuma história feliz?
     Elas são mais tipo vida real.
     Mas as minhas histórias não são.
     As suas histórias não são. Não.
     O homem o observava. A vida real é bem ruim?
     O que você acha?
     Bem, acho que ainda estamos aqui. Um bocado de coisas ruins aconteceu mas ainda estamos aqui.
     É.
     Você não acha que isso seja tão bom.
     Está bem para mim”.

ítalo puccini