domingo, 7 de abril de 2019

tierra debaixo d'água

      hoje uma música morou em mim, levou-me à praia, ao mar, àquilo de que mais sinto falta, àquilo de que me afastei há anos. eu me afastei de mim mesmo há anos, e quando a consciência disso atravessou o esconderijo e se estabeleceu diante de mim, eu esmoreci. então, planejei uma maneira de fugir da minha memória: fumei um cigarro, caminhei, fiz compras, pintei, assisti a uma partida de futebol. e ouvi: “o mar promete terra seca ao viajante exausto”.
      porém não há facilidade em se alcançar o mar.
      eu era o viajante exausto, que não visitava mais o mar, logo, sem a promessa da terra seca. eu olhava para mim e para o universo de símbolos e pessoas ao meu entorno como se estivesse ausente, todo dia, vagando pela história da minha própria vida, “sonhando a cada dia em alcançar a praia”. e a mim, ao contrário do que canta a canção, sempre me acontece pensar que nada é para sempre, então eu me deixava mergulhado em frieza e infelicidade. eu desisti e me deixei, sabendo que “o mundo seguirá girando quando já não há mais nada”. 
     eu esperava pela “vida que sempre guarda algo que supera a melhor das fantasias”, mas era preciso que viesse de dentro de mim o inesperado. foi quando toda a dor me existente eu direcionei ao outro, a quem me alimentou dor – a dor que advém do desejo de não sentirmos dor. disparei, pois, “partes de poemas que eu tinha abandonado”, rimas de uma mente fatigada, melodias perdidas e descobri que a vingança – principalmente retórica e silenciosa – é sentimento libertador. 
     entretanto não suficiente. 
     às vezes, o trauma, vestido de lembrança esporádica, rouba-nos a coragem de viver o presente e exerce sobre nós dúvidas capciosas, originadoras de angústias outrora escondidas. assim, sentindo-me manipulado pelo passado, embaralho os quereres e desvirtuo a realidade, visualizando por exemplo maldade em ações nas quais ela não existe. e a desconfiança diante daquilo que se vive é sentimento corrosivo e sufocante, é pior que amígdala inchada e unha encravada ao mesmo tempo.
      escrevo, pois, para alcançar a praia, entrar no mar e debaixo d’água gritar até renascer, feito fênix, formando-me novamente um feto: sereno, confortável, amável, completo, em especial sem contato com o ar. porque o ar me faz provar um gosto de final, ele peca em excesso de seriedade e aqui fora sufoca e dificulta a mim inclusive o engolir a saliva – lugar onde o trauma faz morada também e alimenta a insegurança. e debaixo d’água tudo é mais bonito mais azul mais colorido: só nos falta respirar. 
      mas temos de respirar.
      e a escrita a mim é como um aparelho médico que auxilia esse processo automático – e portanto inconsciente, no entanto de tanta exigência – denominado respirar, é ela quem me conduz à tierra, ao mar, ao debaixo d’água, a um lugar por agora desconhecido, que me lembra de freud: não é nossa a casa onde moramos. e eu ainda não me tornei morada de mim mesmo, por enquanto, “porque faz tempo que eu já me fui, pois sempre estou partindo” e reconheço o erro em ansiar esse desejo, pois o vazio não apenas está em mim, ele me é, eu o sou. 
      logo, é importante aprender o exercício da resiliência, e para isso nesse momento eu vivo com o objetivo de não saber, ou seja, de desconhecer o que acontece ao meu entorno, uma vez que o ato de saber me causa temor, associado ao trauma de me sentir manipulado, usado e traído. assim, quando eu não vejo, não ouço e não sei, eu me defendo, e essa defesa não é do outro, mas de mim mesmo, do meu passado, de marcas ainda indeléveis, amenizadas quando entro no mar e escrevo. 

ítalo puccini