sábado, 31 de março de 2012

maneiras de ler um livro

isso de ler em sala de aula é coisa que faço desde que comecei a lecionar, há cinco anos. haja coragem, eu sei. e haja sinceridade. só é possível manter mais de trinta alunos atentos à sua voz se houver demonstração de sinceridade e de paixão naquilo que se faz. ninguém acredita no que não transpassa segurança, não é mesmo? logo, tenho ciência, desde os idos da graduação, de que somente contribuirei para a formação de alunos-leitores se eu me demonstrar um professor-leitor - e não só leitor, mas uma pessoa apaixonada pela leitura. preciso, sim, ser exemplo daquilo que cobro em sala de aula. então que leio muito: sozinho, em grupos, na rua, no banheiro ou no colégio. e leio com os meus alunos, porque simplesmente mandá-los ler jamais será suficiente. 
(introdução feita, vamos ao fato cronicado):
tou lendo com minhas quatro sextas séries o livro "joão e os sete gigantes mortais", do sam swope. leitura 'no miudinho'. um capítulo por semana. e os capítulos são curtos. coisa de dez minutos da aula e pronto. dá-lhe conversa! por dois motivos que se abraçam: porque 'minhas crias' falam muito e porque o livro abre para muitas divagações. é empolgante. e é uma ansiedade tremenda! não tem aula em que um par de alunos não venha me perguntar: "vai ler o joão hoje pra gente, professor?". baita frase, hein? quando nos referimos a um livro dessa forma - "joão", um apelido - é porque ele está internalizado. e, uma vez internalizado, é porque a leitura é verdadeira, está entranhada (palavra horrível, eu sei) no leitor. meus alunos parecem estar assim com o nosso joão. e é nosso porque estamos caminhando com o personagem há semanas já, e assim continuaremos durante mais algumas. 
ser leitor é fazer companhia ao personagem, não é? 



e é sentar para ouvir a história da mesma forma como ele, o personagem, segue a caminhada sentado em sua vaca: de trás pra frente. (deixa eu explicar: joão ganhou três feijões mágicos de um caminhante com quem ele dividiu a única maçã que tinha - isto no começo de sua trajetória, ao abandonar a vila em que morava, e na qual era culpado de tudo por ser mau, inclusive de atrair gigantes mortais para lá, porque, segundo o padre da vila, "mal atrai mal", então joão os estava atraindo. com os feijões, fez o pedido de conhecer sua mãe (sim, não a conhecia), e, ao abrir os olhos, deparou-se com uma vaca. eis a vida de joão. não restou a ele outra coisa a não ser subir na vaca e seguir em frente, mesmo sem saber para aonde. acontece que, ao montar no animal, joão se atrapalhou todo e sentou de costas para a cabeça dela. passou, assim, a observar o mundo de costas para o que vinha pela frente). 



alguns alunos de uma das minhas turmas, então, ao ouvir esta parte da história (que é ainda no começo - foi no primeiro dia em que comecei a ler este livro para eles), sentaram de costas para mim, dizendo "ele sentou assim na vaca, ó, professor". e eu achei aquela rápida reação sensacional, e me dirigi ao fundo da sala de aula, onde de lá continuei a ler para eles. e assim agora fazemos a cada semana, a cada capítulo desde então. acompanhamos joão e suas lutas com os gigantes mortais como se estivéssemos todos sentados de costas no lombo da vaca. não ousamos abandonar nosso personagem, o nosso joão. 
você ousaria?

ítalo puccini

sexta-feira, 23 de março de 2012

Os meninos de Jorge e eu leitor


‘Tou’ há muito querendo me apaixonar. Por livros e personagens. É saudade de conversar com personagens durante dias, de descobri-los diferentes a cada página ou capítulo, de trazê-los pra minha vida. Ser um leitor mal acostumado tem disso. Meses sem esse se apaixonar deixam um quê de ‘tá faltando alguma coisa’ que só pode ser amenizado por novas histórias lidas. E, sendo assim, dá-lhe ler histórias. Mas, naturalmente, não é fácil acertar em cheio uma paixão. Não há regra, tutorial, dez passos para o amor. É ilógico. É temporal.
Livro que hoje não tocou pode ser sentido daqui há dez anos. Ou o contrário.
Aconteceu, então, de eu me encantar por vários de um mesmo livro. Os tais meninos de Jorge ali do título da crônica. “Não se vive inutilmente uma infância entre os Capitães da Areia”, diz uma frase do livro que tem este nome, “Capitães da areia”. E não se sai desta leitura incólume. Os meninos marcam. A carência dos meninos toca o leitor. Assim como a coragem e o lindo sentimento de liberdade que prevalece em cada um deles. A luta muda seus destinos. A luta pessoal de cada um deles. Suas vocações e seus destinos.
Nunca foram meninos, sim homens desde pequenos. Nunca foram homens, sim meninos para sempre.
Zélia Gattai Amado, esposa do autor, assim disse sobre o livro: “A temática das crianças que vivem nas ruas continua bastante atual. Para escrever ‘Capitães da Areia’, Jorge Amado foi dormir no trapiche com os meninos. Isso ajuda a explicar a riqueza de detalhes, o olhar de dentro e a empatia que estão presentes na história”. E com as quais o leitor se encanta, por tamanho envolvimento, por tamanha sinceridade que reina entre aqueles meninos.
Jorge Amado registrou, nesta obra, a crueza da vida dos que moram na rua. As roupas, os modos, o cotidiano, a língua. A língua como era realmente falada pelos meninos de rua: “Nós sabe guardar um segredo tão bem como um cofre. E os Capitães da Areia sempre faz os serviços bem-feito”. É possível observar, nisto, um registro que afronta a língua pensada e proposta pela Gramática Normativa e pelas obras clássicas editadas no país, que cultuam a língua normativa em detrimento à língua usual dos falantes. Há esta crítica do autor aos modos tradicionais. O roubo não é mero roubo. É toda uma reflexão sobre o porquê do roubo. Reflexão esta não alcançada pelos demais personagens do romance, pela burguesia da vida boa, que apenas aponta para os maltrapilhos e os acusa e os quer presos. Não enxergar aquilo que incomoda é tão melhor, não é mesmo?
Isso de uma leitura incomodar é busca constante minha. Busca de um leitor que quer ler se mexendo, agoniando-se, sentindo a história mudar algo dentro de si.
“Capitães da areia” me tirou do lugar comum e cômodo em que eu estava. Trouxe-me também à escrita íntima, aquela que corta por dentro, que não se preocupa com a recepção do texto, e sim com o que vem de quem escreve. Acalentou-me o abandono de leitor que eu estava sentindo. A carência desses meninos do trapiche me supriu a carência leitora. Seus destinos tão bem traçados se cruzaram ao meu destino-leitor.

Ítalo Puccini

segunda-feira, 5 de março de 2012

Crônica para o meu pai

           Meu pai tem me lido semanalmente, uma vez que tenho publicado crônicas em sites e jornais há alguns meses já. E ele não tem gostado do que escrevo, não. Gostou de uma só. Tou em dívida com o velho. Sendo assim, resolvi escrever esta crônica especialmente para ele, pedindo licença aos leitores que aqui buscam referências e ladainhas literárias (sim, porque toda crônica me parece ser uma ladainha – mas isto é assunto pr’outra crônica).
        Recentemente, ele tirou sarro da minha escrita sobre como os ônibus são progenitores de crônicas, além de não ter entendido nada sobre uma outra crônica, anterior, que tratava da prática da leitura, sobre quando algo faz ou não faz sentido a quem o lê. Pois então, escrevo a ele para confabularmos (e os leitores estão convidados) sobre o ato de lavar louça. (Um assunto muito cronicável, não é mesmo, pai?).
         Em algumas conversas de bar com amigos, vezemquando citamos o ato de lavar louça como uma forma de terapia. Edu foi além, disse que mais importante do que tal ação é a música que se ouve enquanto se pratica este ritual (afinal de contas, uma tarefa executada diariamente pode ser chamada de ritual, né? Creio que sim). Tem razão o Edu. Hoje mesmo, antes de me sentar diante do computador para escrevinhar este e outros textos, lavei a louça ao som da trilha sonora do filme “Across the universe”. A mãe, que estava na cozinha naquela hora, odiou. Pedi a ela que se retirasse, claro. E em três músicas a louça estava devidamente lavada.
        (E enxugada, mas enxugar a louça acredito que seja uma das coisas mais inúteis que as pessoas fazem. Basta deixá-la secando sozinha. Fica até melhor, sem aqueles fiapos de pano nos pratos, nos copos ou nos talheres. Lavo a louça com orgulho, mas me recuso a secá-la).
         Voltando à louça como terapia, o que tu achas, pai? Lembro-me de ti lavando louça e ouvindo as notícias no rádio – geralmente esportivas. Ou lavando a louça e conversando com alguém. Inclusive, deixando acumular louça, para que o serviço valesse à pena. É uma boa tática. Agora que estou morando sozinho, tenho feito isto. Poucas coisas são tão prazerosas quanto receber a visita de alguém e conversar enquanto se ‘limpa a pia’ (eufemismo pobre, eu sei).
         Também tem aquela situação de a visita se prontificar a lavar a louça na sua casa. Um ato educado, sem dúvida, mas exagerado. E às vezes não há nem o que fazer, pois a pessoa faz questão de se molhar na sua pia. Eu não faço isso na casa dos outros, não. E evito deixar que façam na minha. Cada um com suas louças, cada um com seus problemas. Prefiro, realmente, que me façam companhia pr’uma prosa num ambiente tão acolhedor quanto é a cozinha.
      Sendo assim, estão todos convidados a isto. Próximo almoço, ou próxima janta, formalizarei os convites. Inclusive ao meu pai.

Ítalo Puccini