não conhecia o milton hatoum cronista. deparei-me com o livro “Um solitário à espreita” e o comprei, fazendo vibrar o prazer, pouco comum a mim, de uma compra inesperada. o título, aliás, é muito condizente com o jeito de ser do autor: um sujeito recluso, pouco midiático e de publicações quase raras. autor de apenas cinco romances e um livro de contos: com dois deles, “Relato de um certo Oriente” (1999) e “Cinzas do Norte” (2005) foi vencedor do jabuti de melhor romance; com “Órfãos do Eldorado” (2008), segundo colocado no mesmo prêmio; com “Dois irmãos” (2000), conquistou o terceiro lugar; e “A noite da espera” é o mais recente, lançado em 2017. quatro dos cinco romances são premiadíssimos, no brasil e no mundo, publicados em dezessete países até hoje.
a característica da crônica desse escritor amazonense é a de esticá-la um tanto a mais do que costuma ser comum ao gênero. são crônicas-quase-ensaios, nas quais o autor apresenta um fato cotidiano nos primeiros parágrafos para chegar ao, digamos, ponto-chave do texto, e então abordá-lo por mais algumas tantas linhas. isto na maioria das 94 crônicas que compõem o livro, algo que não diminui sua escrita, pelo contrário: apresentar uma unidade no modo como escreve demonstra segurança e a mim, enquanto leitor, muito satisfaz.
é dessa maneira que o autor desenvolve, por exemplo, “Liberdade em Caiena”, crônica que me despertou a escrever esta com a qual, até aqui, enrolo o leitor. no começo do seu texto, hatoum aborda a dificuldade que tem de conviver com tantas informações em um ritmo tão frenético de tempo, o que lhe resulta deixar passar a oportunidade de participar de debates, palestras e até encontros entre amigos: “Agora, ao fazer uma faxina na caixa de entrada, notei que havia 122 mensagens não lidas”. desse ponto para chegar ao tema: o convite, recusado pelo autor, por não ver a mensagem em tempo, para ir a caiena, capital da guiana francesa, lugar de muitas lembranças trazidas da infância e de seu avô.
e o que me conduziu a escrever este texto foi esse modo de vida digamos que desacelerado do escritor amazonense, com o qual, a meu ver, muito se pode aprender, uma vez que, atualmente, não somos mais ensinados a viver ligados à tecnologia, e sim o contrário: nascemos imbricados a ela e precisaríamos, urgentemente, aprendermos a nos desligarmos mais.
algo assim como o que foi proposto pela jornalista eliane brum, quando escreveu uma crônica intitulada “É urgente recuperar o sentido de urgência”, na qual aborda o quanto nos tornamos dependentes do imediatismo, nas diferentes esferas sociais, privando-nos da nossa intimidade em prol de nos mostrarmos disponíveis a todos a qualquer momento do dia, atitude esta que eu vejo soar como uma pseudo-demonstração de atenção e respeito pelo próximo. assim argumenta brum: “Estamos vivendo como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata. Como se o tempo do ‘outro’ fosse, por direito, também o ‘meu’ tempo”. são tantas as frases certeiras que convido o leitor a ler a crônica dela na íntegra, percebendo, assim, a existência de outras maneiras de viver, oriundas de uma reflexão que envolve principalmente o ato de respeitar a si mesmo nesse emaranhado virtual que nos abraça e do qual não conseguimos, a priori, desgarrarmo-nos - afinal, alerta-nos a escritora, “Viver no tempo do outro – de todos e de qualquer um – é uma tragédia contemporânea”, da qual, parece-me, hatoum tem a mesma consciência.
e é uma forma de preenchermos nosso ego, acrescento. ao mostrarmo-nos dispostos a qualquer momento do dia para sermos interrompidos de diferentes maneiras – sms, ligação telefônica, redes sociais, whatsap, visita-sem-combinação-prévia – disfarçamos o nosso egoísmo sob a veste falsa de dar atenção ao outro. ao expormos tal disponibilidade, estamos na verdade gritando para que nos procurem, para que nos olhem, para que curtam – o mais rápido possível – aquilo que acabamos de postar. e retribuímos o ato como forma de garantir que ele nos seja devolvido.
é o nosso ato de covardia, sobre o qual escreve o romancista jonathan franzen, num ensaio intitulado “Curtir é covardia”, no qual o autor apresenta um contraste entre as tendências narcisistas da tecnologia e o problema do amor verdadeiro, uma vez que o amor, enquanto verdadeiro, denuncia a mentira de que o mundo tecnoconsumista – e imediatista – exige de nós compreensão: “Se pensarmos nisso em termos humanos, e imaginarmos uma pessoa definida pela ansiedade desesperada de ser curtida, qual é o quadro que vemos? O de uma pessoa sem integridade, descentrada. Em casos mais patológicos, vemos um narcisista – alguém incapaz de tolerar em sua autoimagem as manchas que seriam representadas pela possibilidade de não ser curtida e que portanto busca uma fuga do contato humano ou se dedica a sacrifícios cada vez mais extremos da própria integridade com o intuito de ser curtida”.
os comportamentos de milton hatoum e eliane brum (ela por exemplo abriu mão do aparelho celular e faz questão de ser contatada somente por e-mail) são aqui cronicados não como referência em termos de relações humano-sociais, e sim como alternativa, eco do que propôs franzen: um comportamento consciente, não-dependente, muito menos falso ou egoísta.
sendo assim, não defendo nesta croniqueta – que está mais para um ensaio – um posicionamento de contrariedade radical. se escrevo sobre esse assunto é porque a mim ele ainda se apresenta bastante confuso, tamanha a linha tênue que nos separa de uma dependência e de uma aversão tecnológica e social, ambas atitudes extremistas que nos implicam perdas. uma vez que somos bebês no contato com essa ultramodernidade na qual estamos inseridos, nada melhor do que o exercício de nos olharmos dentro desse meio, porque mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira, há décadas nos cantou o renato.
ítalo puccini