sexta-feira, 24 de abril de 2020

dobradinhas literomusicais

     ouvir música enquanto leio ou escrevo é um hábito pouco comum pra mim, em virtude de que me sinto cerebralmente esgotado ao dividir atenção entre o que faço e o que escuto e assim invoco a preguiça, mãe de todas as mães, e a respeito da maneira mais correta que uma mãe deve ser respeitada. inclusive, essa preguiça se estende a vários momentos do meu dia: ao trabalhar em aulas e correções, silêncio; no café da manhã, leitura; durante o almoço, episódio de série ou melhores momentos de uma partida de futebol; ao jantar, não sei – essa é a refeição de que menos gosto e para a qual não dispenso muita atenção, comendo rápido qualquer coisa. 
     restrinjo-me então a ouvir música quando no carro, indo de um lugar a outro na cidade ou viajando. isto porque gosto de prestar atenção ao que ouço, tanto à letra quanto ao ritmo das canções, de modo que não incorporei até hoje o hábito de colocar uma música somente a preencher um espaço sonoro, na típica função de pano de fundo. ao contrário de amigos próximos, que sei quase dependerem de uma trilha sonora no decorrer do dia – porque já me falaram e já os vi dessa forma fazendo.
     e o período de quarentena recém-vivido acentuou essa oportunidade de em casa ouvir música enquanto se realizam outras atividades. motivo pelo qual o fox um dia escreveu a mim e ao edu, na udema – a rádio isenta(,) de verdade – dizendo que ouvia lenine enquanto estava a ler o “livro do desassossego”, do fernando pessoa – ao que edu elogiou ser uma ótima leitura para uma quarentena. e a raposa, empolgada com o que chamou de dobradinha sem arrependimento, lançou a braba (risos) e estendeu a nós a seguinte provocação: haveria combinação ideal entre poetas das letras e das canções?
     foi como soltar duas crianças num parque de diversões: sugeri ler hilda hilst e ouvir adriana calcanhotto e emaranhar-se em lirismos por vezes rebuscados em excesso; questionei quem formaria par com joão cabral, ao que edu indicou lenine, associando os álbuns “chão” e “carbono” à concretude poética do pernambucano; indaguei qual rapper ouvir enquanto se lê cruz e sousa, e edu comentou a facilidade em se pensar na temática racial e a dificuldade em encontrar rap com traços simbolistas; e indicou a leitura de carolina maria de jesus com algum samba – ao que sugeri bezerra da silva – e a associação entre ana cristina cesar e letrux, pelo viés doloroso sobre o amor e a vida; amor que me lembrou vinicius de moraes e a possibilidade metalinguística de lê-lo e ouvi-lo simultaneamente.
     empolgado, então, compartilhei o convite ao parquinho literomusical a outras pessoas, e novas dobradinhas surgiram: bia também aproximou hilda de calcanhotto e propôs a soma leminski e tom zé, pela versatilidade e pelo radicalismo eventual, ao que eu acredito ser possível acrescentar ferreira gullar e mais arnaldo antunes e poesia concreta; tiago especificou o livro “stoner”, de john willians, e as canções de johnny cash, pelo tom cru de lirismo nas narrativas, similar à associação gonzaguinha e graciliano ramos, também proposta por tiago, que além disso indicou sintonia entre paulo henrique britto e o trio inglês the police, pelo alcance da sensibilidade a partir da despretensão e da economia de elementos poéticos; e regininha relacionou camões a renato russo, cujo lirismo musical contém realmente muitos traços épicos.
     ainda, perguntei à regininha uma leitura próxima às canções de joão bosco, artista sobre quem ela conhece absolutamente tudo, ao que me respondeu guimarães rosa, citando a música “rosamundo” – na qual bosco inclusive menciona cordisburgo, terra natal de guima – e, também, aproximou ao nome deste uma de milton, “noites do sertão”, cujo verso “tem mais perigo que a poesia do que o julgo da razão” dialoga o título à obra de rosa. logo, pensei em artistas capazes de múltiplas relações: o próprio milton, de menções à natureza que remetem à cecília meireles e de um lirismo próximo ao de manuel bandeira; a crítica machadiana posso encontrar em alguns caetanos, com quem converso também os irmãos andrade, pelo modernismo intrínseco; a rebeldia crítica de cazuza com a poesia marginal, enquanto o lirismo se aproxima dos poetas românticos byronianos; e o cruz e sousa simbolista eu sinto em algumas canções do gil. arriscaria, por fim, ler lima barreto e me atentar à mesma agressividade crítica presente em elza soares. 
     e assim ad infinitum. eis uma croniqueta interminável em no mínimo dois sentidos: a cada leitura ou audição, dobradinhas novas e reformulação de parcerias já estabelecidas. portanto, sendo extensa a quarentena, que a aproveitemos. 

ítalo puccini

sexta-feira, 3 de abril de 2020

solidão

o vento em minas 
gerais estende
o céu em infinito 

ítalo puccini