és
um senhor tão bonito, um dos deuses mais lindos, sabemos, eu e caetano.
compositor de destinos, tambor de todos os ritmos, também sabemos, caetano e eu.
contudo, noves fora todas as suas qualidades, vou te fazer um pedido, tempo,
ouve bem o que te digo: calma. ou, na linguagem contemporânea dos memes: seje
menas. isto porque, à parte a liberdade poética do meu pedido, você me ocupa o
pensar enquanto, ao mesmo tempo, eu o ocupo pensando em você. tão complexo
quanto desesperador.
gosto
muito dos versos do renato russo em “tempo perdido”, de que “temos todo o tempo
do mundo” e “temos nosso próprio tempo”: sobre o primeiro, a imensidão do
infinito, abstração tão necessária quanto qualquer ilusão que alimentemos; e, a
respeito do segundo, gosto da ideia de ter meu próprio tempo, de torná-lo meu,
apesar de todo o esforço mundano para tirá-lo de mim e preenchê-lo com aquilo
que não me interessa. conforme canta o lenine, em “é o que me interessa”:
“daqui desse momento / do meu olhar pra fora / o mundo é só miragem / a sombra
do futuro / a sobra do passado / assombram a paisagem”. é “a saudade de um
tempo que ainda não passou” o tempo todo do mundo que temos pela frente. e que
de nós querem usurpar.
sinto
que 24 horas para um dia é exagero. revolto-me, inclusive, quando minhas
energias se esvaíram e ainda há o que se cumprir até que se encerre um dia e se
possa descansar para o próximo. e, igualmente, 12 meses em um ano considero excessivo.
até mesmo 30 ou 31 dias em um mês me incomodam. de modo que durmo, durmo muito,
o máximo que meu corpo aguenta, e mesmo assim é pouco, em comparação a todo o
tempo acordado e envolvido em afazeres. durmo enquanto forma de protesto contra
uma vida cujo ritmo me parece a causa de doenças variadas, físicas e
emocionais.
afinal,
quanto mais saudável seria se: um dia tivesse 20 horas no máximo, sendo 8 destinadas
a dormir, 6 a 8 envolvidas com o trabalho, restando outras 4 ou 6 para escolhas
pessoais; um ano, 10 meses, e no mínimo 1 de férias para todos; cada mês fosse composto
por 28 dias, distribuídos em 4 semanas de 7; e a semana se dividisse em 4 dias
de trabalho e 3 de descanso e lazer. seríamos mais saudáveis, física e
psicologicamente. mas não. tornamos o mundo nisto que drummond, lá em 1945, chamou
de “nosso tempo”, ainda tão atual: “é tempo de partido / tempo de homens
partidos”. uma doença coletiva regida pela tentativa humana de aceleração do
tempo.
e
uma degustação da minha utopia de vida saudável eu vivenciei no início do
período de isolamento social provocado pela pandemia covid-19, em meados de
março e início de abril, quando me habituei a dormir antes da meia-noite e a
acordar depois das 8:00, inclusive descansando meia ou uma hora no início da
tarde. eu pensava, à época: precisou instaurar-se uma pandemia para aprendermos
a cultivar um estilo de vida mais cuidadoso com o corpo e a mente. tolice a
minha. em poucas semanas, o ritmo de vida forçosamente se normalizou,
imergindo-nos na loucura das atividades trabalhistas e educacionais que se
iniciam quando nem mesmo o cérebro se conectou à realidade, obrigando-nos a uma
exaustiva sequência de 10 a 12 horas de produtividade, seja física ou
intelectual, necessitando-nos, nesse intervalo, ainda, cuidarmos de aspectos individuais
variados – fisiológicos, familiares, corpóreos, alimentícios, pessoais. revoltei-me
desde então, mesmo organizando minha rotina de maneira a dormir ao menos 8
horas por noite e a descansar após o almoço algumas dezenas de minutos; quando
anoitece e ainda há mais horas a cumprir, mesmo que a lazer, eu emputeço.
ao
contrário de mim, o valter hugo mãe, em entrevista ao jornal o globo, em abril,
disse aproveitar a quarentena para trabalhar em dois livros distintos, de modo
que sentia o tempo correr: “Quase todos os dias peço mais horas. Queria muito
que um dia fosse de 30 horas, no mínimo. O tempo é pouco”. eu chorei quando li,
de tristeza. sentimento que me envolve quando percebo meu dia ocupado nos três
períodos por atividades profissionais ou compromissos inadiáveis – mesmo que
estes sejam raros em minha vida. sinto-me desanimado se leciono, em um dia,
pela manhã, à tarde e à noite, por exemplo, e revoltado se no meu turno livre
me ocupo com obrigações de ofício. invade-me a sensação de impotência, de modo
que a revolta sublimatória é meu escoamento: divido-me entre imaginar uma
realidade alternativa, ler e escrever ou dormir. são as minhas formas de
resistência, meus mecanismos de defesa diante dessa ameaça completamente abstrata
e criada pelo próprio ser humano – aliás, é incrível nossa capacidade de alimentar
aquilo que nos mata. acredito, também, que minha escolha pela leitura de livros
extensos cujas histórias ocorrem em séculos anteriores – nos últimos meses li,
por exemplo, três do machado de assis, três do lima barreto e o “anna karienina”, do
tolstói – seja, inconscientemente, uma forma de confrontar a pressa com que nos
obrigam a ocupar o tempo em um dia, temática já abordada por mim em outro
escrito, produzido mais ou menos nesse período de metade do ano, mas no anterior.
é a época em que essa minha crise mais se acentua.
inclusive
para escrever esta croniqueta eu demorei semanas, pois, quando pensava em me
sentar para escrevê-la, escolhia dormir ou ler até dormir. e é o que eu desejo
a todos nós, mais descanso, menos cansaço. no máximo um esforço para justamente
encontrar uma maneira de se defender dessa ameaça diária, confrontando-a a
partir de escolhas pessoais saudáveis. um bom e prolongado sono, portanto. nos
280 dias do meu ano utópico.
ítalo puccini