há poemas de que eu
gosto e eu:
1) não sou capaz de
explicar esse gostar,
2) não sou capaz de
entendê-los.
e ainda’ssim gosto.
como explicar?
por exemplo este da
hilst, a hilda:
“Águas. Onde só os
tigres mitigam a sua sede.
Também eu em ti, feroz,
encantoada
Atravessei as
cercaduras raras
E me fiz máscara,
mulher e conjetura.
Águas que não bebi.
Crepusculares. Cavas.
Códigos que decifrei e
onde me vi mil vezes
Inconexa, parca. Ah,
toma-me de novo
Antiquíssima, nova.
Como se fosses o tigre
A beber daquelas águas.”
parece-me que há uma
profundidade maravilhosa aí, não alcançada por mim, talvez devido ao fato de eu
não conseguir respirar lá tão embaixo. metáfora pobre, eu sei. porém sincera,
no sentido de que sinto no poema uma escrita a ser admirada, uma verve (palavra
estranha) poética que eu, enquanto leitor, ainda não internalizo, quiçá sinto.
talvez faltam-me
leituras para isto, algo elementar, uma vez que nossa caminhada como leitores
depende de uma coragem para encarar textos novos, difíceis, estranhamente
estranhos para aquele nosso momento.
há dez anos, eu lia
Drummond na escola e não compreendia como aquilo era considerado boa
literatura, algo que me permite, agora sendo professor, entender a revolta de
meus alunos diante dos mesmos textos que outrora eu abominava. e hoje eu leio
um poema como “a flor e a náusea” e me deleito com tamanha sensibilidade
crítica de um poeta cujo desejo era vomitar, através da palavra – ou de uma
flor – o enjoo da época vivida, um tempo de fezes e de surdez:
“Preso à minha classe e
a algumas roupas,
vou de branco pela rua
cinzenta.
Melancolias,
mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o
enjoo?
Posso, sem armas,
revoltar-me?
Olhos sujos no relógio
da torre:
Não, o tempo não chegou
de completa justiça.
O tempo é ainda de
fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta
pobre
fundem-se no mesmo
impasse.
Em vão me tento
explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras
há cifras e códigos.
O sol consola os
doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes
são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio
sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum
problema
resolvido, sequer
colocado.
Nenhuma carta escrita
nem recebida.
Todos os homens voltam
para casa.
Estão menos livres mas
levam jornais
e soletram o mundo,
sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como
perdoá-los?
Tomei parte em muitos,
outros escondi.
Alguns achei belo,
foram publicados.
Crimes suaves, que
ajudam a viver.
Ração diária de erro,
distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do
mal.
Os ferozes leiteiros do
mal.
Pôr fogo em tudo,
inclusive em mim.
Ao menino de 1918
chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o
melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança
mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe,
bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda
desbotada
ilude a polícia, rompe
o asfalto.
Façam completo
silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor
nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se
abrem.
Seu nome não está nos
livros.
É feia. Mas é realmente
uma flor.
Sento-me no chão da
capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a
mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas,
nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos
movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
eu hoje sinto essa flor
a cada vez que leio este poema. e sinto-a sempre de uma maneira diferente, uma
vez que sou um leitor diferente a cada leitura feita.
outro exemplo: a
metalinguagem do maneca, o manoel de barros, no “matéria de poesia” não me era
compreensível nos primeiros anos da faculdade e, de tanto lê-lo, é-me um
poema/livros que, de tão internalizado em mim, com frequência envolvo-o em
minhas aulas de literatura e de redação, tentando fazer com que um chevrolet
gosmento grude nos meus alunos:
“Todas
as coisas cujos valores podem ser
disputados
no cuspe à distância
servem
para a poesia
O
homem que possui um pente
e
uma árvore
serve
para poesia
Terreno
de 10×20, sujo de mato – os que
nele
gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem
para poesia
Um
chevrolet gosmento
Coleção
de besouros abstêmios
O
bule de Braque sem boca
são
bons para poesia
As
coisas que não levam a nada
têm
grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada
coisa sem préstimo
tem
seu lugar
na
poesia ou na geral
O
que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco
de vidro, garampos,
retratos
de formatura,
servem
demais para poesia
As
coisas que não pretendem, como
por
exemplo: pedras que cheiram
água,
homens
que
atravessam períodos de árvore,
se
prestam para poesia
Tudo
aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e
que você não pode vender no mercado
como,
por exemplo, o coração verde
dos
pássaros,
serve
para poesia
As
coisas que os líquenes comem
-
sapatos, adjetivos –
têm
muita importância para os pulmões
da poesia
Tudo
aquilo que a nossa
civilização
rejeita, pisa e mija em cima,
serve
para poesia
Os
loucos de água e estandarte
servem
demais
O
traste é ótimo
O
pobre-diabo é colosso
Tudo
que explique
o
alicate cremoso
e o
lodo das estrelas
serve
demais da conta
Pessoas
desimportantes
dão
para poesia
qualquer
pessoa ou escada
Tudo
que explique
a
lagartixa de esteira
e a
laminação de sabiás
é
muito importante para a poesia
O que é bom para o lixo é bom para poesia
Importante
sobremaneira é a palavra repositório;
a
palavra repositório eu conheço bem:
tem
muitas repercussões
como
um algibe entupido de silêncio
sabe
a destroços
As
coisas jogadas fora
têm
grande importância
-
como um homem jogado fora
Aliás,
é também objeto de poesia saber
qual
o período médio que um homem jogado fora
pode
permanecer na Terra
sem
nascerem em sua boca
as
raízes da escória
As
coisas sem importância
são
bens de poesia
pois
é assim
que
um chevrolet gosmento
chega
ao poema
e
as andorinhas de junho.”
voltando à hilda, li o livro “do desejo”
(editora globo) sem sublinhar nenhum verso, sem rabiscar palavra alguma nas
laterais das páginas, não compreendendo a maioria dos poemas. e não há
desespero em mim, muito menos a triste ideia de tempo perdido. há, sim, este
olhar reflexivo que fez brotar esta croniqueta (escrita enquanto a rafa canta,
aqui no bar – faz favor, leitor, vai lá e lê a croniqueta anterior).
sendo assim, hilda, eu volto a ti daqui uns
anos – no que diz respeito à tua poesia, pois nas crônicas nos entendemos muito
bem, entre cascos e carícias (inclusive, esta é uma croniqueta inspirada pelas
tuas, ou seja, repleta de versos e poemas) – com tantos livros a mais na minha
bagagem leitora. tu me esperarás, eu sei. e o papo será muito bom.
ítalo puccini