quarta-feira, 22 de julho de 2015

fios de barba e de memória

            há quem deseje apagar da memória uma lembrança, esta sendo geralmente triste, associada à dor emocional ou física, relacionada a abalos psicológicos, uma vez que lidar com o sofrimento é uma arte para a qual nascemos sem aptidão. entretanto, existem pessoas cuja vontade seria a de eliminar da memórias traços vividos em êxtase de alegria e contentamento, como se fosse possível, então, reviver aquelas energias positivas, na mesma – ou talvez até em maior – intensidade, como se fosse a primeira vez.

            “brilho eterno de uma mente sem lembranças” me levou a pensar nisso. e então lancei uma pergunta, no facebook e no twitter: “se você pudesse apagar de sua memória uma lembrança, qual você apagaria?”. uma pergunta capciosa, obviamente, digna de não ser respondida, pois quem é que vai abrir-se nas redes sociais para responder a algo íntimo? mas justo por esse motivo a lancei, a pergunta, envolta em uma tênue linha de esperança, de me deparar com algo sincero e corajoso.
            recebi, pois, algumas poucas respostas, a maioria apontando o não-apagar das memórias, sejam boas ou ruins, sob o argumento de, assim, não excluir da vida as experiências vividas, sendo estas constituintes da formação do indivíduo enquanto sujeito. respostas, portanto, fluidas, contornando a pergunta, porém não a respondendo, afinal, conforme argumentado acima, ao respondê-la, escancara-se uma individualidade por si só subjetiva e, nesses momentos, a timidez assume o lugar da autopromoção, característica humana acentuada pelas redes sociais.

            ainda, no mesmo dia em que terminei de assistir ao filme no qual jim carrey e kate winslet lindamente protagonizam o amor e seu entorno – eu costumo dormir ao assistir a filmes, então, faço isso em etapas – eu finalizei a leitura do “barba ensopada de sangue”, do daniel galera, cujo resultado foi um despertar desta croniqueta, partindo do pressuposto de que a tentativa de apagar da memória a existência da pessoa amada – o ponto central da película – se apresenta como oposta à busca protagonizada pelo personagem barbudo do romance livresco, focado no objetivo de acrescentar vivências à sua memória; no caso, descobrir mais sobre o avô, a ele desconhecido a não ser pelas palavras proferidas pelo próprio pai, um dia antes de suicidar-se.
            é esse o mote da narrativa tensa desenvolvida pelo escritor gaúcho, na qual me senti mergulhado, ora identificando-me com a reclusão do personagem principal, ora sendo tomado pela curiosidade oriunda do suspense em torno justamente desse desejo do personagem em encontrar o avô e, por consequência, acrescentar vivências, emoções e informações à sua memória. de fato, o professor de natação – o protagonista do romance – quer experimentar algo como sendo a primeira vez. nem mesmo a sua face ser semelhante à do avô o satisfaz, ele pressente a necessidade – ainda que somente intuitiva, sem certeza concreta de algo – de ver o pai de seu pai para então compreender-se. e, independente dos acontecimentos futuros – não vou lançar spoilers –, o personagem não deseja apagar da memória suas vivências, e nesse contexto se insere sua segurança em não exercer o perdão, por exemplo.  
            essa contradição, a meu ver presente nas duas histórias – o desejo em apagar algo da memória e o instinto em viver descobertas familiares –, apontou-me algum caminho para pensar o ato de reler um livro e de assistir novamente a um filme, peça teatral ou espetáculo musical, destacando a quantidade de vezes nas quais nossa intenção é a de voltar a uma história já conhecida, seja para lembrar de detalhes narrados, ou até mesmo com o objetivo de reviver aqueles sentimentos vividos enquanto nos deparávamos (pela primeira vez) com tal referência cultural. como se fosse possível vivenciar exatamente tais sentires.
digo isso porque tenho comigo a crença de que novamente deparar-se com uma obra de arte acaba sendo uma nova primeira vez, afinal, constituímo-nos diariamente enquanto sujeitos, ou seja, somos formados por nosso entorno, concomitantemente modelando-o – ideia filosófica do materialismo dialético concebido por nosso amigo marx – e, assim, a cada nova interpretação construída junto a algum elemento artístico, é um novo eu a ler ou assistir àquele elemento. portanto, não existe em mim o desejo de, por exemplo, apagar da memória romances já lidos ou assistidos, porque o ato de reler ou rever é, por si só, inovador, a primeira vez é sempre.
       e, finalizando momentaneamente esta conversa, a rafa bem lembrou: recordar vem do latim “re-cordis”, ou seja, tornar a passar pelo coração – frase presente no “livro dos abraços”, do eduardo galeano – o que ratifica o argumento central desta croniqueta. sendo assim, logo, logo eu voltarei ao brilho eterno e ao barba ensopada, do mesmo modo como há pouco tempo entrei novamente na trama de “os meninos da rua paulo” e de “apenas uma vez”, ressignificando-os, pela primeira vez.

ítalo puccini 

quarta-feira, 17 de junho de 2015

meu inconsciente


são dias de frio

haja afeto
para amolecer o melado.

ítalo puccini

sexta-feira, 12 de junho de 2015

nunca consigo comer uma maçã na íntegra

nem que eu fosse uma mistura de ney matogrosso renato russo e mick jagger ou os três simultaneamente no mesmo corpo na mesma cabeça nas mesmas atitudes por mais que eles ajam de modo parecido eu fico em casa conectado ao meu computador um daqueles modelos tão antigos que se for desligado nunca mais funcionará então eu não aperto no botão do estabilizador eu o deixo sonecando durante o tempo em que não o utilizo se bem que quando tou em casa eu tou conectado a ele e nele eu fico assistindo a apresentações dos três do ney do renato e do mick e observo as semelhanças nas atuações de palco de cada um e tenho comigo a certeza de querer ser os três ao mesmo tempo um dia eu vou ser mas primeiro um dia eu serei capaz de sair de dentro desse meu apartamento desse lugar que não recebe uma luz externa há mais de três anos desde que minha ex terminou comigo ela morava aqui vivia reclamando da bagunça desse lugar mas gostava muito de mim eu estava certo de que ela nunca se separaria de mim e um dia ela arrumou o pouco de pertences dela e disse vou embora abriu a porta e saiu e eu fiquei deitado na minha cama olhando pra porta durante mais de doze horas sem entender o encadeamento dos fatos eu travei desde aquele dia eu não consigo lembrar do que aconteceu antes de ela falar eu vou embora e aos poucos eu me afastei das pessoas ainda próximas a mim não convidei mais ninguém a vir aqui nem mesmo o entregador de pizzas amigo meu que gastava um tempo aqui dentro enquanto o patrão ligava desesperado e ele dizia que tava preso num engarrafamento eu troquei de pizzaria e agora peço apenas três vezes por semana pizza de lombo com catupiry e metade portuguesa como eu moro sozinho mesmo fodam-se os peidos que eu dou aqui dentro enquanto eu assisto aos meus artistas preferidos necessidades fisiológicas gosto muito de escrever sobre isso nos blogs que eu assino como se fossem meus tenho uma infinidade de seguidores em cada blog coitados eles acreditam que eu sou aquele perfil lá apresentado não imaginam o lugar onde eu moro as minhas fobias os traumas familiares isso vem desde a minha adolescência eu escrevia como se não fosse eu e sim um outro qualquer a mim e a todos desconhecido justamente desse modo eu passei a entender a literatura os seus meandros o viés pelos quais somos conduzidos em um texto literário foi o momento em que me apaixonei pela primeira vez depois veio a minha ex e os três anos nos quais fomos felizes ao menos eu considerava assim agora eu a odeio e continuo amando a literatura explorando-a suas arestas suas veredas leio muitos novos escritores não na íntegra seus livros cansam ainda não há uma escrita segura neles mas me agrada conhecer seus textos imaginar quem são porém não há nada que se aproxime dos clássicos por isso os releio frequentemente são mais do que fonte de inspiração literária eles a mim representam o ápice da leitura a ser feita sobre a vida e eu sinto que se não fosse escritor eu seria o ney o renato e o mick em uma só pessoa e encantaria a todos sobre um palco e ganharia muito dinheiro porém não saberia usá-lo devidamente eu provavelmente me endividaria e precisaria ser socorrido por algum familiar que bufasse a cada ligação ou visita minha nesse sentido eu fico feliz com o fato de meu pai ter sobrevivido ao câncer de boca assim ele continua pagando minhas contas faz questão de sempre dizer que nunca colocará dinheiro na minha mão mas ele não sabe que eu também me contento com isso o discurso dele me é vazio mesmo que a ele seja imponente eu não tenho uma cédula na carteira há cinco anos já mas também não há dívidas em meu nome na verdade é tudo no nome dele do meu pai este apartamento os móveis que eu comprei para mobiliá-lo as esporádicas faturas a conta no banco e não há nada mais justo afinal meu pai nunca me ensinou a lidar com dinheiro então ele que continue bancando tudo mantendo a vida nos trilhos como ele costuma dizer todo mês quando brevemente nos falamos pelo telefone porque segundo ele conversa virtual não faz sentido é uma injúria da sociedade moderna nossa o discurso do meu pai é recheado de clichês eu sei que ele tem uma conta no facebook eu descobri é uma prova que eu tenho para um dia jogar na cara dele o quanto a sua hipocrisia me dá nojo mas eu aguardo não quero precipitar-me está tudo tão bem tão calmo eu sei esperar eu aprendi a saber esperar eu por exemplo aguardo a sexta-feira como aguardo o final do mês como aguardo o final de um ano ou o término de um dia é o momento em que eu sinto a vida reiniciar é tudo muito simbólico talvez eu seja um dos poucos a sentir isso apesar de todos aguardarem por isso também nunca fui capaz de explicar porque eu me sentia tão feliz numa sexta-feira ou num dia trinta ou trinta um ou à noite mesmo e eu sofro por não saber colocar palavras nesse sentimento a mim é uma frustração se eu soubesse a causa dela eu me sentiria mais pleno eu talvez soubesse viver sem me lembrar do dia em que minha ex saiu pela porta desse lugar e nunca mais eu soube dela eu agora sinto cada final de dia semana mês ou ano como sendo uma possibilidade de mudança a mais repentina mudança que os filmes de ficção podem oferecer parece-me que um relógio será desligado e iniciaremos uma nova vida todos nós seres humanos em um outro espaço tempo no qual não existirá a comunicação do modo como a conhecemos e vivenciamos hoje no qual não existirá a angústia humana fruto dessa forma de comunicação a que chegamos no qual eu sinto que serei o ney o renato e o mick numa só pessoa e conseguiremos todos comermos junto uma maçã na íntegra

ítalo puccini 

sábado, 16 de maio de 2015

no jardim atrás de nossa casa

ver o filho ser mandado para fora de casa talvez tenha sido a maior dor da sua vida.
sempre submissa a uma voz masculina que, de maneira grosseira e autoritária, demarcava o ambiente familiar, helena recebera educação formal de seus pais – ele militar, ela dona de casa. jamais pôde desligar-se de uma rotina que incluía afazeres domésticos, desde arrumar o quarto do irmão a encerar o piso dos cômodos do lar, inclusive sendo responsável por limpar os janelões, estes que, para ela, simbolizavam o lá fora, aquele espaço-tempo ausente. tão bonito deve ser olhar de lá para cá, pensava ela, cuja vida sempre fora por entre os cômodos da enorme casa da família, de onde nunca saíra, senão quando se casou – o pai chegou para jantar, naquela noite, acompanhado de um amigo, dono de uma fábrica de roupas no centro da cidade. este, bem apessoado, de cabelos grisalhos e sorriso sedutor, contador de causos envolvendo as famílias mais conhecidas da região e opinador sobre assuntos políticos e econômicos, encantou a todos os presentes na ceia, menos à helena: tão boçal quanto meu pai.
- minha filha, venha conhecer o seu futuro marido. certamente, um homem que a tratará com o melhor que uma mulher como você pode querer.
uma mulher como ela.
ser mãe tornou-se um processo natural. assim como fora casar-se com joão roberto filho – natural porque obrigatório. joão exigira que a criança tivesse o seu nome, também nome do seu pai. devido a isso, acrescentara neto ao filho: joão roberto neto. e um eco que perturbava helena, mesmo que ela não tivesse consciência de que os calafrios que sentia ao ouvir o nome do filho se devessem a essa cacofonia, fruto de mais uma ação ególatra do seu marido – além dos jantares dos quais somente ele participava, das viagens individuais a trabalho e do escritório, espaço destinado somente a ele. eu mesmo o limpo, semanalmente, orgulhava-se.
a única escolha que coubera a helena fora a do nome a ser dado à filha do casal, prevista para nascer dali a cinco meses. esta criança – fruto de uma relação sexual ocorrida a partir do estado embriagado e, por consequência, violento do marido: só assim para ele tocar-me, pensava ela, prensada contra a cama por aquela forma desengonçada, que, após três minutos de contato físico, levantou-se e foi limpar-se no banheiro – era, para a mãe, a possibilidade de ter uma companhia novamente, de amenizar a dor deixada pela saída de joão, por quem ela chorava baixinho diariamente, há dois meses: vou protegê-la desse mundo cruel, eu juro que vou. para o pai, mais uma a contribuir com o serviço doméstico: agora você vai ter uma pessoa a te ajudar a manter essa casa limpa. vê se a educa direito, para não perdê-la também.
- ela vai se chamar maria.
- ok.
joão e maria. e a originalidade do casal.
porque fora de joão roberto filho a ordem para que joão roberto neto saísse de casa, e não volte nunca mais a pisar os pés nessas terras que são minhas, seu fedelho, metido a intelectualzinho, caia já fora daqui, eu não acredito que coloquei em você o meu nome, o nome do meu pai, de pessoas trabalhadoras como nós, que batalham dia após dia para o enriquecimento da família, para colocar o pão na mesa, para ampliar nossos poderes nessa sociedade hipócrita e gananciosa como é a nossa, e agora você me dá esse desgosto, de ter um filho metido nos grupos sociais, em estudo sociológicos, revolucionários, e ainda por cima baitola!
ver o filho ser mandado para fora de casa.
joão não respondera aos gritos do pai. no centro da sala de jantar, onde estavam, ele via o peito do velho subir e descer com força e rapidez. imaginou, inclusive, que presenciaria um novo infarto, infelizmente não acontecido, pensava, enquanto se dirigia para fora da propriedade da família. porém, antes de virar as costas para a casa onde vivera seus vinte anos, caminhou até a presença de helena – postada rigidamente no canto da sala, segurando o choro e a dor que lhe apertavam o peito, cujos olhos diziam não vá, meu filho, por favor, não vá, não me abandone aqui – deu-lhe um beijo no rosto, abraçou-a com ternura e disse-lhe, olhando naqueles olhos já embaçados, eu volto, mãezinha. eu volto para buscar você e minha irmã.
encarou, então, mais uma vez seu pai, o homem que se orgulhava do patrimônio que construíra, o homem que fora pioneiro no êxodo urbano ocorrido no país nas últimas três décadas, que se tornara tão influente a ponto de mandar prender, soltar e matar quem quisesse na cidade. não sabia, joão, se dirigia àquele homem alguma palavra ou se apenas se virava e saía; estava em dúvida entre ignorá-lo ou partir pra cima dele, surrá-lo – até que algum segurança viesse afastá-lo dali; pensava também em quebrar os objetos decorativos, que tanto orgulhavam ao pai. mas não foi capaz de mexer-se. concentrou-se no que sentia, na presença de sua mãe ali no ambiente, na força que precisaria ter para viver longe dela por algum tempo indefinido, sem a certeza de que ela suportaria aquela separação.
não adianta mandar alguém atrás de mim, seu assassino. eu estarei bem longe daqui, fique sossegado. mas eu volto, estando você vivo ou não, doente ou saudável. eu volto. para buscar o que é de minha mãe, estas terras de que você tanto se orgulha, que somente são suas porque você as roubou dela, do pai dela, meu avô materno, da mesma forma como você fez com as terras dos seus irmãos, inclusive mandando matar o tio flávio em um passeio de barco. não tente fazer igual. eu vou saber de tudo o que acontece aqui nessa casa que você construiu com sangue e roubo.
um juramento. um silêncio.
a maior dor da sua vida.
nem mesmo a dor do parto normal com que tivera o filho – ela insistira tanto por uma cesárea, sempre negada pelo marido, para quem o primogênito deveria nascer dentro da residência da família – sobrepusera-se àquela cena, ocorrida há três meses. daquele dia em diante, helena vivera arrastando-se pelos cantos da casa. abandonara o serviço doméstico, alimentava-se apenas porque era obrigada pela cozinheira e nem mesmo reagia às investidas violentas do marido, que a cada dia bebia mais e, nesses momentos, maltratava-a, chamando-a pelo nome do filho. eu não me importo de apanhar pelo meu filho, eu não me importo, gritava ela, por dentro, sem emitir um só gemido.
foi inevitável que maria viesse a falecer antes mesmo de nascer. o que não levou joão roberto filho a desfazer-se da ideia de que cabia à mãe o primeiro beijo na filha à quem tivera a oportunidade – a única escolha que coube a ela – de dar um nome. beije agora a sua maria, helena. beije a menina que nasceria para ajudá-la nos serviços da casa. tome-a no colo, antes que eu a enterre no jardim atrás de nossa casa, ao lado de onde está enterrado, há um mês, o seu outro filho, o joão roberto neto.

ítalo puccini

segunda-feira, 13 de abril de 2015

eu não gosto de ler texto teatral

     inclusive, eu teria um desgosto profundo se houvesse apenas texto teatral no mundo. ele me cansa, ele me confunde, ele não tem narrador. são diálogos, diálogos, diálogos. e algumas rubricas, com o objetivo de orientar o leitor, mas, primeiramente, aqueles que atuarão na peça. logo, ao ler um texto assim, meus olhos ficam procurando as referências características nesse gênero textual: quem está falando, a quem, com que tom, em que local, entre outras.
     mas eu gosto é de narrativas, de parágrafos longos, análise psicológica, narrador em primeira ou terceira pessoa, até mesmo com diálogos. estes me agradam, porém desde que não conduzam a história inteira. uma vez, por exemplo, eu experimentei ler um romance todo dialogado, foi o “nada me faltará”, do lourenço mutarelli, a quem assisti, em dois mil e dez, na feira do livro de jaraguá do sul. gostei da fala dele, das respostas que ele dirigiu às perguntas sobre sua escrita, suas leituras e afins. comprei o referido livro, li-o e dei-o de presente ao edu, por considerar ser mais a cara dele do que a minha, aquela obra. lembro-me de ter gostado da história, mas de ter me cansado durante sua leitura.
     ainda assim, aquele livro foi menos chato do que uma peça teatral. porque um romance dialogado não apresenta as marcações tradicionais de um texto do gênero dramático, afinal, este é feito para a encenação, aquele, para a leitura do leitor. e dessa vez eu vivi a experiência de ler uma peça do ariano suassuna, intitulada “o santo e a porca”. é da década de cinquenta, a peça, com características do teatro cômico, se é assim que se fala, e se mantém atual, em função do seu caráter crítico. li, gostei da história, porém me cansei bastante, devido aos detalhes já citados.
     e então fiquei encucado com esse desgosto profundo. tou perguntando-me até agora o porquê de tal aversão a um estilo de texto, entretanto, ainda não encontrei respostas, nem mesmo durante a escrita desta croniqueta. em últimos casos, eu falarei disso em terapia, se eu me lembrar, uma vez que entrar no consultório terapêutico significa desorientar o consciente, cedendo lugar ao inconsciente, portanto, não mais controlando a fala, de acordo com o desejo ou a ordem antes prenunciada.  
     ainda, sei dizer do meu gosto em assistir a peças teatrais, isso, sim. vou pouco ao teatro, é verdade, mais por preguiça em sair de casa do que por outro motivo, mas sinto prazer quando vou, assim como, interesso-me em ler sobre apresentações de companhias. contudo, este detalhe não me leva ao outro, o que talvez se apresente como contraditório, e, se assim for, que seja. sou da opinião de que o uso da palavra, por si só, é uma contradição à qual nascemos imbrincados, portanto, cabe-nos um olhar de análise a respeito disso que sentimos, justamente o que me leva a esta escrita, mesmo que, agora ao final dela, eu não consiga encontrar resposta à afirmação inicial.
    contradição, aliás, a me fazer lembrar de gregório de matos e do barroco. contradição, ou seja, dualidade, aquela marcante no período literário da nossa gênese literária: matéria versus espírito, tão recorrente na literatura do século xvii. contradição esta a essência da peça de suassuna. e, talvez por gostar dos poemas do boca do inferno, eu gostei da história de “o santo e a porca”, das personagens ali presentes, do absurdo de cada cena – um absurdo irônico e crítico, refinado – mas nada que me levasse a uma sensação de prazer durante a sua leitura.
     sobre isso, a josi – que, devido à sua desatenção constante, também não gosta de texto teatral – sugeriu que tal gênero textual fosse lido a dois, ou mais, cada um lendo em voz alta a fala do personagem correspondente, assim contribuindo para o entendimento do enredo. pode ser, eu disse a ela, mas sou chato, não me agrada algo que mais parece um ensaio para uma dramatização. logo, cá estou eu, no que diz respeito à leitura de textos dramáticos, novamente sem caminho alternativo, porém resignando-me a este desgosto, a partir de agora aprendendo melhor a lidar com ele.

ítalo puccini 

quarta-feira, 8 de abril de 2015

memórias póstumas de aniversários infantis

            antissocial por natureza – ou por marcas da vida em mim – considero as festas de aniversário infantil excelentes momentos dos quais não participar. nesse sentido, vivi um 2014 de plena realização, no qual participei da comilança de um bolo no aniversário do vitinho – meu enteado – e só. por outro lado, março de 2015 já posso considerar o mês do saco cheio.
foram quatro festas infantis, uma em cada final de semana, nas quais tive a oportunidade de exercer a paciência nos seus níveis mais profundos, afinal, um cenário onde crianças estão correndo, gritando, pulando, jogando-se ao chão enquanto alguma música de voz muito aguda preenche um espaço também ocupado pelas conversas dos adultos – em volume elevado, devido ao contexto – causa graves problemas ao cérebro das pessoas, comprometendo funções básicas da convivência, como por exemplo respirar.
como eu tento lidar com isso?
comendo.
sem dúvidas, cada um desses quatro momentos contribuiu no meu propósito de não regredir meu peso para menos de 70 quilos. na verdade, foram ótimas oportunidades para eu abrir uma margem de erro. agora com 72 quilos, tou tranquilo, curtindo esse peso ideal que ainda faz de mim um sujeito magro, porém menos esquálido.
também, aproveitando-me do meu novo iphone rosa, eu percebi que posso aprimorar meus escritos durante esses eventos top, por exemplo escrevendo croniquetas assim, ou poemas despretensiosos – e desde quando um poema se pretende a algo? por isso que gosto de croniquetas assim, como se fossem poemas, cuja pretensão é nula, e a ironia, muita.
este texto, por exemplo, eu comecei a escrever durante uma festinha à qual levei o vitinho. parei o texto, naquele momento, no parágrafo anterior, e agora resolvi continuá-lo, passando-o do celular para o computador. naquele lugar, eu não conhecia ninguém – era um aniversário de um coleguinha de escola do vi – e as pessoas de lá não foram muito receptivas, ou seja, ofereceram-me um refrigerante e ocuparam-se com suas conversas-fechadas. eu, portanto, passei a acompanhar o jogo do jec pelo twitter e a escrever, enquanto o vi se divertia à beça. chegou o momento da comilança e eu me senti plenamente realizado. enrolei mais uma meia hora e fomos embora.
com sinceridade, eu fico feliz pelas pessoas e por seus aniversários, principalmente pelas crianças, ansiosas, devido às promessas de presente e de brincadeiras com os amigos, mas acredito que na intimidade ainda seja a melhor maneira de se comemorar uma data. justamente em função disso, também, eu nunca escrevo a ninguém, via redes sociais, felicitações, afinal, não há nada mais frio do que este gesto automático, repetidamente banalizado, cujo valor simbólico se descaracterizou. da mesma forma, não entendo festas de aniversário para as quais um mar de gente é convidada, ainda mais envolvendo desconhecidos, gente nunca antes vista, afinal, pergunto-me, qual a lógica de receber um desconhecido para um momento tão único, tão particular?
prefiro o tête-à-tête, a janta com a esposa ou o marido, o passeio com os filhos ou os pais. e, de ante mão, relembrando um pouco o último capítulo de memórias póstumas de brás cubas – o de negativas – agradeço os próximos convites, parabenizo-os se houver oportunidade, e espero não poder ir ao aniversário do seu filho, caro leitor.

ítalo puccini 

sábado, 28 de março de 2015

entre poemas e contos, da bahia a florianópolis


       isso porque gregório de matos é baiano e franklin cascaes é manezinho da ilha. aquele, nascido e falecido no século xvii, doutor em direito pela universidade de coimbra, tornou-se o escritor mais representativo do barroco brasileiro, no que diz respeito ao texto literário. este, morador da ilha de nossa senhora do desterro, três séculos à frente de gregório, escritor, professor e escultor e desenhista, aprofundou-se no estudo sobre os costumes ilhéus, sendo considerado o artista mais completo da capital catarinense.
            um livro de poemas de gregório de matos – organizado por josé miguel wisnik – está na lista de livros obrigatórios da universidade federal do paraná – ufpr – e um livro de contos de franklin cascaes se encontra, como não poderia deixar de ser, na lista da universidade federal de santa catarina – ufsc. e eu, cumprindo com minhas funções docentes, tenho trabalhado em sala de aula tais obras, aprofundando o estudo a respeito dos autores, das suas características textuais e dos contextos nos quais eles produziram.
assim, numa bela tarde de quarta-feira, entre livros, provas e redações, eu pensei na possibilidade de escrever uma croniqueta – não haverá análise literária acadêmica aqui, é bom que se deixe claro – relacionando estes dois escritores, não somente devido aos textos de ambos, relação esta que ocorre através de elementos diferentes entre si, mas ao fato de que há, nessas literaturas, um importante aspecto: o reconhecimento cultural de dois estados brasileiros, distantes territorialmente, mas quem sabe próximos em afinidades culturais.
cada um à sua maneira, gregório e cascaes se valeram da arte literária – e cascaes de outras também, conforme já dito – para apresentarem aos leitores um pouco do que se vivia em salvador e em florianópolis nas respectivas épocas dos dois. desse modo, à medida que lemos os poemas satíricos e religiosos do poeta baiano, por exemplo, apropriamo-nos das críticas dirigidas pelo boca do inferno – o seu singelo apelido – ao governo do estado, à sociedade e à igreja naquele século, da mesma forma que se torna possível a nós conhecermos com riqueza de detalhes o linguajar do morador do interior da ilha de santa catarina, seus costumes, suas crenças e superstições em figuras míticas, tais quais lobisomens, bruxas e até o diabo, representado pela figura do anjo lúcifer.


sobre gregório, eu converso com meus alunos salientando a relevância cultural do seu texto, afinal, vivemos hoje quatro séculos à frente do momento retratado por ele, e ainda assim sua veia satírica se mantém atual, significando a ausência de avanços comportamentais no que diz respeito a nós, seres humanos. basta, para isso, a leitura de um poema tal qual este a seguir, no qual está exposta nossa atitude curiosa e egoísta:
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,

Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.


já cascaes faz uso constante de uma linguagem cuja preocupação reside no registro da língua falada pelos moradores de florianópolis quando a cidade ainda era denominada nossa senhora do desterro, uma língua, portanto, marcada por peculiaridades fonéticas, morfossintáticas, semânticas e lexicais:
“– Primo Nicolau! Vossa mecê acardita memo de vredade naquelas istória que o nosso povo lá das ihias dos Açôri (i) contavo prá nóis como vredaderas?
Ah!... Sim, acardito de vredade, sim, minha prima! E inté agora me veio uma delas, no bestunto da minha cabeça e que eu acho ela memo munto inzata. Como tu bem sabes e vancês todos que tão aqui me osvindo, aquelas ihia dos Açôri, de ondi os nosso avó, foram sempre munto infestada por muhié bruxa que roubam embarcação prá móde fazê viagem inté a Índia em quatro horas; que dão nóis nos rabo e crinas dos cavalo; chupo sangue de criancinha; intico com as pessoa grande e pratico mil malas-arte.”
no entanto, também há um viés crítico nos contos do escritor catarinense, como por exemplo através da negação ao uso do nome florianópolis, uma vez que o autor era contrário à politicagem inserida no projeto de modernização e urbanização da querida ilha de nossa senhora da conceição, vocativo utilizado pelo narrador tantas vezes ao longo do livro.
ainda, são múltiplos os caminhos a serem percorridos a partir da leitura dos textos desses dois escritores, conforme eu converso com meus alunos. gregório, por exemplo, fez uso reiterado de figuras de linguagem e de inversões sintáticas nos seus poemas, transitando pelo gênero lírico ao descrever a mulher amada e uma vida amena ao lado dela – inclusive, retomando o carpe diem, essência da estética clássica e neoclássica – enquanto cascaes explorou a riqueza sonora da linguagem açoriana, assim como, o imaginário popular na constituição cultural de um povo. com isso, da bahia a florianópolis, entre poemas e contos, é possível a nós conhecermos um pouco mais de nossa cultura brasileira.

ítalo puccini 

sexta-feira, 20 de março de 2015

cãimbra

uma crônica em forma de poema eu escrevi pros meus amigos do
grupo “udesc ou itapema?” que eu criei essa semana no whatsap
depois que eu comprei um iphone rosa
grupo composto por três pessoas um grupo aliás fonte de inspiração
por exemplo para esta espécie de crônica em forma de poema
que eu disse a eles que escreveria depois de lhes fazer a seguinte pergunta
vcs já sentiram cãimbra na uretra
assim mesmo com til e m e palavra abreviada
porque eu me recuso a escrever formal ou corretamente em chats
na verdade eu me liberto nesses espaços de interação virtual
eu que sempre fui fechado à ideia de modernidade tecnológica
agora percebo o quanto minha produção escrita advém de tais veículos
mas também muito disso se deve à intimidade que tenho
com algumas pessoas com as quais dialogo por ali
inclusive acho que vou falar disso na análise
é uma contradição interessante
mistura repulsa com criação poética
eu tou há meses querendo escrever um poema e nada consigo
agora com cinco dias de whatsap este poema mesmo que quase narrativo
assim me brota
uma aberração poética na verdade fonte de críticas por parte dos críticos literários
online
é uma raça bastante numérica que deve sentir cãimbra na uretra ao mijar
para a qual eu não dou a mínima afinal se eu fosse escrever pensando em quem vai ler
eu jamais escreveria algo eu iria sei lá lecionar literatura
então que a minha escrita não se preocupa com o leitor
ao contrário de brás cubas que se dirigia aos seus de maneira agressiva
eu faço pouco caso eu sou displicente
eu escrevo poemas enquanto assisto a jogos de futebol
eu escrevo poemas com versos clichês
enquanto vejo o meu ídolo messi fazer poesia com a bola nos pés
mas esta metalinguagem da qual me utilizo é apenas recurso estilístico para desconversar
para tergiversar
para irritar
para não pensar na cãimbra que sinto na uretra
vcs também a sentem
ponto de interrogação

ítalo puccini

sexta-feira, 13 de março de 2015

a metalinguagem da necessidade fisiológica

é bom às vezes não colocar o mata mosquito no banheiro afinal quando surge com força a vontade de fazer cocô naquelas vezes em que não há tempo de pegar algo e levar pra ler a ausência do mata mosquito tem como consequência a presença de alguns desses bichinhos em tal lugar eles entram através da janela do duto o único caminho de ventilação ou seja não há como mantê-lo fechado o banheiro fede demais então eu prefiro lidar com os insetos a lidar com o mau cheiro e até mesmo é uma maneira de me ocupar durante aquela ação naquele espaço uma vez que sem livro ou palavras cruzadas e com o celular largado em algum cômodo da casa a presença dos mosquitos torna o momento bastante interativo por exemplo eu pego a toalha de rosto pendurada ao lado do bacio e do granito da pia porque tudo no banheiro é compacto ao extremo e com ela eu inicio minhas tentativas de fazer morrer aqueles seres ariscos que quanto mais são acertados menos cambaleiam parecem saber da existência de uma guerra ali estabelecida eles escapam das toalhadas voam para trás de mim de modo a impossibilitar-me de acertá-los e às vezes se escondem dentro do box lugar onde eu não os alcanço com a toalha dessa forma eu aproveito para descansar um pouco relaxar curtir o momento contar azulejos eu e os azulejos temos uma relação numérica eu os vejo e já começo a contá-los seja na diagonal, na horizontal ou na vertical até que percebo um mosquito pousando em um deles em um dos azulejos paro imediatamente a minha contagem afinal depois eu posso reiniciá-la me é sempre um prazer contar azulejos é uma mania é motivo para tratar em terapia quem sabe e eu recomeço as toalhadas em direção aos bichinhos interativos eu repito os meus movimentos eles repetem os seus movimentos eu repito palavras neste texto propondo assim uma metalinguagem não só literária como fisiológica uma reflexão sobre o ato da escrita advindo de uma vontade de fazer cocô que vem com força e me impossibilita pegar algo pra ler e realmente não há nenhum material de leitura no banheiro porque o banheiro é muito compacto apartamentos hoje em dia são compactos o casal não pode mais dialogar no banheiro enquanto um toma banho ou outro faz xixi ou cocô por exemplo isso não acontece mais nos apartamentos modernos feitos para a classe média assim não há espaço para algum suporte onde caibam livros revistas palavras cruzadas qualquer material de leitura o que é uma pena afinal ler no banheiro traz consigo a certeza de que não haverá ninguém fazendo perguntas tal qual o que é que você está lendo porque uma das situações mais deselegantes a serem vivenciadas envolve uma pessoa um livro e uma outra pessoa quanto esta última chega e interrompe a concentração daquela primeira com a típica pergunta o que é que você está lendo e no banheiro não há como algo assim ocorrer principalmente nesses apartamentos modernos onde tal lugar é um cubículo onde tudo é muito compacto e justamente em função disso que não há material de leitura para eu ler enquanto faço cocô sendo assim me resta matar os mosquitos quando o mata mosquito não está colocado na tomada e como houve um aumento excessivo na conta de energia elétrica nos últimos meses eu não posso abusar desse elemento químico cuja ação envolve o assassinato animal portanto haverá sim muita interatividade durante esses momentos do meu dia-a-dia garantindo quem sabe a produção de futuros textos posso até não escrever resenhas de livros que li no banheiro mas quem sabe eu me torne um escritor de narrativas metalinguísticas envolvendo as necessidades fisiológicas

ítalo puccini

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

um macuco

“é um tinamiforme da família tinamidae. nome de origem tupi-guarani: mogoico-erê. é o maior representante dos tinamídeos na mata atlântica. é espécie cinegética (caçada). seu nome, em latim, é solitarius, ou seja, solitário. atinge até 52 cm e entre 1,5 a 2,0 kg de peso médio. habita a mata atlântica primária, sempre próximo a riachos. sua vocalização principal consiste em um único pio, meio agudo e bem espaçado, sendo o pio do macho mais curto que o da fêmea. as fêmeas são dominantes e territoriais”.
isto segundo a “wikiaves”.
porque um macuco também pode ser um título em um torneio de sinuca familiar. assim: nós nos reuníamos semanalmente para jogarmos sinuca – eu, meu pai, meu irmão fran e o fox (que minha mãe diz ser o filho ruivo que ela nunca teve – minha barba não preenche esta lacuna na vida dela). geralmente aos finais de semana, passávamos cerca de duas a três horas em torno de uma mesa de bilhar, daquelas de inserir a ficha e ouvir o estalo da bola ao ser encaçapada, lá no extinto bar do paludo, em jaraguá do sul, revezando as duplas e, consequentemente, os confrontos. da seguinte forma: todos jogavam com todos e contra todos. eu e o pai versus o fox e o fran. eu e o fox versus o pai e o fran. eu e o fran versus o pai e o fox. assim por cinco vezes, mais ou menos. a cada vitória de uma dupla, marcávamos um ponto para os vencedores. logo, ao término de toda a bagunça giratória, havia um campeão e um lanterna.
pois bem, um dia o pai levou uma lanterna para o bar. e o fox se revoltou com aquilo. uma lanterna pequena, daquelas de 1,99, um singelo símbolo da brincadeira. dessa maneira, o último colocado naquele dia levava a lanterna pra casa e ficava com ela durante toda a semana, até o próximo sábado ou domingo, e, caso o mesmo jogador terminasse três semanas seguidas em último, ficava em definitivo com o objeto simbólico e tinha a obrigatoriedade de trazer uma nova lanterna para o próximo jogo.
as novas lanternas compradas eram mais modernas ao longo dos meses. foi bonito de ver.
e o campeão de cada jogatina? aquele que mais vencesse no rodízio de duplas sagrava-se campeão – quando dois alcançavam o mesmo número de vitórias, jogava-se uma partida individual, uma só, para definir o vencedor da semana. e daí, não é mesmo? bom, e daí que um dia o fox venceu pela quinta vez a brincadeira e disse: agora eu tenho um macuco. e a inveja disseminou-se pelo grupo. porque o ruivo simpático, a cada final de semana, repetia: eu tenho um macuco, seguido por uma risada sarcástica: ha ha. e seria difícil alcançar o tal macuco, afinal, vencer cinco campeonatos assim disputados não era algo que se alcançasse em um mês. eu, por exemplo, ao longo de pouco mais de um ano de diversão, nunca consegui. mas o meu irmão já, ele conquistou a palavra-símbolo-da-destreza-sinucal, e meu pai até hoje não entendeu o tal do macuco, logo, não faz questão dele.
    justamente por isso, por este trauma que carrego comigo, propus retomarmos a brincadeira, nem que eu leve uma década para alcançá-lo, o macuco, este vocábulo cujo significado, para nós, não apresenta relação com a significação formal da palavra – e por isso eu iniciei esta croniqueta com aquela definição. um macuco, para nós, é muito mais do que um troféu, do que um valor em dinheiro, do que uma foto de campeão ou um pássaro. um macuco é uma frase: eu tenho um macuco. uma frase que especifica o lugar ocupado por cada um de nós quatro ao redor daquela mesa de sinuca: o fox foi quem primeiro conquistou um macuco. o fran em seguida. eu e o pai, portanto, somos os reservas. mesmo que eu nunca tenha levado uma lanterna pra casa, mesmo que o fran e o fox tenham acumulado lanternas em casa. eles têm um macuco. ponto. e eu tenho uma inveja.

ítalo puccini 

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

a elegância de clara

            


           clara é o nome da nossa vira-lata, que há vinte dias está conosco, presente recebido da mãe da amanda, da própria amanda e do marco vasques – isto porque sobram cães e gatos na casa da dona maria, e, num domingo qualquer, almoçando por lá uma deliciosa carne preparada pelo chef literário vasques, a rafa bateu o olho nessa princesa de apenas quatro meses, de pelagem preta, com as patas, o peito e os traços da cabeça em tom amarronzado e uma barriguinha saliente, rosada, um charme a mais nesse corpinho miúdo de patas grandes, que dia a dia vem espichando, parecendo uma mistura de rottweiler com basset, sendo na verdade uma vira-lata puríssima, de pai e mãe vira-latas, ambos de tamanho médio.
            uma das orelhas dela insiste em ficar dobrada para trás.
inicialmente, demos a ela um nome composto: clara nunes. porém, a referência é muito forte, cuja história de vida contém marcas que, a nosso ver, não caberiam a esse tisco de cão. assim, abreviamos. chama-se, agora, clara. nos momentos de puro-amor ela é clarinha, cuti-cuti, ai mo deuzo, amor da minha vida; entretanto, quando apronta, o tom de voz aumenta, e a chamada é: clara, não!alternância esta que ocorre com bastante frequência ao longo do dia, por exemplo: quando ela desembesta a correr pra lá e pra cá, pulando, latindo, devido às provocações que fazemos, ou quando ela dorme, tão linda, aninhada aos nossos pés, ela é a clarinha; diferentemente dos momentos em que cava buracos no gramado, tenta morder chinelos, tapetes ou almofadas ou faz manha para dormir, deixando de ser a 'inha' e tornando-se uma simples cachorra que merece apanhar e ficar de castigo.
porque o amor e o ódio se imanam nas fogueiras das paixões, já cantava a elis.
e agora durante as férias um pouco da rotina – sobre dormir e acordar – tem sido assim: clara dorme no nosso quarto, amarrada a guia à coleira e ao cabideiro, deitada sobre um tapete, aninhada a um ursinho igualzinho a ela, de cor preta com manchas em marrom. clara dorme presa à guia devido a uma simples razão: não ficar durante a madrugada andando pelo apê, fazendo tec-tec-tec-tec com as compridas unhas, barulho este realçado pelo piso amadeirado cá de casa. e ela dorme que é uma beleza, até umas 6h ou 7h da manhã, quando uns baixinhos sons de choro podem ser ouvidos: é o momento de levantar, tirá-la da guia e ir com ela para a parte externa, o gramado. enquanto ela come a ração e bebe a água e depois faz suas necessidades, eu preparo umas torradas com geleia e me sento também lá fora, a ler e a comer, lutando bravamente contra os mosquitos ainda presentes ao raiar do dia. minutos depois, é hora de voltarmos a dormir. ela entra sozinha em casa e já se dirige ao quarto, para onde também vou. assim temos mais umas horas de sono, a depender do momento em que acordará o vitinho, pois é ele quem vai ao nosso quarto soltá-la e começar a algazarra do dia, tão bem feita pelos dois.
bola de meia, bola de gude, o solitário não quer solidão.
e a clarinha muito menos. onde nós estamos, lá está ela – agora que escrevo, por exemplo, está deitada sobre meu pé, dormindo profundamente; enquanto preparamos o café, o almoço ou a janta: deitada no tapete ao pé da pia; enquanto assistimos às séries e aos filmes na televisão da sala: deitada nos nossos pés, no chão, no pufe ou no sofá, entre nós; quando nos levantamos para ir a outro cômodo: tec-tec-tec-tec, lá vem ela atrás. paramos de andar, ela para e senta. voltamos aonde estávamos, ela volta também. vou lá fora jogar o lixo, ela chora dentro de casa. houve uma manhã, inclusive, em que eu, caindo de sono, deixei-a na parte externa do apê, fechei a porta e voltei a dormir. levantei-me perto das dez, fui procurá-la e cadê? (aí vem o desespero: tum-tum-tum!). corri pelo prédio, a procurá-la. rafa a encontrou, em poucos minutos, quando a vizinha do apartamento ao lado abriu a porta e a trouxe. disse que a encontrou presa na grade que divide nossos jardins, tentando passar para o lado de lá. ou seja, quando se viu sozinha, bateu o desespero do abandono, fugiu para a família ao lado – não sem antes muito chorar e latir.
agora, ela vai lá fora, senta e olha.
e o título desta croniqueta-quase-ensaio é oriundo do livro que tou lendo nessas duas semanas de rotinas-com-a-clara: a elegância do ouriço, de muriel barbery, cuja história envolve duas narradoras: paloma, adolescente de 12 anos que promete suicidar-se no dia do seu próximo aniversário, e renée, zeladora do prédio onde paloma e outras tantas personagens vivem, no centro de paris. o objetivo de vida de ambas é o mesmo: apagar os traços de suas existências. os capítulos se alternam entre essas duas vozes narrativas que tão bem escrevem e conversam com o leitor, propondo uma série de reflexões existenciais, a partir da realidade frívola que as cerca, isto através de ironias e descrições divertidas sobre o comportamento de cada personagem, coincidências que envolvem variadas manifestações artísticas e cenas cotidianas junto às quais o leitor pode muitas vezes se reconhecer. é, a meu ver, um livro que pede uma leitura mais lenta, espaçada, um pouco por dia. senti isso desde que comecei a lê-lo e dessa forma tenho feito, aproveitando-me do despertar matinal de clara para isso, para ler algumas páginas e então parar, voltar a dormir, quem sabe durante o dia ler mais. parece-me que há livros para serem lidos assim, a partir do ato de levantar a cabeça após a leitura, proposto por barthes, o mesmo movimento que faz clara ao ir para a área externa do apartamento: ela anda um pouco, para diante da comida, olha, sente o cheiro, senta e então começa a comer; a seguir, levanta-se, anda outro pouco e senta-se no limiar do piso com o gramado, olha, sente o cheiro, para só depois andar pelo próprio gramado.
eis a elegância de clara.

ítalo puccini.