No livro que mandou a mim, o poeta e cronista do Anexo Rubens da Cunha agradeceu minhas leituras sempre atentas para seus olhares sobre o mundo. Olhares tão bem registrados pelas palavras. Retratos da consciência, que em seus escritos Rubens demonstra ter, de ser um sujeito imerso numa realidade aprisionadora do próprio ser humano, da qual tenta ao máximo extrair algo que o alimente, que se junte aos alimentos diários da leitura e da escrita ou que sirva de alimento para um desses dois “vícios” que apresenta ter. O escritor de “Aço e Nada”, livro lançado pela Design Editora, de Jaraguá do Sul, é um sujeito dividido em diversos modos de ser/pensar/agir, presentes em diferentes crônicas-quase-contos do livro, que se complementam.
Para mim, e creio que para muitos outros leitores, são releituras a se fazer das crônicas presentes no livro. Ora mais densas, ora mais suaves, ora críticas, ora mais poéticas, ora mais objetivas em determinados assuntos, ora também quase-contos. Transbordando sensibilidade e poesia, as crônicas foram separadas no livro em quatro diferentes grupos: “Os Animais Dentro”, “Olho Vigiador”, “O Corpo da Gratidão”, “O Morador das Palavras”, que bem estariam encaixadas se não houvesse divisão, uma vez que a escrita do autor apresenta um traço muito bem caracterizado, sendo possível reconhecê-la a distância, encontrá-la, por exemplo, nos poemas-aço que formam sua “Casa de Paragens”: nos cômodos da sua casa-corpo, nos mínimos detalhes da natureza, e nos animais-moradores-de-seu-corpo: na dor corpórea da alma; na fragilidade de ser.
Um olhar sempre constante nas crônicas do livro (e também nos poemas do “Casa”) dirige-se aos animais. Estão eles dentro do escritor Rubens, ao redor, nos olhares, nos sonhos, na memória: “São imagens recorrentes, já que ainda não descobri elemento mais poético na natureza e mais propício às buscas metafóricas que pratico”. As crônicas de “Os Animais Dentro” trazem um pouco dessa relação, além de apresentarem ao leitor outros modos de ser animal, com o ser humano e suas formas de pensar, sentir e agir.
Nas crônicas de “Olho Vigiador”, Rubens expõe seus olhares atentos para os habitantes e para a sua, até o momento, casa de paragem, cidade na qual nasceu e em que vive, por onde o Rubens cronista busca o assunto para suas crônicas semanais. O corpo da gratidão é a mãe, é a noite, é um poço de contrários, “é uma inutilidade feita apenas para aguentar o peso do mundo: um poema perdido entre os cadernos; flores nos beirais das casas; fotografias”. É o fluxo inexorável do cotidiano, passando por cima do tempo e do espaço, de amizades antes fortalecidas; é o sentir que animaliza o humano; é a natureza, recoberta de poesia, que, “sem avisar, põe sobre a cidade um lençol branco”.
Rubens da Cunha é o escritor morador da palavra exílio (ou seria apenas mais um dos personagens marcantes no livro?). Escritor por prazer e por sentir o sangue correr em seus abismos. Escritor pela dor: “O papel me dá seus ouvidos e demais buracos gratuitamente. O papel é uma prostituta apaixonada. Escrevo para gozar e porque tenho bom vocabulário”. Pelo poder de ser escritor, pelas máscaras que colocam sob os escritores. Escritor por maldade, por instinto, por covardia, por alegria, “por estar preso nesse cárcere e porque aprendi a mentir desde cedo”. A escrita de Rubens nos leva a desejar mais mentirosos assim.
Ítalo Puccini
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Texto publicado no caderno Idéias do jornal A Notícia de domingo (10-02) e na Germina Literatura.