sexta-feira, 23 de março de 2012

Os meninos de Jorge e eu leitor


‘Tou’ há muito querendo me apaixonar. Por livros e personagens. É saudade de conversar com personagens durante dias, de descobri-los diferentes a cada página ou capítulo, de trazê-los pra minha vida. Ser um leitor mal acostumado tem disso. Meses sem esse se apaixonar deixam um quê de ‘tá faltando alguma coisa’ que só pode ser amenizado por novas histórias lidas. E, sendo assim, dá-lhe ler histórias. Mas, naturalmente, não é fácil acertar em cheio uma paixão. Não há regra, tutorial, dez passos para o amor. É ilógico. É temporal.
Livro que hoje não tocou pode ser sentido daqui há dez anos. Ou o contrário.
Aconteceu, então, de eu me encantar por vários de um mesmo livro. Os tais meninos de Jorge ali do título da crônica. “Não se vive inutilmente uma infância entre os Capitães da Areia”, diz uma frase do livro que tem este nome, “Capitães da areia”. E não se sai desta leitura incólume. Os meninos marcam. A carência dos meninos toca o leitor. Assim como a coragem e o lindo sentimento de liberdade que prevalece em cada um deles. A luta muda seus destinos. A luta pessoal de cada um deles. Suas vocações e seus destinos.
Nunca foram meninos, sim homens desde pequenos. Nunca foram homens, sim meninos para sempre.
Zélia Gattai Amado, esposa do autor, assim disse sobre o livro: “A temática das crianças que vivem nas ruas continua bastante atual. Para escrever ‘Capitães da Areia’, Jorge Amado foi dormir no trapiche com os meninos. Isso ajuda a explicar a riqueza de detalhes, o olhar de dentro e a empatia que estão presentes na história”. E com as quais o leitor se encanta, por tamanho envolvimento, por tamanha sinceridade que reina entre aqueles meninos.
Jorge Amado registrou, nesta obra, a crueza da vida dos que moram na rua. As roupas, os modos, o cotidiano, a língua. A língua como era realmente falada pelos meninos de rua: “Nós sabe guardar um segredo tão bem como um cofre. E os Capitães da Areia sempre faz os serviços bem-feito”. É possível observar, nisto, um registro que afronta a língua pensada e proposta pela Gramática Normativa e pelas obras clássicas editadas no país, que cultuam a língua normativa em detrimento à língua usual dos falantes. Há esta crítica do autor aos modos tradicionais. O roubo não é mero roubo. É toda uma reflexão sobre o porquê do roubo. Reflexão esta não alcançada pelos demais personagens do romance, pela burguesia da vida boa, que apenas aponta para os maltrapilhos e os acusa e os quer presos. Não enxergar aquilo que incomoda é tão melhor, não é mesmo?
Isso de uma leitura incomodar é busca constante minha. Busca de um leitor que quer ler se mexendo, agoniando-se, sentindo a história mudar algo dentro de si.
“Capitães da areia” me tirou do lugar comum e cômodo em que eu estava. Trouxe-me também à escrita íntima, aquela que corta por dentro, que não se preocupa com a recepção do texto, e sim com o que vem de quem escreve. Acalentou-me o abandono de leitor que eu estava sentindo. A carência desses meninos do trapiche me supriu a carência leitora. Seus destinos tão bem traçados se cruzaram ao meu destino-leitor.

Ítalo Puccini