quinta-feira, 16 de novembro de 2023
de tudo se faz canção
domingo, 4 de junho de 2023
breves notas de um ensaio para o futuro
meu sobrinho de 3 anos, quando chamava o avô dele, meu pai, assim dizia: vovô vê o mar. e abriam os dois um sorriso largo e feliz, joaquim e vovô vilmar.
o pai morou na praia de itaguaçu por cinco anos, sendo a maior satisfação dele o fato de diariamente ver de perto o mar.
naquele mar, semanas atrás, eu joguei um pouco das cinzas do pai, numa tarde nublada e chuvosa de um domingo. também num domingo chuvoso e nublado, mas em urussanga, espalhei um outro pouco das suas cinzas na árvore em frente à casa da minha avó paterna, onde o pai brincava nas férias escolares na infância. em ambos os momentos, tive a sensação de que ele estava lá comigo, feliz.
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nada disso desfaz da morte o absurdo.
lembro-me diariamente do título que rosa monteiro deu ao livro "a ridícula ideia de nunca mais te ver", escrito por ela após 1) perder o marido com quem vivera por mais de vinte anos 2) conhecer o diário que marie curie escreveu durante o primeiro ano da perda do seu amado, pierre. e em toda sessão de análise, nos últimos dois meses, repito não haver nada mais absurdo e ridículo que a morte e a impossibilidade de conversar com quem não está mais aqui vivo.
num trecho, escreve assim rosa monteiro: “A ideia simplesmente não entra na sua cabeça. Como é possível que não esteja mais? Aquela pessoa que ocupava tanto espaço no mundo, onde foi que se meteu? O cérebro não consegue entender que tenha desaparecido para sempre. E que diabos é sempre? É um conceito anti-humano. Quero dizer, que foge à nossa possibilidade de entendimento. Como assim não vou vê-lo nunca mais? Nem hoje, nem amanhã, nem depois, nem daqui a um ano? É uma realidade inconcebível que a mente rejeita: não vou vê-lo nunca mais é uma piada sem graça, uma ideia ridícula.”
hoje se completam dois meses da morte do pai. parece que faz cinco anos. a falta diária se veste de eternidade. paola denomina esse sentimento como perda existencial: não existe mais a mesma vida de antes a partir do momento em que se é órfão de um pai ou de uma mãe.
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eu me lembro de quando li pela primeira vez "as intermitências da morte", do saramago, há mais ou menos quinze anos. nunca mais perdi o encanto de imaginar a morte se apaixonando e por isso deixando de matar. à época, inclusive, escrevi um conto intitulado "apaixonar-se é adiar a própria morte". gosto desse título até hoje.
ondjaki escreveu recentemente, na revista 451, que a morte é um lugar estranho. pois prefiro ainda a palavra escolhida por rosa monteiro.
sinto que escrever não é suficiente - apesar de teimar nisto - mas sim apenas um sublimar paliativo.
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o maior prazer que meu pai sentia quando internado e ainda lúcido era beber uma água bem gelada. ele nos exigia buscarmos no corredor água gelada, mesmo havendo no quarto uma jarra recém-trazida de água fresca. e a cada gole ele fazia um "aaah" de plena satisfação. foi, imagino, sua última alegria na vida. talvez uma das.
no seu último sábado vivido, à noite liguei no celular o jogo do flamengo e posicionei o aparelho de modo a nós dois assistirmos. já fazia dois ou três dias que o pai não respondia mais com lucidez às intervenções externas, mas eu o vi nitidamente sorrir quando o fla fez um gol e eu disse, erguendo firme a mão dele: pai, gol do mengo, um a zero pra nós. sua última lembrança rubro-negra foi uma vitória, disso tenho certeza.
há poucos dias, o mengo venceu novamente o flu, eliminando-o e passando de fase na copa do brasil. volto à rosa monteiro e penso: como assim não posso enviar uma mensagem a meu pai para comemorarmos juntos essa classificação?
é ridícula a morte.
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a imagem mais marcante que guardo nas retinas de mim é o respirar lento de meu pai nas últimas horas de vida. era eu quem estava ao lado dele, no quarto do hospital, naquela tarde e noite de terça-feira. eu via o peito dele subir e descer de maneira gradativamente mais lenta. foi escolha médica a indução de um respirar menos sofrido ao pai. eu e fran concordamos com esse conforto a ele, mesmo que lhe significasse o apagar mental antes de efetivamente parar de respirar. não me lembro dessa imagem de forma trágica. também não encontro alegria nela. eu me sentia vendo de perto a inevitabilidade da morte quando não apaixonada.
ainda não sei o que fazer com a lembrança do momento em que coloquei a mão no peito dele e...
não existe despedida que ampare a morte de um pai.
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nas semanas seguintes ao falecimento do pai, canalizei meu luto numa compulsão por doces. transitei por padarias, especialmente nas quais estive com ele. eram encontros frequentes que nós tínhamos e dos quais muito gostávamos: um café, um salgado, mais um café, um doce, um suco de laranja, outro doce, talvez um último cafezinho. lembro-me do nosso último café. e do último cigarro que ele fumou.
sempre pensei na morte de meu pai. desde a infância vivi o medo de perdê-lo, especialmente para o cigarro ou a bebida. e nas minhas sessões de análise entendo o quanto esse pensamento representava uma morte simbólica de um medo meu de repetir meu pai. eu quero encontrar uma maneira de viver com autoria minha própria vida. e por consequência contradizer belchior: não necessariamente seremos os mesmos a vivermos como nossos pais.
quando eu tinha dez anos, meu pai colocou pra tocar o álbum "vício elegante", do belchior. tenho até hoje esse cd de capa azul e essa marca de nascença.
nas sessões de análise, pois, percebo que pela morte de meu pai posso agora fazer fluir de dentro de mim uma represa chamada filho.
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ítalo puccini
terça-feira, 14 de fevereiro de 2023
ser tão mar
e o conto de clarice começa com: "Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões."
entrega feita com coragem, palavra à qual clarice chega no decorrer dessa narrativa: "A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem."
nos últimos anos, tenho ido com frequência a itaguaçu. e quando nas sessões de análise também me desloco em memória para lá. naquele mar eu construí, a partir da solidão, meu ideal de mim mesmo. era eu o eu lírico de "dois barcos", do marcelo camelo: sobre estar só eu sabia no mar aonde eu ia. e para transformar o ideal do eu em meu eu ideal - um palíndromo psicanalítico - escolhi uma sequência de praias nos últimos meses do ano passado e em direção a elas fui, sozinho, acessando lembranças de quando eu ia visitar o pai em itaguaçu e assim sozinho me sentia. deslocar-me pela solidão, no meu caso, implica ressignificar as ondas de mar que formam as rugas do meu rosto. sinto-me mais próximo de rodrigo, o narrador de "a hora da estrela": "isso será coragem minha, a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis".
não preciso mais ser santiago, o personagem do hemingway em “o velho e o mar”, que aceitou a solidão como essência de vida e especialmente a materializou durante os 84 dias nos quais nada pescou. santiago lutou sozinho, com sucesso, para pescar um peixe de tamanho descomunal e depois, sem sucesso, para evitar que tubarões atacassem a presa. foi e voltou desacompanhado de outros humanos, mas não sem estabelecer conversas consigo mesmo e com os animais marinhos que cercavam o barco. lembro-me de sentir em santiago uma companhia na minha adolescência: minha solidão-leitora acompanhava-lhe a solidão-marítima e a paciência diante das frustrações diárias.
não sei se rubel compôs a canção homônima ao livro de hemingway pensando em santiago, mas ao cantar "e se perder / calma" o poeta parece descrever o personagem. e me ensina a como agir diante das perdas.
inclusive aprendi a escolher perder, às vezes. afinal, a vida não é sobre justiças. e são tantos os fantasmas que nós criamos.
"perdido a me perder mar adentro" cantam o vitor ramil e o jorge drexler, em “viajei”. exatamente como me sinto nos últimos meses, aprendendo a perder - um duro exercício, segundo a rosane, com quem compartilhei leituras que fiz de versos da bishop e do drummond sobre o perder: para o poeta mineiro, "Amar o perdido / deixa confundido / este coração", enquanto a poetisa norte-americana reitera três vezes que "A arte de perder não é nenhum mistério".
mas a mim sempre foi. a solidão me era uma derrota. que por mecanismo de defesa eu transformei em uma forma de vitória e arrogância - e nessa condição perder sempre é mais doloroso. e me lembro de que eu me dirigia para a frente do mar tentando entender o motivo da minha sensação de desamparo. "o mar [que] promete terra seca ao viajante exausto", cantado por ramil em "tierra" era o lugar onde eu acreditava ser capaz de preencher o meu vazio perdido e onde eu também fiz todo o meu pranto, parafraseando o teago oliveira.
no ano passado, então, cantando belchior, eu morri. e, angustiado em uma crise existencial, o mar foi o lugar para o qual me dirigi, por sugestão da josi, que me disse "vá ao mar para se curar e se libertar". fui, não sem receio: olhava enviesado para aquele infinito. fingia não vê-lo. desviava do som dele. mesmo assim eu estava lá: no farol de santa marta, nas praias de laguna, na guarda do embaú, na praia do rosa, no campeche e, claro, em itaguaçu. lugares sugeridos por fox, com quem inclusive ainda vou percorrer de moto algumas praias da ilha de santa catarina em um final de semana qualquer adiante.
aliás, se eu pudesse mudar de nome por um tempo, escolheria ser chamado de itamar. não somente por admirar o autor de "torto arado", mas porque este ensaio nasceu em mim nos últimos meses, momento em que as ondas habitaram minhas memórias e ecoaram essas sílabas: ita e mar.
ser tão mar.
não literalmente o sertão que vira mar como na canção "sobradinho", de sá e guarabira, mas metaforicamente sim: o medo que dá no coração de um dia me virar apenas sertão. o mar na minha história adulta de vida eu quero que se torne plural, pela liberdade. tal qual a personagem de clarice, que tomou o mar por dentro e nele caminhou. ela ganhou a liberdade na amplidão cantada por bethânia em “o quereres” de caetano. ela foi pela imensidão do mar e o abraçou na lua cheia.
tenho certeza de que essa personagem anônima é a própria bethânia.
eu ainda não aprendi a abraçar o mar na lua cheia, nem fui por sua imensidão ou amplidão. sinto que vou entrar verdadeiramente nesses versos quando começar a nadar no mar. inclusive, meu primo cadu tem nadado no mar de canto grande, em bombinhas, e a qualquer dia vou até lá conversar com ele entre braçadas e respiradas, deslocando a solidão, pelo afeto, no mar.
experiência também vivida pelo personagem palomar, do meu xará calvino, que pratica sua natação vespertina: "Entra na água, afasta-se da praia, e o reflexo do sol se torna uma espada cintilante na água que do horizonte se prolonga até ele". o mesmo palomar que por vezes para diante do mar e tenta fazer a leitura de uma onda, enfrentando toda a complexidade que essa tarefa implica, para quem sabe poder cantar no mesmo tom que jobim: "agora eu já sei / da onda que se ergueu no mar". e palomar assim age porque "tende a reduzir suas próprias relações com o mundo externo e para defender-se da neurastenia geral procura manter tanto quanto pode suas sensações sob controle".
o resto é mar, palomar. e é impossível ser feliz sozinho.
por isso, inclusive, convido a quem teve fôlego de chegar até aqui para juntos nadarmos em mares versados em memória e afeto e melodias.
bom mergulho a nós: