segunda-feira, 29 de junho de 2009

o leitor - a história


À parte as muitas e importante razões estéticas, acho que lemos romances porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro (Umberto Eco, 1994, p. 97).

     Assisti, nesse domingo, ao filme O leitor, que rendeu o Oscar 2009 de melhor atriz à Kate Winslet, pela marcante atuação. Já havia lido o livro, há três meses, mais ou menos, e acabei não indo atrás do filme (muito pela minha preguiça em me colocar à frente de uma televisão). E eis que nesse final de semana ele “apareceu” lá em casa.
     Tomei coragem, então, após muito me enrolar para isso, e me deitei no sofá para assisti-lo. Tive que fazer isso de modo “quebrado”, é verdade, pois aguentar duas horas de filme é exigir muito de um ser sonolento como eu. Assisti durante pouco mais de meia hora num dia e ao restante no dia seguinte. E consegui chegar ao final!
     Achei-o brilhantemente lindo. Mesmo já conhecendo a história, sempre há aquela interrogação: será que haverá muito de diferente para o livro? E isto é bom, pois mantém a pessoa atenta ao filme. Não tenho bagagem cinéfila para fazer aqui colocações mais aprofundadas sobre o filme e todos os aspectos de produção que o cercam. Estas linhas são dizeres simplórios sobre uma obra que suscita algumas reflexões no mínimo interessantes. E não faço referência somente ao caso de amor entre um adolescente e uma mulher mais velha, nem à 2ª Guerra Mundial e ao Holocausto, a este assunto que é tema recorrente de recentes produções literárias e de cinema.
     O que mais me encanta na história de O leitor, tanto a descrita no livro por Bernhard Schlink, quanto a forma como foi filmada, é a força com que a literatura dá novo significado à vida da personagem Hanna, interpretada por Kate Winslet. Uma analfabeta que a todo custo, por vergonha, escondeu que não sabia ler nem escrever, chegando ao ponto de se prejudicar ainda mais no julgamento em que era acusada de deixar morrer trezentos judeus, e de abrir mão da aventura amorosa vivida com o ainda garoto Michael Berg. Garoto este que não entende o sumiço de Hanna, e que, mais para frente, já cursando a faculdade de Direito, depara-se com um julgamento em que uma das acusadas é Hanna. E é nesse momento que ele entende porque Hanna tanto lhe pedia para ler para ela. A rotina amorosa dos dois seguia este ritual: fazer amor, banhar-se juntos, e ele ler para ela. Até o momento em que Hanna some sem deixar vestígios nem explicações, o que só será compreendido mais à frente na história.
     E é na parte final desta história que Hanna aprende a ler e a escrever. Na prisão, a partir das fitas que o menino-já-homem-feito Michael Berg mandava a ela, com as histórias de alguns livros que lera para ela quando no romance de verão que eles tiveram. Histórias como “A Odisséia” e “A dama do cachorrinho”. Hanna vai à biblioteca da prisão e pega um dos livros gravados por Michael, e ali, ouvindo e acompanhando no livro, ela descobre as letras, as palavras, as frases, e os sentidos que pode construir junto a elas.
     O leitor é não só uma história de amor, ou mais um ponto de vista sobre o extermínio de judeus. É, também, mais uma possibilidade de sentir os alcances da literatura: o quanto ela pode ressignificar vidas e estabelecer elos duradores. É como afirmou Pennac: a virtude paradoxal da leitura é a de nos abstrair do mundo para nele encontrarmos algum sentido.

Ítalo Puccini

domingo, 28 de junho de 2009

"E o mundo é vasto", ainda bem que muito vasto.

     Ler os contos de Maria Valéria Rezende é mergulhar num universo narrativo precioso e encantador, que “envolve, desarma, e então nos golpeia com uma delicadeza fulminante”, como consta na contracapa de um dos seus livros de contos, Modos de apanhar pássaros à mão, o mais recente.
     Li os escritos desta autora durante esta semana. Iniciei com o romance O voo da guará vermelha, sobre o qual escreverei em outro momento, visto que merece muito uma segunda leitura, e então emendei seus dois livros de contos: o já citado no parágrafo anterior, e em seguida Vasto Mundo, seu primeiro livro de narrativas.
     Ler a narrativa de Maria Valéria Rezende é também se deparar com uma infinidade de personagens apaixonantes, sedutoramente singelos, que transbordam vidas e sentimentos. É acompanhar rotinas marcadas por amores brutos e sonhadores, por sonhos e perdas, pelo que há de fantástico e de real em viver; é passear no campo das emoções. Não há como sair ileso deste passeio, destas leituras.
     Suas narrativas são repletas de metáforas e de musicalidade, como neste trecho: “Era bom fazer um mundo melhor e aos poucos passou a viver como se o que inventava fosse a verdade, como se as notícias funestas é que fossem invenções de alguma alma maldosa que se apossara do correio. Já não se sentia mentindo, apenas interpretando a verdade que se escondia por detrás de palavras desencontradas”. E não só os títulos de seus livros são convidativos; os dos contos também: “Toda dor tem fim”; “Melodrama ou a dama da noiva”; “O tempo em que Dona Eulália Foi Feliz”; “Aurora dos Prazeres”; e “Olhares”.
     O leitor é convidado a conhecer espaços desconhecidos, porém acolhedores logo de entrada. Os lugares vão fazendo parte de nosso mundo, e nós leitores transformando aquele lugar e aqueles personagens, dando-lhes ainda mais vida do que já transbordam; não é possível definir quem invade o espaço de quem. Há uma cumplicidade na leitura das narrativas de Maria Valéria Rezende que deixam marcas pelo encantamento. Estou ainda sob efeito disto. E assim desejo permanecer.

Ítalo Puccini

segunda-feira, 1 de junho de 2009

nas tuas mãos, um corpo estranho





















     Há dois meses, mais ou menos, li dois livros da Adriana Lunardi, brasileira de quem eu não havia lido nada até então. Li "Vésperas", um livro de contos muitíssimo bem escritos, nos quais ela recria a morte de nove grandes autores da literatura mundial, e li também "Corpo estranho", sua estreia no romance.
     A escrita de Adriana me ficou martelando por um bom tempo. Uma escrita repleta de descrições, cuidadosa nos detalhes, que envolve o leitor durante sua leitura, propondo-lhe uma leitura cadenciada e atenta, muito diferente de outros livros e autores que eu havia lido ou estava lendo até aquele momento. E assim fiquei, apenas pensando nos dois livros e na escrita de Adriana. Até que me deparei com a portuguesa Inês Pedrosa, e com dois livros seus: "Fica comigo esta noite" (contos), e "Nas tuas mãos" (romance).
     Também, assim como com os livros da Adriana, li primeiro o de contos da Inês, e depois parti para o romance "Nas tuas mãos". E foi nesse momento de leitura deste romance que a lembrança do "Corpo estranho" voltou a me martelar. Senti, durante esta última leitura, muito do que eu havia sentido enquanto lia o romance da Adriana: a escrita cuidadosa, a leitura cadenciada, os detalhes físicos dos ambientes, e as emoções das personagens sendo expostas de maneira leve e dolorosa, porém libertadora.
Identifiquei-me demais com estas duas autoras e suas formas de escrita. Identifiquei-me muito com as personagens criadas por elas: Mariana, Manu, Paulo e José, em Corpo Estranho, com as estranhezas corpóreas de quem somos, as dores sucessivas das perdas que sofremos, a iminência da morte, a solidão, e o desapego. Jenny (mais Tó Zé e Pedro), Camila, e Natália, em "Nas tuas mãos", também com suas solidões, suas perdas amorosas, suas relações dolorosas, e seus escapes: o diário de Jenny, o álbum de fotografias de Camila, e as cartas de Natália.
     A dificuldade de se relacionar é elemento presente entre as personagens dos dois livros, que, em minha mente, misturam-se agora com muita frequência, e me levam a divagar uma possível relação entre elas, que lhes ajudasse a se descobrir mais. Ou não, ou melhor para estas personagens mesmo fora somente a convivência, e as marcas que ficam de cada um em cada corpo, em cada registro.
      Ao leitor, nas tuas mãos, uns corpos estranhos, inquietantes, e apaixonantes.

Ítalo Puccini