quarta-feira, 21 de abril de 2010

uma editora que não é uma editora...

       dois livros que se propõem a ser mais do que dois livros.
      Há tempo já, fins do ano passado, li dois livros de uma editora nova no mercado de livros. Uma editora contraditória em seu nome: “Não Editora”. Isto mesmo, o nome da editora é “Não Editora”. E ainda, na primeira página de cada livro editado, há a frase “Isto não é uma editora”, com as palavras “não” e “editora” em fontes maiores.
      Enfim, uma contradição proposital, é claro, cujo significado não consegui entender. O que não interferiu em nada, é verdade, nas leituras que fiz. Depois é que me caiu a ficha de buscar no google algo sobre este nome, e encontrei o seguinte texto (os negritos não são meus):
Isto não é uma editora. É um gatilho. É um rádio-relógio. É um ônibus espacial.
Tudo começou com o cachimbo. O cachimbo de Magritte na obra A traição das imagens. Na tela, o desenho de um cachimbo com a inscrição em francês: “Isto não é um cachimbo”. E, oras, não era mesmo. Era a imagem de um cachimbo.
Somos traídos pelas imagens todos os dias. Quando nos apaixonamos não caímos de amores pela pessoa, mas pelos pedaços de nós mesmos que encontramos nela. Quando essa identificação passa e começamos a perceber nossas diferenças com o ser amado, dói. Mas quando o relacionamento amadurece, percebemos que amamos também o que faz dessa pessoa um ser único.
A Não Editora quer que seus leitores sejam traídos. Que eles se apaixonem por um pedaço de si mesmos que viram em nossos livros ou personagens. Que se identifiquem com a editora, imaginando que ela é como qualquer outra que viram antes. E, depois, percebam o autoengano. Para começarem a ver, aqui e ali, as diferenças em nossas publicações e no visual de nossos livros. Incorporando, também em suas vidas, a fuga do que é estanque, dos conceitos pré-estabelecidos e da fórmula repetitiva.
Assim como a tela é a manifestação do pintor, que contém os seus pensamentos e contestações, o livro deve ser um meio para os escritores e suas obras. Por isso, valorizamos o design de nossos livros, fazendo com que eles reflitam a qualidade do texto que estamos oferecendo aos leitores. Queremos que o nosso público não tenha vergonha de assumir que julga o livro pela capa. E por que não?
Isto não é uma editora. É o disparo. É o despertar. É o empuxo". (aqui: http://www.naoeditora.com.br/)_____
      Taí, então, o porquê de tal nome. Uma nova editora, com uma ideia, digamos, original. Dando a cara a tapa. Ao menos não será mais uma editora de best-sellers ou livros de auto-ajuda, o que já é grandiosíssima coisa.
      O fato é que os dois livros que li, de um total de poucos já lançados por esta Não Editora (13, segundo o catálogo deles no site), são muito bem escritos. São propostas de texto contemporâneo mesmo, um texto meio sem começo nem meio nem fim, mas que pega o leitor de jeito nessa falta de parâmetro. Uma falta tão proposital quanto do nome da editora, penso.
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       O primeiro que li, “Pó de parede”, de uma escritora porto-alegrense, Carol Bensimon, é um livro pra lá de bom em se tratando de livro de estreia de um autor. E não só por ser livro de estreia desta novata (em idade também, uma vez que nasceu em 1982) escritora que o livro é bom, não. É bom porque é bem escrito, porque a narrativa é conduzida com precisão, e porque o leitor se sente atraído pela(s) história(s). É quando a narrativa conduz a relação livro-leitor mesmo.
      São três histórias que compõem “Pó de parede”: “A caixa”, “Falta céu” e “Capitão Capivara”. Três histórias com quase nada em comum. Três histórias com personagens muito diferentes uns dos outros, com situações vividas também muito diferentes, mas com um ponto em comum: a moradia. A questão do lar, da estrutura familiar, é muito bem escancarada nas três histórias. Daí eu associo ao nome do livro. O pó que fica de cada parede de cada divisória de cada casa. O pó que fica de cada relação (des)construída.
      Um livro de histórias curtas e precisas. Histórias densas e que chegam até a incomodar. Mas a literatura é isso também, sim, um incômodo, algo que desestrutura o leitor. A narrativa de Carol Bensimon leva a isto. Ao menos me levou.
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      O outro livro que li tem por nome “Areia nos dentes”, do escritor Antônio Xerxenesky. Um romance curto. Quase um conto, mas não um conto. Durante a leitura, lembrei-me da Regininha e do Cormac McCarthy, uma vez que o texto se passa no velho oeste, no caso específico, a fronteira dos EUA com o México, em fins do século 19, envolvendo amor, morte, tiros e zumbis. Uma declaração do próprio Xerxenesky leva a entender isto: “Somente depois de ler Cormac McCarthy que vi que era possível uma literatura que rompesse a obviedade e as limitações de trabalhar-se com o gênero faroeste. A mescla com o horror (no caso, os filmes de zumbis) também veio por meio dessas paixões naturais”.
      Um faroeste. Uma escrita entre-cortada. Feita de brechas. Uma leitura idem.
    “Areia nos dentes” pode ser a história da busca de um pai para vingar a morte de seu filho (assassinato), como pode ser também a história de zumbis habitando uma localidade pequena. Algo próximo à ideia de estratégias narrativas sinalizadas por Piglia, de uma história de frente e uma de fundo. O texto propondo ao leitor leituras várias. O livro que instiga, que prova a inteligência do leitor.

Ítalo puccini