quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

rota de fuga

entrevistei o rubens da cunha. na correria da escrita final da sua dissertação de mestrado, ele atendeu ao meu pedido e respondeu, por e-mail, as perguntas abaixo.
foi rubens quem me apresentou aos blogs. é muito culpa dele a existência do um-sentir. talvez ele não saiba disso. passa a saber agora. porque sempre que me pedem para indicar um blog só, aquele que para mim é o melhor, que mais marcou, eu cito o casa de paragens, porque desde a primeira vez que eu estive por lá, e até hoje, sempre quando lá estou, deixo de ser eu mesmo e entro em outro plano espaço-temporal.
descubram um pouco do leitor/escritor/oficinador que é o poeta/cronista rubens da cunha.

Que tipos de livros você gosta de ler?
Eu gosto de ler tudo, é quase um ato involuntário. Está escrito, eu estou lendo. Mas a preferência, claro, vai para os livros de literatura, sobretudo, poesia e prosa que tenham algum elemento de ruptura com a linguagem, algo que vá além da história, pura e simples.

Com que frequência você lê livros?
O tempo todo. Agora por causa do mestrado estou mais focado em livros teóricos, de filosofia, ensaios críticos, mas, de vez em quando, retomo à poesia para não esquecer do que sou feito.

Cite alguns autores e alguns livros favoritos? E explique por que para você são favoritos?
O meu critério de preferência, ou de favoritismo, é imaginar que livro eu levaria para uma ilha deserta e ele supriria minhas necessidades por tempo indeterminado. Alguns autores supririam isso facilmente: Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Jorge de Lima, Lautreamont, T.S. Eliot, Mia Couto, Julio Cortázar, C. Ronald. Adolfo Boos Jr. Kafka.
Mas, hoje, se fosse me dado a trágica missão de escolher um livro pra fugir comigo, eu daria um jeito de escolher um dos quatro que me parecem essenciais:
Poesia – Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão de Hilda Hilst
Contos – Laços de Família – de Clarice Lispector
Romance – Avalovara – de Osman Lins
Filosofia / Ensaio – A experiência interior – de Georges Bataille

dá para se viver um bom tempo apenas com um desses livros.

Agora diz um livro que deixou você assim, sem respirar por um bom tempo? E um que você tenha achado uma bela porcaria?
O que me deixou sem respirar foi qualquer um desses citados na pergunta anterior. Ultimamente ando sem respirar diante da filosofia poética, ou da poesia filosófica de Emil Cioran. Quanto à bela porcaria, há muitos anos eu exerço um dos direitos do leitor pregados por Daniel Pennac que é o de desistir quando a coisa não vai bem. Então, já nem lembro do último livro que eu li até o final e que eu não tenha gostado. A exceção fica por conta de alguns livros teóricos que eu tenho que ler, melhor, tenho que enfrentar mesmo, como se fosse uma luta.

Em que lugares vocês costuma ler? E qual é o seu lugar preferido de leitura?
Leio em casa, no ônibus, na fila do banco, qualquer lugar é lugar de leitura.

Você costuma comprar muitos livros? Empresta-os de bibliotecas? Tem o costume de emprestar seus livros a alguém?
Costumo comprar livros em sebos. Dei uma maneirada agora, pois estava comprando mais livros do que minha capacidade de leitura. Empresto de biblioteca quando o livro não é fácil de encontrar ou está muito caro. Empresto livros sem problema, inclusive se alguém souber para quem eu emprestei um dos meus livros fundamentais: Ascese – os salvadores de Deus, do Nikkos Kazantzakis, é favor me avisar, pois eu não tenho a mínima ideia para quem foi, e nunca mais vi o livro.

Quem é o Rubens da Cunha enquanto leitor?
Um sujeito curioso e que se irrita quando o interrompem durante a leitura

Como você incorporou a prática da leitura? Alguém incentivou, teve um fato marcante?
Foi meio natural, apesar de eu não vir de uma família leitora. Comecei a ler na escola, os livros que estavam por lá e nunca mais parei. O incentivo, acho que veio mesmo da minha vida de menino solitário que precisava de alguma rota de fuga.

Desde quando você é blogueiro? O que o blog representa na sua formação leitora e escritora?
Tenho blog desde 2005. Antes, eu era mais atento, lia os outros blogs, passeava mais por esse universo, e percebia, por exemplo, que a poesia portuguesa contemporânea me diz muito mais do que a brasileira. Hoje, por causa do mestrado, estou mais distanciado, mas gosto dessa ferramenta, acho que tem a cara do futuro, é a democratização, o espaço onde o escritor pode fugir da ditadura do sistema literário, e também do risco de publicar um livro sem estar pronto ainda como escritor. Aconselho muito a adolescentes abrirem um blog no lugar de quererem publicar um livro.

Quer falar um pouco também sobre o que a escrita significa para você?
Escrevo porque foi a forma que eu consegui desenvolver para me expressar artisticamente, e até para sublimar minha inveja dos cineastas e dos músicos. Hoje, a escrita é algo que me fascina, me empolga e mantém em mim a curiosidade. O bom é que a escrita está intimamente ligada com a leitura. Facilita bastante a vida...

Lembro-me de que o conheci participando de uma oficina que você deu na faculdade, há uns anos já. Como é lidar com oficinas de escrita? Como é lidar com esse tipo de público que vem para “aprender a escrever”, digamos assim (talvez até alguns para “pegar dicas”). Enfim, podes falar também sobre as oficinas de escrita e de leitura, tanto as que você coordena, quando as de que participa?
Bom, eu sou partidário da ideia que atribuem a Lautreamont: a poesia deve ser feita por todos. Gosto de ministrar oficinas porque posso transmitir aos outros um pouco da minha paixão pela escrita. Eu não ensino a escrever, mas repasso alguma técnica, uma forma diferenciada de manusear o instrumento, o que o poeta vai produzir com isso, aí depende de fatores que uma oficina não dá conta: leitura, sensibilidade, imaginação. De maneira geral, público responde bem as minhas interpelações. Quanto às últimas oficinas que eu participei, senti falta de um olhar mais acurado, mais direcionado ao texto, por parte dos oficinantes. É algo que eu faço, cada um escreve e lê seu texto e eu opino diretamente sobre o texto, apontando caminhos, possibilidades, questionando o autor para que ele visione aquilo por outro ângulo. Queria muito que fizessem isso comigo, mas não rolou, os oficinantes não usavam essa técnica. Outra coisa também é que quando participo tenho que me segurar muito para não palpitar, não bancar o assessor de quem tá ministrando a oficina.

Deixa uma frase de (d)efeito aí, sobre leitura, escrita, livros, afins...
Ler, assim como viver, é difícil, mas absolutamente necessário. 

sábado, 9 de outubro de 2010

Dois pra lá, dois pra cá: os romances de Chico

     É assim que eu, enquanto leitor, classificaria os quatro romances escritos pelo compositor e escritor Chico Buarque, o ícone da Música Popular Brasileira, que há muito tempo apresenta uma ligação muito grande com a literatura, variando por gêneros como peças teatrias, novelas e romances.
    A escrita de Chico apresenta uma crescente. O que é muito bom sinal. Não tenho leitura das peças “Roda viva” (1968), “Calabar” (1973), “Gota d’água” (1975) e “Ópera do malandro” (1979), nem da novela “Fazenda modelo” (1974), o que me permite fazer a afirmação acima com base apenas em seus quatro romances, escritos entre 1991 e 2009: “Estorvo” (1991), “Benjamim” (1995), “Budapeste” (2003) e “Leite derramado” (2009), todos lançados pela Companhia das Letras.
    Fiz leitura iniciais aleatórias destes quatros. Há uns cinco anos, li primeiro “Budapeste”, e depois parti para “Estorvo”. E fiquei por ali. Recordo-me de ter gostado do primeiro – apesar de ter encontrado algumas dificuldades na leitura, como de manter a atenção à narrativa, um tanto quanto solta (ou somente era um alto grau meu de disperssão) – e de não ter gostado do segundo, um emaranhado narrativo de frases e parágrafos longos, de mistura de personagens e de ações, uma tentativa de catarse literária que, à minha prática leitora, ficou mal construída, uma vez que não cumpriu com a premissa básica de firmar o leitor na narrativa e de conduzi-lo por ela.


     E agora do lançamento do quarto romance do autor, resolvi, antes de encarar “Leite derramado”, retomar as duas leituras feitas há mais tempo, e de fazê-las em ordem de publicação. Sendo assim, portanto, retomei “Estorvo”, mas desta vez progredi junto a mim mesmo. Ao invés de ir até o final mesmo o achando ruim, parei um pouco antes da metade, pois se até ali, pela segunda vez, o romance não havia me fisgado como leitor, não me daria ao trabalho de ir até o final para fazer a mesma leitura anterior. “Estorvo” é a história, escrita em primeira pessoa, de um personagem que não sai do lugar. Que sonha com muito, e vive com pouco. Que se apresenta todo desajustado no que diz respeito às regras sociais: não se adequa a nenhum emprego, aceita ser sustentado pela mulher e pela irmã, é incapaz de administrar os bens da família após a morte do pai, não valoriza bens materiais (perde muitos deles) e não reage a nada disso. Um personagem atônito. Alheio. Levado pela ação. A história de “Estorvo” direciona para um mundo impedido, quase que inalcançável para o personagem que não consegue superar o passado, onde não há esboço de resistência nenhuma. O personagem não se leva a nada. É levado. E se deixa. E a narrativa, idem. Ela busca se apresentar da forma como apresenta o personagem. Ideia boa, muito, muito bem feita pelo próprio Chico em “Leite derramado” (já vou chegar lá), mas não neste primeiro livro.


     E não também em “Benjamim”. Outro personagem andando torto por aí. Um ex-modelo fotográfico que, como uma câmara invisível, vê o mundo desfilar diante de seus olhos sob uma atmosfera opressiva. Sem conseguir, com isso, distinguir o que vê fora de si do seu passado, e de si mesmo. Assim segue Benjamim, cruzando com uma série de personagens nada seguros de si, iguais a ele. Nenhum problema até aí, desde que fosse bem escrita esta narração. O que, em minhas leituras, não é. Parece-me uma narrativa tão atordoada quanto à de “Estorvo”. Uma narrativa que busca seguir o que ela mesma apresenta. Mas que derrapa nesta busca. O clima opressivo é resultado  do próprio estilo de narrar. Mas esta narração não se sustenta para o leitor. É um vai e vem que, por mais atento que esteja este leitor, ele se perde. Ou, se consegue acompanhá-la (a narrativa), ela pouco lhe significa. Foi assim que me senti lendo – ou tentando ler – “Benjamim”. E não, não fui até o final. O livro que me desculpe por este julgamento precipitado. Tenho o direito de seguir ou não com a leitura. Como leitor, o livro é meu, e com ele faço o que quiser, e se em metade das páginas ele não me fisgou em nada – nem na trama, nem na narrativa – é meu direito colocá-lo de lado e pré-julgá-lo como fraco nesse sentido. Pennac me alivia ainda mais quando me recordo dos terceiro direito do leitor, proposto por ele: “O direito de não terminar um livro”.


     Depois dessas duas leituras que pouco ou nada cativaram, parti para “Budapeste”, com a esperança de abraçar ainda mais a história, de me sentir tocado pela narrativa ainda mais do que na primeira leitura feita anos anteriores. E assim aconteceu. Consegui “grudar” nesta narrativa escrita por José Costa (que muito bem poderia ser Chico, dado os elementos de metaliteratura presentes na trama). Costa é aquilo que conhecemos por ghost-writer. O cara que escreve textos para outros assinarem como se fossem seus. E Costa escrevia mais do que somente textos como artigos para jornais e revistas. Ele escrevia livros. Romances pelos quais outros autores recebiam a devida fama. E de repente o leitor acompanha José Costa por Budapeste. Um erro de escala e ele para por lá. E sem tesão pela vida profissional e pessoal que leva, transita entre o Rio de Janeiro e Budapeste. Mantém o casamento no Rio, com Vanda – mas um casamento em que o melhor para os dois é a distância que mantém um do outro – e passa a viver nova vida com Kriska, em Budapeste.
    A linha narrativa de “Budapeste” é bem construída. É o famoso lá e cá. O livro é dividido em seis ou sete capítulos. Que servem apenas para jogar o leitor ora para o Rio de Janeiro, ora para Budapeste. Fica mais fácil de acompanhar a narrativa. Ou menos difícil. Porque, de fato, é preciso muita atenção do leitor em cada linha. Para não perder o cuidado que é preciso se ter com uma língua desconhecida. Com uma língua que está sendo aprendida: “(...) à palavra partida ao meio como fruta que eu pudesse espiar por dentro”. Ainda mais sendo o húngaro, a única língua que o diabo respeita, segundo diz o livro. Também para não perder trechos que muito podem significar, como este: “Quando se abriu um buraco nas nuvens, me pareceu que sobrevoávamos Budapeste, cortada por um rio. O Danúbio, pensei, era o Danúbio mas não era azul, era amarelo, a cidade toda era amarela, os telhados, o asfalto, os parques, engraçado isso, uma cidade amarela, eu pensava que Budapeste fosse cinzenta, mas Budapeste era amarela”.


     E, por fim, após este suspiro com “Budapeste”, este alívio de leitura “Buarquiana”, encantei-me com “Leite derramado”, com a história de Eulálio e toda sua saga familiar (que tem início na corte portuguesa, atravessa os períodos do Império e da República Velha, e desemboca nos dias de hoje). Eulário Montenegro d'Assumpção, nascido em 16 de junho de 1907, um idoso centenário agonizando no leito de um hospital, que, quase num monólogo, discorre sua vida – ou fragmentos dela que a memória lhe permite – à filha que o acompanha no leito e às enfermeiras que dele tratam, contando tudo de modo muito confuso e algo delirante, talvez como fora mesmo sua vida. A narração de Eulálio, e de sua vida, perpassa como cenário de fundo a decadência de determinada elite brasileira.
     O que mais me encantou neste mais recente romance de Chico foi justamente o que mais me desagradou nos dois primeiros. A narrativa. A forma como a história é narrada ao leitor. O domínio de narração que o leitor encontra ao acompanhar tudo o que vai contando Eulálio mostra o avanço e o amadurecimento de Chico enquanto escritor, uma vez que, se em “Estorvo” e em “Benjamim” se encontra uma narrativa que não prende – que inclusive atrapalha o leitor – em “Budapeste” e principalmente em “Leite derramado” é possível se deparar com um domínio narrativo que leva o leitor a grudar nas páginas, a correr toda a história e a quase não senti-la passando. Não há o peso dos dois primeiros romances. Pelo contrário. Há um texto que abraça o leitor e que o embala. Fica a sensação de vivenciar a narrativa de dentro mesmo. Um convite a continuar a leitura, como neste trecho no começo do romance: “Se você chamar um táxi, posso lhe mostrar a fazenda, a capela e o mausoléu”.
     Este “você” é o leitor? Não sei. Não sabemos. Cada um lê da sua forma. Eu li como sendo uma frase dirigida a mim mesmo, ao leitor que começa a acompanhar a trajetória de Eulálio. O leitor para quem o velho narra sua história. Sim, ele narra para a filha e as enfermeiras, que se revezam, mas ele sabe que está narrando é para o leitor, para o seu leitor, para aquele que buscará conhecer sobre o que ele tanto faz questão de contar. O leitor que mais para o final do romance ainda recebe o aviso: “Mas você perdeu lances fundamentais da minha vida. Do jeito que anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhavado, sem pé nem cabeça”.
     A escrita de Chico Buarque neste último romance sugere esta aproximação com o leitor. Aproximação que, parece-me, vem sendo buscada por ele desde o início de seus escritos de romances publicados. E que estas leituras em sequência dos quatros livros apresentam um avanço nessa caminhada. Um cuidado pouco visto nos textos literários, de pensar o leitor durante o processo de escrita. Quem é o leitor que lê este meu texto? Que texto se tornará este texto que agora é meu? Chico talvez imagine o que seu texto se tornará. Mas só. Ele não é mais dono a partir do momento em que eu passo a ler este texto. Então, com a devida licença, rascunho estas minhas leituras.

Ítalo Puccini

domingo, 19 de setembro de 2010

entre o presente e a memória: dois romances japoneses

     

     o primeiro que li foi “minha querida sputnik” (2008, editora alfaguara), do escritor haruki murakami. a história de sumire, miu e k., contada por este último. a história, também, de shin'ichi nimura, o cenoura, aluno do professor k. a história contada por este professor.
     há algo de envolvente, sim, neste romance. há uma história, até certo ponto, bem tramada, narrada em primeira pessoa pelo professor k. sendo assim, o que nós, como leitores, sabemos da história, é o que nos conta o personagem-narrador. ou seja, se há outras situações ou olhares para os fatos que acontecem, não sabemos.
     o que há é uma relação de amizade muito forte entre k. e sumire. esta, uma jovem garota com 22 anos, sonhando ser escritora. e há também miu, uma executiva bem sucedida que estabelece com sumire uma relação também muito forte. e, mais para o final, há shin'ichi nimura, o cenoura, aluno do professor, um personagem enigmático na história.
     confesso não ter gostado da forma como “minha querida sputinik” é narrada. não gostei desde o começo. segui em frente para ver até onde iria. fui até o final, mas a narrativa não me convenceu, não. achei-a muito detalhada sem razão de ser. achei-a enrolada demais, com muitas e muitas páginas desnecessárias, que nada acrescentaram à trama. esta sim, a trama, até que é boa, até que inspira no leitor uma curiosidade e um desejo por continuar a lê-la. talvez tenha sido o que me levou ao final do romance.
     pareceu-me um livro estilo best-seller. um livro de fórmula pronta, com trama envolvente, mas que peca demais na maneira como é narrado. como algo positivo é a caracterização dos personagens. há algo que os coloca em relações próximas. há uma solidão escancarada em cada um, e o livro mostra como cada um reage a isto, o que torna interessante, sim, a leitura. não mais que isso. (há outros dois livros do haruki murakami lançados no brasil pela editora alfaguara, de nomes "após o anoitecer", de 2009 e "kafka à beira-mar", de 2008. 



     já o outro romance de autor japonês que li, “quando éramos órfãos” (2000, companhia das letras), de kazuo ishiguro (autor também de "noturnos", 2010, companhia das letras), considerei extremamente bem escrito. uma narrativa construída em detalhes precisos. um livro com mais páginas que “minha querida sputinik”, e sem nada da enrolação daquele. muito pelo contrário. além de ser muito bem tramado, deixando pistas pelo caminho ao leitor, conduzindo este leitor para um quê de mistério nas últimas cem páginas, prendendo o leitor a este final que se aproxima, a forma como esta história é narrada é encantadora. há um cuidado na narração em primeira pessoa que impressiona.
     esta narração é feita por christopher banks, um garoto que se criou inglês, mas que nasceu em xangai, no início do século xx. o narrador vai deixando pegadas, marcas ao leitor, para que este compreenda que a forma como cristopher narra sua história é guiada pura e simplesmente pela memória, o que significa também dizer, pelos buracos que toda memória deixa. diante disso, pois, o leitor tem à sua frente uma história que se permite linear somente até onde a memória do personagem-narrador permite que ela seja.
     assim sendo, a construção do romance em sete partes, com marcação de lugar e de data como títulos destas partes (por exemplo, “parte um: londres, 24 de julho de 1930), ajuda o leitor a acompanhar o desenrolar dos fatos da vida deste personagem que aos nove anos se vê órfão – com todo o mistério que necessariamente cerca um fato deste para uma criança desta idade – e passa a viver na inglaterra, aos cuidados de uma tia. esta mesma criança que quando adulta se tornará um detetive muito famoso e prestigiado na alta sociedade inglesa da época, e que, apesar de todo o prestígio tão sonhado e alcançado, se vê preso ao seu passado, ao local de vivência de sua infância, aos seus pais desaparecidos, e que por isto se vê voltando a xangai justamente no período de uma guerra sangrenta entre china e japão, a década de 30. é sob este fundo histórico que os mistérios da infância de christopher começam a ser apresentados ao leitor.
     leitor este que se sente quase que íntimo de christopher diante da narração tão velada, tão cuidadosa que este personagem faz de sua vida. é isto o que mais marca em “quando éramos órfãos”. uma narrativa que se entrega abertamente aos desvãos da memória, ao poder do passado de determinar o presente e o futuro das pessoas, à impossibilidade de se narrar tudo o que se quer, por mais que se queira.

ítalo puccini

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

surpresa


ele veio, sem muita conversa, sem muito explicar, chegou, entrou, tomou conta, beijou aqui, esfregou ali, carregou piano, sacola e um par de tênis e deixou o menino assim, descalço sobre a laje, com as partituras na mão.

ítalo puccini

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

pueril

ele é ingênuo ele vai assim dançando por aí cantalorando dois pra lá dois pra cá e não percebe o que vão fazendo dele e então não sabe por que se sente tão pesado e tão cansado vezemquando que é por acreditar tanto assim nos outros que é por querer fazer o bem tanto assim aos outros aí ele vai acumulando histórias acumulando não ele vai carregando histórias vai ficando assim pesado turvo cansado sombrio cabisbaixo tudo culpa deles que entregam vidas como quem troca de chinelo tudo culpa da chuva e de deus porque deus sempre é culpado pr’ele e ele deixa deixa mesmo afinal ele é ingênuo demais para perceber essa exploração toda essa maldade toda que ainda o acusam de fazer ‘inda mais que ele não faz por maldade sabiam na verdade ele não tem consciência de nada do que faz ele é um ser inanimado fazem por ele inclusive um texto e ele deixa e ainda acha o máximo

ítalo puccini

terça-feira, 17 de agosto de 2010

bordado


foi assim, como quem costura. amarrando dali para lá. eram histórias aquelas. mas ele nem aí. engolindo-as. parecia só contornar. como quem desenha. pelas bordas mesmo. com laços frouxos, misturados. parecia só contornar. só parecia. eram histórias outras que nasciam dali. não das bordas, mas do centro mesmo. dele. embora nascer fosse sempre um perigo. uma possibilidade. era isso o que ele fazia. brotos. pedaços de vida. as que ele levava, as que ele trazia. sim, porque tudo o que vai, volta. melhor ainda retorcido, esmagado, diluído e renascido. sempre um perigo. sempre uma possibilidade. um curso. per. um percurso. um rumo. um re. começo.

ítalo puccini

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

virando palavra escrita

Entrevista com Regininha, a Regina Carvalho.

Que tipos de livros você gosta de ler?
O que gosto mesmo de ler é um tipo de livro que parece estar saindo de moda: é aquele que traga uma boa história bem contada. Vou me grudando nele, e não quero largar enquanto não chego ao fim!

Por que você acredita que livros assim estejam saindo de moda?
A referência é à literatura chamada de erudita. Ela se volta para a narrativa feita de estilo, de sofisticação, de estrutura complicada e linguagem muitas vezes difícil. As narrativas conhecidas como metaficção, principalmente, parecem elaboradas apenas para provar que o autor conhece literatura, são muitas vezes um exercício de pernosticismo ( às vezes de pedantismo!) e acabam enchendo o saco. Parece que escrever – como ler – tem que ser um sofrimento. Pois eu acho que todos os dois deveriam ser um prazer, sempre...

Com que frequência você lê livros?
Leio três ou quatro livros por semana; às vezes mais, às vezes menos (vai depender do livro, é claro), mas a média é esta.

Cite alguns autores e alguns livros favoritos e explique por que para você são favoritos.
1.Machado de Assis: precisa explicar por quê? E sem esperar resposta, digo que é pela lucidez, pela ironia, pela clareza ao olhar a alma humana.
2.Cristovão Tezza: além de considerá-lo romancista competente, como somos amigos, percebo em suas tramas as relações vida X obra, que sempre acho muito interessantes.
3.Philip Roth,americano: constrói,desmonta e reconstrói o universo do escritor, nossa vida pelo avesso. AMO Roth.
4.Cormac McCarthy, americano: um exemplo da boa história bem contada – e usando de recursos de linguagem e estrutura que são, na verdade,simples, e ao mesmo tempo geniais,porque permitem que qualquer leitor possa acompanhar suas narrativas.
5.Juan Rulfo, mexicano: quando li Pedro Páramo, não queria acreditar que pudesse ser verdade,que ele existisse. Daí li Planalto em chamas (ou Chão em chamas, há traduções com esses dois títulos), e quando acabei quase me pus a chorar, pois ele só escreveu esses dois...
6.Tomás Eloy Martinez, argentino: jornalista,seus livros eram muito baseados na realidade. Os últimos dois ( A mão do amo e O cantor de tango) fogem disso,mas continuam de excelente qualidade.
7.José María Árguedas, peruano: dele li apenas Os rios profundos, e foi um deslumbramento, uma das coisas mais bonitas que já li na vida!
8.Enrique Vila-Matas,espanhol: dos autores de metaficção é de longe meu favorito, pois une a cultura literária profunda a um escrever delicioso.
9.Mia Couto, moçambicano: de início muito influenciado por Guimarães Rosa, acabou por esta via chegando a uma qualidade ímpar, com uma linguagem construída com maestria, sem contar a originalidade e a mística africana que retrata.
Há outros, mas acho que basta,né? Porque nem falei dos poetas!

Agora diz um livro que deixou você assim, sem respirar por um bom tempo? E um que você tenha achado uma bela porcaria?
Já citei: Os rios profundos, de José María Árguedas, escritor e antropólogo peruano, me deixou apaixonada.
No dia em que completei 50 anos,tomei a decisão seguinte: não perco mais tempo com porcarias, a menos que a profissão me obrigue. Assim, se o início não agrada, largo o livro mesmo, sem o mínimo remorso. Ih,de porcaria o mundo está cheio, prefiro não citar!

Em que lugares vocês costuma ler? E qual é o seu lugar preferido de leitura?
Isso depende muito do tipo de leitura. No momento leio, por exemplo, Uma história da MPB,do Jairo Severiano.Como é a trabalho, leio na mesa, com bloco de anotações e caneta ao lado. Mas a leitura mais descompromissada é feita em qualquer lugar: no sofá, na cama, no banheiro (sim, leio no banheiro!), na sala de espera do dentista ou do médico, para fugir da Caras e da TV... Tem sempre um livro na bolsa, para alguma emergência.

Você costuma comprar muitos livros? Empresta-os de bibliotecas? Tem o costume de emprestar seus livros a alguém?
Não gosto de ler livros lidos por outras pessoas, manuseados por outros que não eu. Ciúmes mesmo, acho. Ou aquele ranço de homem que só aceita mulher virgem , hehehe. Livro de biblioteca, assim, só se não conseguir obter de outra maneira um livro que tenho que ler. Mas empresto, sim, e sem grandes problemas – embora tenha perdido muitos livros por causa disso.

Quem é a Regininha enquanto leitora?
Acho que o que me diferencia da maioria dos leitores é um grande ecletismo, uma grande ausência de preconceito. Como diz a piada, leio até bula de remédio... Leio os eruditos, leio best-sellers, leio pornografia, leio muita poesia...Mas a leitura favorita para companhia, para entretenimento, a leitura de prazer, é o romance policial. Porque não se dá ares, porque conta boas histórias, porque tem começo e meio e fim, e na sua simplicidade (não é regra sem exceção) cria personagens excepcionais em sua humanidade.

Como você incorporou a prática da leitura? Alguém incentivou, teve um fato marcante?
Não. Na casa da infância ninguém lia. E eu me encarapitava nos galhos da ameixeira grande do quintal, para ler em paz. Mas meu pai me mandava, do Rio, onde morava, livros de presente, de vez em quando, e isso ajudou a motivar mais ainda a tendência leitora em mim. Quando fui morar com ele, foi a glória: tinha a imensa biblioteca do vô Tito Carvalho à disposição, mais de 5000 volumes...

Desde quando você é blogueira? O que o blog representa para você?
Tenho blog há cerca de três anos, ou um pouco mais (Sofro de dislexia cronológica, tu sabes – não tenho noção do tempo real).Começou porque estava me aposentando, e os alunos queriam continuar me tendo como indicadora de livros, filmes, CDs. De vez em quando me canso, tiro o blog do ar, mas depois crio outro. Não tenho grandes elucubrações quanto a isso: ele é uma companhia que me traz outras companhias, nesta vida solitária de quem escreve. É um amigo, sempre à disposição.

Quer falar um pouco também sobre o que a escrita significa para você?
A escrita se tornou atividade essencial: é desabafo, é organização do mundo, é vazão de um lado artista, é divisão de conhecimento, de sentimentos, de lembranças, de razão e desrazão. Às vezes me vejo como personagem de cartum, virando palavra escrita, e não existindo mais de outra forma...

Quer contar também sobre os seus livros-sapos?
Meus sapos são uma diversão, mas são como os poemas: brotam sozinhos, por causa de alguma pessoa que os motive. Nem todo mundo dá sapo: há os sapáveis e os não sapáveis. Semana passada escrevi um, para o cirurgião que me operou, O sapinho cirurgião, pra ver se ele perdoa uma malcriação muito, muito malcriada mesmo que andei lhe fazendo... Não sem certa razão, posso afirmar sem mentir, mas assim mesmo eu não precisava ter exagerado. Como, apesar disso, ele tem sido ótimo comigo, de repente me vejo imaginando um sapo que pega um bisturi mágico e retira a dor de dentro dos outros sapos,e a substitui por alguma coisa bonita... Depois conto se funcionou como pedido de desculpas!


Acrescentando esta pergunta após os comentários-dúvidas de Eduardo, Enzo e Camila, você pode explicar um pouquinho sobre os "livros-sapo"?
Acho que tenho uns doze ou quinze escritos, apenas dois publicados. Há um terceiro já ilustrado, à espera de publicação.
Escrevi o primeiro, O sapo azul, para brincar com amigo muito namorador. Saiu em formato de infantil, e todos têm saído assim. Não penso neles, porém, como infanto-juvenis: apenas aceito o rótulo, porque as pessoas têm necessidade de rotular.
Não penso em crianças quando escrevo, porque não penso em leitor, quando escrevo.
Adultos têm lido e dito: não é história pra criança! Só que as crianças leem e adoram... Porque elas estão muito mais adiantadas no tempo e na compreensão da vida do que os pais imaginam, porque elas são mais avançadas do que se pensa. E mais inteligentes...
Essa coisa de escrever para determinada faixa etária, passar mensagem, ser moralista, etc e tal,usar determinado vocabulário, não serve pra mim. Isso é pra produção comercial, e não é isso que faço. Não desmereço quem faz, pelamor de Deus, só não quero me preocupar com tais coisas.
Me diverte muito transformar certas pessoas em sapos, e criar os detalhes de suas histórias conjugando o imaginário humano com o que pode ser possível pros sapos – com muita liberdade, hehehe..
Assim, como acabei de fazer o sapinho cirurgião, já fiz a sapinha preguiçosa (minha filha quando adolescente), o sapinho jornalista (meu filho e meus alunos), o sapinho dormiloco (um amigo meio em depressão), a sapinha que vai pro céu... Fiz o sapinho João, pro João Bosco, e ele gostou muito. E muitos outros.
Este ano não andei atrás da publicação de nada, estava mais preocupada em resolver os problemas de saúde. Mas ano que vem, quem sabe coloco Verde Charco na rua, com maior regularidade?

Conhecemo-nos em uma oficina de escrita. Era de contos, não? Como é isso de mediar oficinas de escrita? Qual a importância de movimentos assim para um escritor?
Sim, foi numa oficina de contos, da qual participaste sem estares inscrito, pensas que não lembro? Gostaste, foste ficando e participando bastante.
É gostoso mediar, sim, desde que se dê um tempo pra que os alunos possam maturar suas ideias e suas escrevinhações. Intensivos como aquele não funcionam, não... De todo modo, é muito agradável conviver com pessoas que também gostem de escrever (de ler, nem todos gostam...).
Já dei muitas oficinas na própria UFSC,quando ali lecionava – de contos e de crônicas – e vários alunos deram bons contistas; dois viraram cronistas regulares, publicando na imprensa. Pode-se dizer que é um resultado pobre, mas não concordo, não. E observei que a maioria deles se torna LEITOR, um leitor melhor, mais atento, mais ligado. Só isso já faz valer a pena.

Deixe uma frase de (d)efeito aí, sobre leitura, escrita, livros, afins...
A leitura de livros só tem sentido se nos ensina a ler o mundo; e a leitura do mundo só terá sentido se nos ensinar a compreender e aceitar o ser humano. 

terça-feira, 13 de julho de 2010

um corte

uma pausa. forçada.

ana e bruno sentiram foi isso mesmo. além da dor, é claro. estirados sobre a cama – bagunçada. não pensavam. respiravam. mas queriam pensar. ana e bruno sentiram foi isso mesmo. uma vontade de pensar. um desejo de não ter que. estirados sobre a cama, ana e bruno. lado a lado. mas não próximos. o suficiente para estar. somente. não para pensar. ou para agir.

ana e bruno transavam. um acaso. começaram não por um beijo, mas pelas roupas. ana e bruno transavam. mas antes tiraram as roupas um do outro. ágeis, para isto. as mãos. não mais que. ana e bruno souberam usar foram as mãos. primeiro nas roupas. não por coincidência, as peças ficaram simetricamente estendidas ao chão. ana e bruno não puderam reparar. mas as peças ficaram lá. simetricamente estendidas. ao chão. mesmo. mas ana e bruno não puderam reparar.

sentiram foi isso mesmo. uma ruptura. enquanto transavam. primeiro foram os corpos. que se romperam. depois das roupas. primeiro foram os corpos. de ana e bruno. que se encontraram. que não se procuraram, mas que se encontraram. antes de transarem. antes as mãos e os corpos. reconhecendo-se. procurando-se. então as roupas. arrancadas. longe. ao chão. ana e bruno não puderam reparar na simetria das roupas. mas sentiam a simetria dos corpos. sentiram a simetria dos seus corpos, antes. sentiam. agora também.

ana e bruno sentiram foi isso mesmo. uma vontade de pensar. porque já sentiam. mas que. ana e bruno transavam. e não mais. uma procura. logo um encontro. as mãos. os corpos. ana e bruno se completavam. frente e verso. um dentro do outro. era assim que ana e bruno transavam. quando.

as mãos de ana desceram logo. as mãos de ana eram ágeis, sim. desceram pelo peito de bruno. arranharam-no. desceram logo. as mãos de ana – e também a língua de ana – procuravam por bruno. por tudo o que fosse de bruno. pelos cabelos no peito de bruno. pelo piercing no mamilo esquerdo de bruno. pelos ossos do quadril de bruno. que.

que não sabia o que sentia. a língua de ana. as mãos de ana. seus olhos. os seus, não os de ana. seus olhos virados, torcidos. seus olhos que sentiam. eles. elas. as pernas tremendo. as coxas sendo arranhadas. os cabelos do peito sendo puxados. bruno não sabia o que sentia. o membro duro, agarrado, apertado, puxado. pralá e pracá. pralá e pracá. pralá e pracá. bruno não sabia.

as mãos de ana desceram logo. chegaram logo aonde. agarraram logo. e forte. as mãos de ana. aquelas mãos. que arranharam. que rasgaram. as mãos. que ritmavam o movimento do membro duro de bruno. pralá e pracá. pralá e pracá. sob os gemidos de bruno. agora os gemidos de bruno. os sons guturais. as entranhas de bruno sob a mão de ana. simbolicamente. mas sim. sob. as mãos de ana.

os sons guturais de bruno. pralá e pracá. bruno que não sabia o que sentia.

sentiram foi isso mesmo. ana e bruno. foi antes. o membro, as mãos. foi antes. até que.

agora deitados não sentem mais. sentiram. não mais sentem. foi um corte só. ou dois, talvez. umemdois. foi de ana. quando as mãos de ana desceram logo. e quando bruno não sabia o que sentia. se era frio ou não. se eram as unhas de ana ou não. mas doeu, sentiu bruno. foi isso o que bruno sentiu. que doeu. mas ana sorria. sorria e ria alto. ana. por isso bruno não sabia o que sentia. quando as mãos de ana desciam. e quando agarravam seu membro duro. foi a última coisa que bruno viu. seu membro duro. de prazer. foi quando bruno fechou os olhos. e de repente sentiu frio. e não entendeu. e não entendeu. mas sentiu.

foi quando.

as mãos de ana. não mais que. as unhas de ana. cortantes. o corte primeiro. as mãos de ana. aquilo que elas escondiam. uma ponta. só uma. não mais que. um corte. só um. depois os outros. um corte. e o frio de bruno. e o riso de ana. um corte e um membro não mais duro. um corte. só. e um membro. e as mãos de ana. e o membro. não mais.

e depois.

um corte. outro. e mais outro. e não mais bruno.

e um último.

um corte.

e não mais ana.

ítalo puccini
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conto premiado com o segundo lugar no concurso de contos jaraguaenses, organizado por joão luis chiodini. presente no livro "mundo infinito", que contém os catorze melhores textos do concurso.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

leituras que lembram outras



já escrevi aqui no blog. quando leio algo, sempre me lembro de alguém. sempre penso que tal livro seria excelente para tal pessoa. as leituras me levam a isso, muito, a pensar nos outros. taí um paradoxo de que gosto muito, de como uma ação solitária nos leva a outros. comigo a leitura é assim. mas agora foi um levar a algo, não a alguém. dentre os tantos livros que li no mês passado, “o gato diz adeus”, do michel laub, e “o fim de semana”, do bernhard schlink, levaram-me a relembrar outros livros lidos.
     vou exemplificar um cadim mais isso:


      conheci o michel laub na 1ª feira do livro de itajaí. havia lido, há pouco tempo, e escrito aqui sobre, três livros dele. três romances, ou novelas, como eu havia descrito. aí, conheci-o, e fiquei sabendo também de um novo livro dele, lançado ano passado, “o gato diz adeus”. comprei-o, ele autografou, voltei pra casa e o li. e assim que o li – livrim curtim, 78 páginas – lembrei-me de “a caixa preta”, do amós oz, que eu havia lido em janeiro, junto com uns outros desse escritor israelense. porque as duas histórias, desses dois livros, são contadas por cartas. não há um narrador, nem em primeira nem em terceira pessoa. há narradores, vários, em primeira pessoa, claro, uma vez que são cartas. várias cartas de vários personagens. e a partir das cartas de cada um deles é que o leitor vai conhecendo a história. tudo por fragmentos mesmo. de repente um personagem comenta algo que outro personagem vai comentar mais adiante. e assim o texto – a história, o romance – vai jogando com o leitor. ou vai jogando o leitor mesmo, sem o “com” da frase anterior. porque eu, quando leio algo assim, sinto-me sendo jogado, pra lá e pra cá, como quem estivesse presenciando uma conversa, ora olhando pr’um interlocutor, ora olhando pr’outro. tá, só para deixar mais claro, no livro do laub não são cartas que os personagens trocam entre si. mas é como se fossem. o detalhe é que o livro do oz apresenta marcações de cartas, como data de envio, de quem para quem e etc. mas o livro do laub tem uma coisa que “a caixa preta” não tem. uma metaliteratura muito bem feita. que, além de jogar o leitor dum lado pr’outro, leva-o a quase se perder na história. a ideia de uma história dentro da outra, de um dos personagens ler o livro que o leitor está lendo. pura loucurada. muito bem amarrada, diga-se de passagem. ah, e para finalizar, assim que o romance acaba, na página seguinte à última página, há três explicações sinalizadas pelo autor, e uma delas diz respeito ao quanto, “Em sua temática, linguagem e estrutura é possível que este romance deva algo a (...) “A caixa preta”, de Amós Oz”.
       ok, esta foi uma relação que eu fiz.
     a outra diz respeito ao “fim de semana”, do alemão bernhard schlink, autor do “o leitor”, sobre o qual também já escrevinhei aqui, e também de narrativas curtas como “o outro” e “a menina com a lagartixa”. narrativas curtas, por sinais, muito bem construídas por schlink. são algo mais que contos. são algo menos que romances. são novelas. livros para serem lidos assim, de uma pegada, tranquilamente. livros envolventes. porém, “o fim de semana” foge dessa proposta do autor. é livro maior, é proposta de romance mesmo. vários personagens, várias ações e situações. duzentas e tantas páginas. e aí o alemão, ao meu ver, perdeu-se na escrita. criou um romance chato, tedioso. fui até o final de birra mesmo. mas em cinquenta páginas já foi possível sentir a narrativa se arrastando. ao menos a história de “o fim de semana” me fez lembrar do “ensaio da paixão”, do cristovão tezza, que li nos idos de 2007 (como se fosse há muito tempo mesmo). a ideia de um grupo de pessoas reunidas num local para curtir um determinado período de dias. foi isso o que me levou a relembrar o livro do tezza, do qual gostei muito, por sinal. porque há uma diferença não só de narração entre os dois (o tezza consegue prender o leitor por quase quatrocentas páginas), mas também de como ocorre essa “reunião” de amigos. “ensaio da paixão” retrata toda uma década de “pourralouquice”, de experimentação, de jovens em busca da vida em sua máxima potencialidade. já “o fim de semana” apresenta um grupo de amigos – já adultos – que se re-encontra após vários anos, para aparar arestas, para reviver uma época que não existe mais. há todo um discurso do tipo “o que são os tempos de hoje comparados a nossa época de juventude” no livro do alemão. mas é enfadonha a história, a forma como ela é conduzida. em alguns momentos é possível subentender discursos morais de comportamento, algo pra mim abominável na literatura.
     sei que o schlink tem outro livro de mais fôlego assim, “a volta pra casa”, que, parece-me, apresenta uma situação da qual gosto muito: uma história dentro da outra, sendo esta “de dentro” sem um final definido, cabendo ao leitor preenchê-la. bem possível eu encará-la, quem sabe pra desconstruir essa ideia de que o negócio dele são narrativas não-muito-longas. ou para confirmar isso mesmo. mas sou grato ao alemão. reviveu em mim a leitura do tezza. assim como sou grato ao laub, por trazer de volta a mim a história densa de “a caixa preta”. leituras que chamam outras. que lembram. quase como se fossem humanas. talvez sejam mesmo.

ítalo puccini

sexta-feira, 4 de junho de 2010

o poema que rasga



     recebi do cláudio b. carlos (o “cc”), há um tempinho já, novo livro dele: “lírica fedentina”. um livro, não. um poema-livro, conforme consta na capa. novo livro, não. e sim segunda edição deste livro publicado primeiramente em formato e-book.
     não é o primeiro livro que cc faz chegar até mim, não. são vários já. e do que mais gosto nos livrinhos dele, é do fato de serem quase todos produzidos artesanalmente. à mão mesmo. na cara dura, como diz o ditado.
     conheci a escrita deste poeta e radialista gaúcho por meio do universo da blogsfera. de blog em blog, vezemquando deparamo-nos com escritos maravilhosos que merecem leitura e comentários. o blog balaio de letras merece isto.
     inclusive, é por meio do blog que cc propõe movimentos de escrita e de leitura interessantíssimos. ele consegue explorar muito bem toda essa tecnologia que nos amarra constantemente. citando dois exemplos, livros em formato e-book, e leituras em voz alta, postadas como vídeo. tanto que ele expandiu seu “balaio”. criou agora o balaio de letras 2, justamente para apresentar a leitura em práticas pouco pensadas. o que eu acho ótimo. um explorar das nossas sensações leitoras.
     pois a escrita de cc também apresenta características que, se não são inovadoras ao extremo, são pouco usuais de encontrarmos em meio a tantos livros-comuns publicados dia sim, outro também. este “lírica fedentina”, por exemplo, é de fato um poema-livro. da página 3 à página 46, um longuíssimo poema. uma disputa por pontos com o leitor, na qual, por alguns momentos, o livro desfere cruzados sensacionais: “um querendo o cu do outro / viver é concorrer / e numa pronúncia indefectível / em alto e bom som / prosódia: / - desculpe-me cavalheiro / se lhe dei as costas / enquanto fodia-me a bunda! / como dizem os franceses: c’est l avie”.
     este novo livro do cc me levou a alguns outros dele que tenho cá comigo. ao “liberdade vigiada & outros pequenos poemas que gritam”: “pra / minha fome / a etiqueta de teu prato raso / com porções minimalistas”; ao “temporais atemporais tempo temporão”: “o que estraga / o ambiente familiar / é a família”; ao “desnascer do nada”: “carne humana tem gosto / de sobrevivência”; e à “pedra da realidade”: “para sonhos de papel / o peso / da pedra da realidade”.
     todos livrinhos artesanais com muita poesia e poemas viscerais. mas há também dois livros de narrativas curtas, publicados pela editora “maneco”, de caxias do sul/rs. o primeiro deles se chama “um arado rasgando a carne”: “tenho a garganta sufocada por palavras e palavras e palavras e palavras e palavras que da minha boca como que costuradas não são não caem como o cuspe cai como os dentes podres caem (...) não sei nominar o que sinto que nome se dá a um arado rasgando a carne?”; e o segundo é “o uniforme”: “descobri que humildade demais é defeito, quando, aos doze ou treze anos de idade, ao receber o envelope com o primeiro salário, agradeci efusivamente ao patrão, que riu de mim”.
     são recortes mínimos dos livros do cc. da forma insinuante como ele escreve. do modo com que ele propõe diferentes leituras para palavras já gastas, para maneiras de se ler que extrapolem o contato do leitor com o livro. uma leitura mais física, eu diria, se que é possível entender isto.
     mas poesia não é muito pra se entender, não, né, cc? tá mais para ser devidamente explorada por escritores e leitores. que assim continuemos a fazer, pois então.

ítalo puccini

domingo, 30 de maio de 2010

carta pra regininha - a terceira

     Regininha, pra variar, instigou-me. Escreveu ela assim: “Tem uma coisa me intrigando: vários amigos comentam leituras, todas elas feitas pela internet. Recomendam sites, autores, mandam textos. Leio muita coisa pela internet, também, mas acaba sendo leitura desordenada, meio sem eixo condutor, e deixa o lido sem organização mental alguma. Meu lado professor (ou a idade 'avançada', sei lá) não gostam muito disso. Gosto mais quando uso essas leituras em pesquisa organizada - e pra isso a internet é uma maravilha! - , atrás de determinados autores e textos específicos. Como sou portadora dessa síndrome de interesses vastos, preciso de algum mecanismo de ordenação... Daí fico me perguntando como os amigos fazem isso, se é que fazem... Mas ainda prefiro ler livros. Parece que com eles cada peça se encaixa no lugar direitim, não fica volteando pelo espaço virtual, desnorteada...”
     Pronto, foi o que bastou para eu me coçar todo e elaborar, então, estas linhas, ainda confusas, é claro, pois estes caminhos que tomam a escrita e a leitura, de fato, deixam-nos com algumas pulgas pelo corpo, fazendo-nos saracotearmos constantemente. E ainda, há pouquinho tempo, li e escrevi sobre este assunto, fruto de uma proposta de trabalho na faculdade. Então, vou-me utilizar, aqui, de alguns parágrafos daquele texto acadêmico, aqui somente costurados, com uma linguagem menos solta mesmo.
     Se a escrita leva a uma leitura, uma leitura leva a novas escritas. E é nesse interstício que se torna possível pensar na existência da escrita somente a partir da existência da leitura, sendo a recíproca a maior prova da afirmação.
     A história da escrita e das línguas está longe de terminar, pois o caráter da escrita é imagético e transitório. Hoje falamos e escrevemos em português, mas há muito se cogita a criação de uma linguagem universal (uma tentativa foi o Esperanto, no século XIX) para unir todos os povos. A internet pode ajudar nesse processo, mas será possível? O tempo dirá, creio.
     O que temos hoje é quase que um retorno às primeiras formas de escrita registradas pela civilização. E é no espaço virtual que se pode observar esse retorno, essa busca por novas formas de expressões (e, sabe-se, nem tão novas assim).
     Tem-se, por exemplo, a escrita fragmentada, enxuta, que pouco diz, mas que muito quer ser entendida. As abreviações são modelos clássicos nisto. Uma escrita mais rápida, mais dinâmica. Apenas um reflexo social. Nesse ritmo alucinado de vida, nada mais natural ao ser humano do que registrar de maneira breve, sucinta, econômica aquilo que é anunciado, seja oralmente, seja de forma escrita.
    Desde a popularização da internet, durante os anos 90, foram muitas as mudanças nos hábitos de escrita e de comunicação no mundo todo. Primeiro foi o surgimento do e-mail, depois vieram as salas de bate-papo e os comunicadores instantâneos (como ICQ e MSN) e, finalmente, os blogs e as redes sociais (Orkut, Facebook etc.), hoje tão populares entre os adolescentes quanto diários e papéis de carta um dia já foram. Em meio a essas mudanças, com o advento de novos recursos e ferramentas comunicacionais, o internetês – nome dado à grafia abreviada utilizada na internet – acabou se desenvolvendo e cristalizando-se à medida que a rede mundial de computadores evoluiu.
     É por estes caminhos que a escrita hoje em dia mais acontece. É por aí que mais se relacionam as pessoas. Através de textos curtos, repletos de espaços de preenchimento aos leitores. Uma escrita que ao mesmo tempo anuncia algo, mas que não diz este algo em sua totalidade. Uma escrita que procura despertar a atenção e o interesse. Mas que não se aprofunda. Prova maior disso é o microblog twitter, ferramenta em que seus usuários escrevem textos de no máximo 140 caracteres (esta é uma frase neste modelo, do “Prova” até “caracteres”. A máxima ‘menos é mais’ nunca fez tanto sentido como no caso do microblog Twitter.
     Seguindo esse caminho, como não poderia deixar de ser, ainda mais se levando em conta a abordagem sugerida no capítulo anterior, de que a leitura, sem a escrita, não faria sentido, sendo a recíproca verdadeira, matéria da Revista Bravo! de abril apresenta uma nova forma de leitura, o Ipad, ferramenta de leitura que possibilita a interação com vídeos, animações e mecanismos interativos a todo o momento. Conforme sinalizado pela revista “(...), a discussão sobre o fim do livro é apenas a ponta do iceberg de outra revolução em curso: a das novas possibilidades de narrar e ler abertas pelas tecnologias digitais”. E este panorama leva a um repensar mais do que urgente sobre as experiências de ler, ouvir, ver e escrever: “Uma nova semântica já começa a se instaurar a partir da internet. Os próprios conceitos de livro e literatura já não parecem mais tão claros diante das novas mídias”.
     Assim sendo, também, com o conceito de escrita, uma vez que a escrita mais disseminada pelo meio virtual demonstra um movimento de retomar a escrita desde sua invenção: através de sinais, de caricaturas, os hoje chamados emoticons. Bastam ser observadas expressões escritas para designar sentimentos, como :( :) *--* ^.^ =D =P ¬¬ =O =B
Os emoticons [fusão das palavras inglesas emotion, "emoção", com icon, "ícone"] são amplamente utilizados por internautas para expressar humor e sentimentos durante troca de mensagens. Além disso, a maioria dos atuais comunicadores instantâneos já consegue decodificar essas combinações tipográficas e traduzi-las por equivalentes pictóricos, alguns inclusive com movimentos animados, de modo que ao digitar :) a seqüência se transforme imediatamente no desenho de uma "carinha feliz", assim .
     E, por fim, um outro exemplo da impossibilidade do estabelecimento de limites para a escrita, nos dias de hoje, é a enciclopédia virtual Wikipédia, espaço no qual quem escreve os verbetes são os próprios leitores, sem a necessidade de algum especialista ou “avalista” do que ali é escrito e publicado.
     Esta aproximação muito grande entre tecnologia e escrita e leitura impõe ao ser humano, ao mesmo tempo em que permite a ele, uma capacitação para bem fazer uso de recursos como estes em prol de sua comunicação. Comunicação esta que a cada dia sofre interferências e alterações, seja na maneira oral, seja no modo verbal-escrito de se expressar. Estar alheio a essa contínua transformação é o mesmo que se alienar socialmente. Neste mundo não-linear, neste ritmo de vida que também não segue em linha reta e definida, não teria como ser diferente no que diz respeito às formas de comunicação e de interação. Temos um conhecimento não mais preso a uma página impressa ou a uma parede. Toda leitura, de todo e qualquer movimento, torna-se uma escrita em potencial, uma nova possibilidade de pensar e de agir e de se fazer ouvir.

Ítalo Puccini