segunda-feira, 17 de agosto de 2009

sobre cartas e livros

      são duas palavrinhas das quais gosto muito. na verdade, pelo que elas significam, e não propriamente pela palavra (estrutura) em si. nesse último caso gosto, por exemplo, de noite e de nuvem. mas isso não vem ao caso agora. o que vem mesmo são as cartas e os livros. os objetos. recebi, na sexta, carta e livro da lorreine beatrice. e, na segunda, carta e livros do enzo potel. na verdade, na verdade, antes que eles me corrijam, não foram bem cartas, naquele sentido original, em que, num papel, conta-se um pouco de alguma coisa. não. mas os livros vieram pelo correio, em envelopes daqueles mais tradicionais, sabe, simplinhos, bonitinhos, o que para mim já significam cartas. abri-os como sendo cartas. e lá constavam os livros.
_ _ _ _ _ _ _
      da lorreine ganhei o “hai-kais em setembro”, um projeto chamado “palavras azuis”, organizado pela terezinha manezak, e feito pela editora “nova letra”, de blumenau. hai-kais de doze autores (todos de blumenau, pressuponho, pois no livro não há dados sobre eles, algo do que senti falta), incluindo a lorreine, que já tem livros publicados, como “aprendiz”, “relicário” (amo esse título, e o livro também é lindo), e outros infantis. ela não fez dedicatória no livro, que é bem pequeninho. escreveu num papel, que veio junto, bem assim: “oi, ítalo! Segue seu livro de hai-kais, conforme prometido. Abraço, lorreine beatrice, jul. 2009”. e a lorreine é dona de palavras assim também para mim: “para ítalo, que acredita na força das palavras – em cartas, contos e poemas – e na leveza delas”, palavras estas que estão como dedicatória de seu livro “relicário”.
      com a lorreine tenho uma experiência de troca de cartas e livros muito legal. desde dois mil e um, acho, ou dois. bem no comecinho do século mesmo. à época trocávamos muitas cartas. sempre falando sobre leituras, escritas, e coisas da vida que acompanham adolescentes (temos idades próximas, um ano de diferença, acho).
     são hai-kais muito bonitos os do livro, que inspiram imagens lindíssimas, como esta, por exemplo, “em primeiras e rés / o beija-flor maneiroso / na conquista da flor”, escrito pela débora novaes de castro. e tem outros mais, tão singelos, bonitos e inspiradores quanto: “o rio leva o galho / passeando de carona / vai um passarinho”, do tchello d’barros. e tem um da lorreine também, que é assim: "Gaivota rendeira / tricota horizonte azul / pausa no entardecer”.
_ _ _ _ _ _ _
      o enzo, pelo contrário, eu não conheço pessoalmente. tenho contato com ele via e-mail e blog, através do rubens da cunha. mas me parece ser, o enzo, um sujeito super bacana, parafraseando o caetano (gostas, enzo?). um cara espirituoso pra caramba, com quem trocar e-mails é rir gostosamente da vida.
___________a forma como chegaram os dois livros do enzo foi peculiar, como me parece ser ele. tava eu aqui na minha, em casa, segunda à tarde, chovendo fraquinho, sabe, uma delícia para estar... na cama, claro. pois não para mim. tava eu na mesa da copa, sentado numa cadeira super comum, no beiral da janela, para pegar a claridade lá de fora e não acender a lâmpada (ítalo também é conscientização ambiental). ah, sim, e eu tava lendo meus teóricos, sublinhando horrores meu livro, e já encucando futuros textos sobre a pesquisa que tô fazendo.
aí, eis que alguém, lá fora, óbvio, me toca o interfone. digo, a bosta do interfone. reconheço sua utilidade, mas assusta pra diacho aquele treco. que horror! dei um pulo da cadeira e, não fosse a casa toda aberta, janelas e portas, nem atenderia, só de raiva. mas sorte a minha que a casa estava assim aberta, pois era a vizinha, super atenciosa, que viera me informar que algumas correspondências estavam molhadas lá na caixinha de correio.
agradeci à vizinha, e corri à caixinha de correio. de fato, duas correspondências um pouco molhadas. uma era carta de banco pra minha mãe (!), e outra eram os dois livros do enzo, em envelope um pouquinho maior. por que o carteiro não tocou o interfone, me deu outro susto, e me entregou o envelope com os livros em mãos, ao invés de deixá-lo mal colocado lá fora, não sei. sorte minha de ter vizinha atenciosa como essa. pois, então, peguei os dois livros, consegui secá-los rapidamente, e feliz fiquei com isso.
_ _ _ _ _ _ _
sobre os livros, em primeiro lugar, amei as duas dedicatórias feitas pelo enzo. no “afeganistão”, primeiro livro dele, de 2005, ele escreveu assim: “ítalo, o começo de tudo. com carinho, enzo”, e assinou. no “cura”, o segundo livro, de 2007, tá assim “ítalo! o fim do começo! enzo”, e outra assinatura.
_________o enzo escreve poemas. maravilhosos poemas! de uma força muito própria, e encantadora. “afeganistão” é divido em três capítulos: 1º “feliz na ignorância!”, onde me deparei com poemas como “amélia”, que diz assim: “A Amélia pensou em tudo: / no potinho de pimenta do reino, / sal, canela e açúcar, / nos lixinhos da cozinha, / do escritório e do quarto de visitas... / - uma árvore da fortuna aqui, / um lírio da paz ali, / e as xícaras em fila indiana - / ... no sítio que podiam comprar / com o dinheiro da aposentadoria dos dois. / A Amélia pensou em tudo, / só não pensou que ia embora”. um soco. a vida. e também encontrei ali algo lindo como este verso, a ocupar toda uma folha: “eu gosto quando minha mãe se arruma, porque ela se arruma por dentro”. pronto, não é preciso mais nada.
depois, no 2º capítulo, chamado “Sim, então ISSO é Deus?”, há versos assim: “Afeganistão / / Afeganistão significa ‘o resto das coisas’. / o lugar em que Deus concentrou / tudo o que não coube nos outros / lugares do mundo. / / Já meu nome traduz-se ‘vida sem propósito’. / Ser com alguns talentos inaproveitáveis, / metido, e que mata todos os próprios sonhos, / porque não tem coragem de se matar”. para mim, são os versos que significam este livro e este autor. há, também, algo daquilo que um dia se fora: “Cadeira / / Sinto-me um galho morto / na beira de uma floresta seca, / cheio de liquens, / nu e inútil. / Eu, que outrora sustentei ninhos...”.
e, por fim, no 3º capítulo, intitulado “Novas e Cândidas”, há uma realidade, nua e crua: “Ontem de madrugada dois mendigos / dormiam na calçada da Só Colchões”. “Banho-Maria / / Nada de deixar certas pessoas em banho-maria, / atrasa meu almoço, gasta meu gás / e ocupa uma boca do fogão. / O que é bom dá pra comer gelado”.
________“Cura” é um livro belíssimo. não me refiro somente aos versos. há um cuidado de imagens e um tipo de papel que o torna ainda mais gostoso de lê-lo. é, como diz no texto de apresentação do livro, escrito pela ryana gabech, o que não mima, não cuida, e não adocica. e, apenas, o que remove as amarras e couraças do mundo.
“Cura” é também dividido em três capítulos: “cenários místicos”, “a morte”, e “o reencontro”. tem um sumário impecavelmente bem trabalhado. e versos ardidos assim, ó: “O índio é lindo / da cor da nossa terra / joga o índio no chão / que a gente pisa nele”. e assim também: “Orgulho / / Não há troca. / É uma exposição mútua / de tendas túmulos / presas / sal pérolas / sonhos secos / princípios. / / Pronto. / Eu não te mudei. / Você não me mudou. / Negócio fechado”.
há, claro, a morte: “A sete palmos / / Todos nós temos certas dores / que brilham durante a vida. / Uma fiel dor de estômago. / Uma perna que sempre paralisa. / Um câncer. / São todos os sentimentos / que para nosso próprio bem / fingimos que esquecemos / achamos que perdoamos / mas que crescem silenciosamente / dentro de nós. / Até que um dia / nos matam”. e, novamente, o soco da vida: “Amigo é uma veste, / uma moda de espírito. / E o futuro da moda / é a nudez”.
e aí é preciso parar. ou continuar? fiquei sem saber. precisei respirar antes. e voltei para levar mais: “Entreguei minha Vida / nas mãos de Deus / e ele estava fazendo as unhas”.
pronto, estava nocauteado. pois levantei-me, e li tudo de novo.
_ _ _ _ _ _ _
aqui ficaram, então, alguns resquícios disso tudo. a quem se interessar, basta entrar em contato com os dois, e receber deles singelas e fortes cartas assim. aos poucos me recupero, claro. é necessário.

ítalo puccini