domingo, 5 de janeiro de 2025

a casa do caralho


        não é o que você talvez esteja pensando. 
        isto porque toda frase, quando tirada de contexto, ganha em potência o impacto mas perde em clareza seus possíveis significados.
        por exemplo: se dissermos hoje em dia a alguém “vá pra casa do caralho” provavelmente seremos consideradas pessoas grosseiras e desrespeitosas. quiçá até receberemos outra agressão como resposta. contudo, se estivéssemos em uma embarcação portuguesa em séculos anteriores e nela nos comportássemos mal seríamos enviados para a casa do caralho sem que isso se tornasse uma ofensa e sim uma punição. era, pois, um castigo ter de ir à casa do caralho, visto que lá havia muita instabilidade e consequentemente gerava enjoos nas vítimas. 
        senta que lá vem história. ou lenda.
        a interpretação de um texto e suas possíveis dúvidas ou conclusões, como se sabe, é inteiramente de quem o lê.
        pois bem, estávamos eu e paola em rodeio na virada de ano - a pequena cidade catarinense no médio vale do itajaí fundada em finais do século xix por imigrantes italianos, não aquela festa tipicamente desrespeitosa aos direitos animais. queríamos visitar os amigos cristiano e patrícia e jackson e conhecer a hospedaria “quinta da gávea” e a oficina e museu e editora tipográfica “papel do mato”, tão bem idealizadas e cuidadas pelos três há cerca de uma década. esse denominado “jardim criativo” fica no alto de um morro em rodeio e por lá passamos quatro dias em companhia de animais humanos e mais que humanos e em meio a um riacho cercado de mata - merece destaque aqui a gatinha tecla, a dona da bibliotecla rural, onde também há uma mesa de sinuca na qual tacamos felizardamente todos os dias. e, como temos pensado em lançar futuramente um livro artesanal, composto por poemas e ilustrações, aproveitamos essa estadia para conhecer um pouco mais do processo tipográfico de edição livresca, um trabalho minuciosamente cuidadoso no qual cada letra é escolhida de maneira singular e as páginas dão materialidade às palavras. 
        em meio a esse contexto e ao clima de férias dos nossos dias recentes, quando abrimos espaço mental para divagações, tivemos a dúvida quanto ao significado da escolha nominal “quinta da gávea” - já que “papel do mato” nos pareceu mais fácil de compreender: impressão artesanal de livros em uma tipografia localizada em um quintal-floresta. e cristiano e patrícia então nos explicaram que a palavra quinta é como os portugueses chamam suas propriedades rurais, enquanto gávea é o bairro no qual fica a hospedaria em rodeio - e essa nomeação citadina se deve a uma presença massiva de torcedores flamenguistas entre os moradores do local, fato que comprovamos ao adentrarmos a cidade pela via principal onde em várias residências percebemos bandeiras e flâmulas em vermelho e preto. é como diz um dos cânticos da torcida rubro-negra: onde estiver, estarei, oh meu mengo. 
        mas gávea também tem outro significado, conforme nos falou cristiano: é a parte mais alta de uma embarcação a vela, de onde marinheiros podem avistar horizontes. ainda, segundo o dicionário oxford, gávea é o mastaréu acima do mastro grande, onde são colocados os cestos, ou seja, as armações redondas nas quais ficam os vigias a observarem o mar em todas as direções possíveis. por esse motivo, descobrimos depois que, no rio de janeiro, ao contrário da ousadia dos moradores rodeenses, o nome do bairro gávea se deve justamente a uma semelhança que os marinheiros viam entre a pedra de 850 metros de altura, a nortear as navegações à época, e a parte mais alta dos mastros dos navios de então. o detalhe curioso desse fato é que a pedra da gávea fica no bairro de são conrado, vizinho ao bairro homônimo à rocha, e o motivo disso eu não sei e vou procurar saber talvez somente numa próxima visita à cidade carioca. 
        porque o interesse nesta croniqueta é não perdemos de vista a casa do caralho. 
        como eu e paola estamos pensando em versar sobre a quinta da gávea, quando voltamos de nossa estadia por lá comecei a ler mais sobre a palavra gávea, tentando visualizar melhor um possível entendimento a respeito desse pedaço de madeira tão importante nas embarcações, especialmente de outrora, cuja tecnologia marítima ainda não alcançava os recursos atuais. e assim descobri em alguns textos que gávea tem como sinônimo português a palavra caralho, logo, se a gávea é o cesto da parte mais alta do mastro de uma embarcação a vela esse local também pode ser chamado de caralho, para onde justamente eram enviados marinheiros que não se comportavam durante uma viagem, pois, dada sua altura, aquele lugar provocava bastante incômodo e de lá os castigados desciam mais comportados porque enjoados.
        tal descoberta me deixou tão entusiasmado quanto um navegador se sentia quando de uma gávea ou de um caralho - a escolha, vale lembrar, é sempre de quem lê - avistava novas terras, afinal um novo saber é também um novo lugar. de modo que no dia seguinte, entre amigos e à beira de uma piscina, compartilhei esse conhecimento e recebi do tiago uma provocação típica de quem sabe ser leitor: quando é que vamos poder ler sobre toda essa história? pois a resposta é esta croniqueta, dedicada a todos nós que fazemos da curiosidade um motivo a mais para compartilharmos vivências.
        mesmo que estas não sejam necessariamente verdadeiras - e aqui faço deste parágrafo um apêndice, isto é: podemos viver com ou sem, tanto faz, só é importante cuidarmos para não haver infecção generalizada. o fato adicional se deu quando, rodeado de leituras sobre todos esses nomes, descobri a possibilidade de essa associação gávea-caralho ser na verdade uma falácia lenda ou fake news, a depender do termo que queiramos usar. isto porque há um estudo mostrando etimologicamente a existência da palavra caralho já em documentos clericais e em cantigas trovadorescas dos séculos x e xi, com uma conotação referente àquela popularmente conhecida até hoje, ou seja, mais um possível sinônimo para o órgão sexual masculino. basicamente: a casa do caralho não fica em alto-mar. ou: antes do cesto no alto de um mastro já existia o caralho, cujo significado inicial supostamente faz referência a um pau ou estaca de madeira, mas não exatamente a uma embarcação marítima. inclusive, as expressões “possibilidade”, “possível” e “supostamente” poderiam aqui receber aspas porque não há consenso sobre a etimologia do caralho, motivo pelo qual acredito que possamos fazer dele o que quisermos, até mesmo uma croniqueta.

ítalo puccini

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

ecofeminismo sem vírgulas

biblioteca comunitária lutador dito

há um ano lançamos
de curitiba ao rio de janeiro
de joinville ao mundo
objetos perigosos
e

todo cuidado é desnecessário 

quarta-feira, 15 de maio de 2024

quinta-feira, 14 de março de 2024

o homem que amava caixas

    sou eu. também. tal como o pai que constrói caixas para brincar com o filho e assim consegue demonstrar a este que o ama, história contada por stephen michael king no livro homônimo a esta croniqueta. 
    o amor por gestos quando não se consegue por palavras.
    e gatos e gatas são gestos: caminham se deitam se banham comem e bebem urinam e defecam correm e saltam se esfregam se alongam. um recital poético gestual. é um tango, diz paola, enquanto admiramos o bailar corpóreo de baden e guima e dudu e mima. 
    porque agora vivemos assim: uma criança duas pessoas adultas e quatro felines.
    o oi matinal é quase uma peregrinação. 
    como imaginávamos, dudu e guima estão muito próximos: passam a maior parte do tempo na sala ocupando tapetes e pufes e sofás. são os dois mais atentos aos movimentos do lar e os mais sociáveis inclusive diariamente dando seus rolês pelo corredor do andar; enquanto baden e mima se aproximam pelo incômodo que sentem diante de qualquer estranheza sonora, motivo pelo qual costumam estar juntos embaixo de móveis e camas, refugiando-se na própria paz felina. 
    quando o amor humano envolve animais, rapidamente é possível que o número destes seja superior: por décadas eu neguei ter gato ou gata, alegando rinite; depois cogitei apenas um ou uma, especialmente influenciado por minha mãe, que adotou o nino, um fofoquerido; e há dois anos foi ela quem me convenceu a trazer para minha vida um par de manos, devidamente cronicados aqui. agora dois se tornaram quatro. e se tudo der certo em breve serão oito etc.
    assim como oito poderiam ser as caixas espalhadas pelo apartamento. mas me contento com três ou quatro, basicamente uma para cada feline. a conta não fecha com exatidão porque a mima não se aventura nessas estripulias, sendo raríssimo o momento em que ela entra em uma. ao contrário dos três meninos, que se jogam dentro das caixas e as reviram como podem incluindo as de ovo. 
    e, tal qual o homem lá do título, pelas caixas eu demonstro e sinto meu amor felino. mas sem desconsiderar as palavras. e os beijinhos e amassos e cuticuti etc que toda relação saudável envolve. 
    eu me vejo também nos versos cantados por lô borges em “como o machado”: “aprendi a ser como o meu gato / que descansa com os olhos abertos”. tenho tentado isso. tenho também folheado livros à procura de poemas sobre felines. com certeza o melhor fazer nada do meu dia. e quero aprender a dormir ainda mais o máximo de tempo possível. bocejar alongar e dormir de novo. narcolepsia. correr um pouco mas sem grandes esforços. brincar. 
    espalhar a vida pela casa.
    embaixo do sofá e da geladeira inclusive reside o inconsciente coletivo felino. de bolinhas barulhentas pelúcias e pedaços de caixas. porque também são territorialistas gatos e gatas mas sem patriotismo. outro exemplo de superioridade felina. por gestos, sem palavras. 

ítalo puccini

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

de tudo se faz canção





as vírgulas estão lançadas
em livro no qual propositalmente não há vírgulas somente pontos finais de modo que o ritmo de leitura seja definido por quem lê. 
barthes gostaria disso. 
de orelha escrita por tiago importante incentivador da ideia de que as narrativas tramadas em versos musicais compusessem um livro essa obra integra a coleção ficções avulsas da editora medusa de ricardo e eliana ele poeta ela artista plástica também entusiastas dessas vírgulas já divulgadas em pato branco e curitiba cujo próximo lançamento será em jaraguá do sul no macuco em dezembro. 
meu agradecimento especial aos três assim como aos leitores e às leitoras que farão nascer novos textos a cada novas leituras.

ítalo puccini

domingo, 4 de junho de 2023

breves notas de um ensaio para o futuro

meu sobrinho de 3 anos, quando chamava o avô dele, meu pai, assim dizia: vovô vê o mar. e abriam os dois um sorriso largo e feliz, joaquim e vovô vilmar.


o pai morou na praia de itaguaçu por cinco anos, sendo a maior satisfação dele o fato de diariamente ver de perto o mar.

naquele mar, semanas atrás, eu joguei um pouco das cinzas do pai, numa tarde nublada e chuvosa de um domingo. também num domingo chuvoso e nublado, mas em urussanga, espalhei um outro pouco das suas cinzas na árvore em frente à casa da minha avó paterna, onde o pai brincava nas férias escolares na infância. em ambos os momentos, tive a sensação de que ele estava lá comigo, feliz.

*

nada disso desfaz da morte o absurdo.

lembro-me diariamente do título que rosa monteiro deu ao livro "a ridícula ideia de nunca mais te ver", escrito por ela após 1) perder o marido com quem vivera por mais de vinte anos 2) conhecer o diário que marie curie escreveu durante o primeiro ano da perda do seu amado, pierre. e em toda sessão de análise, nos últimos dois meses, repito não haver nada mais absurdo e ridículo que a morte e a impossibilidade de conversar com quem não está mais aqui vivo.

num trecho, escreve assim rosa monteiro: “A ideia simplesmente não entra na sua cabeça. Como é possível que não esteja mais? Aquela pessoa que ocupava tanto espaço no mundo, onde foi que se meteu? O cérebro não consegue entender que tenha desaparecido para sempre. E que diabos é sempre? É um conceito anti-humano. Quero dizer, que foge à nossa possibilidade de entendimento. Como assim não vou vê-lo nunca mais? Nem hoje, nem amanhã, nem depois, nem daqui a um ano? É uma realidade inconcebível que a mente rejeita: não vou vê-lo nunca mais é uma piada sem graça, uma ideia ridícula.”


hoje se completam dois meses da morte do pai. parece que faz cinco anos. a falta diária se veste de eternidade. paola denomina esse sentimento como perda existencial: não existe mais a mesma vida de antes a partir do momento em que se é órfão de um pai ou de uma mãe.

*

eu me lembro de quando li pela primeira vez "as intermitências da morte", do saramago, há mais ou menos quinze anos. nunca mais perdi o encanto de imaginar a morte se apaixonando e por isso deixando de matar. à época, inclusive, escrevi um conto intitulado "apaixonar-se é adiar a própria morte". gosto desse título até hoje. 

ondjaki escreveu recentemente, na revista 451, que a morte é um lugar estranho. pois prefiro ainda a palavra escolhida por rosa monteiro.

sinto que escrever não é suficiente - apesar de teimar nisto - mas sim apenas um sublimar paliativo.

*

o maior prazer que meu pai sentia quando internado e ainda lúcido era beber uma água bem gelada. ele nos exigia buscarmos no corredor água gelada, mesmo havendo no quarto uma jarra recém-trazida de água fresca. e a cada gole ele fazia um "aaah" de plena satisfação. foi, imagino, sua última alegria na vida. talvez uma das.

no seu último sábado vivido, à noite liguei no celular o jogo do flamengo e posicionei o aparelho de modo a nós dois assistirmos. já fazia dois ou três dias que o pai não respondia mais com lucidez às intervenções externas, mas eu o vi nitidamente sorrir quando o fla fez um gol e eu disse, erguendo firme a mão dele: pai, gol do mengo, um a zero pra nós. sua última lembrança rubro-negra foi uma vitória, disso tenho certeza.

há poucos dias, o mengo venceu novamente o flu, eliminando-o e passando de fase na copa do brasil. volto à rosa monteiro e penso: como assim não posso enviar uma mensagem a meu pai para comemorarmos juntos essa classificação?

é ridícula a morte.


*

a imagem mais marcante que guardo nas retinas de mim é o respirar lento de meu pai nas últimas horas de vida. era eu quem estava ao lado dele, no quarto do hospital, naquela tarde e noite de terça-feira. eu via o peito dele subir e descer de maneira gradativamente mais lenta. foi escolha médica a indução de um respirar menos sofrido ao pai. eu e fran concordamos com esse conforto a ele, mesmo que lhe significasse o apagar mental antes de efetivamente parar de respirar. não me lembro dessa imagem de forma trágica. também não encontro alegria nela. eu me sentia vendo de perto a inevitabilidade da morte quando não apaixonada.

ainda não sei o que fazer com a lembrança do momento em que coloquei a mão no peito dele e...

não existe despedida que ampare a morte de um pai.

*

nas semanas seguintes ao falecimento do pai, canalizei meu luto numa compulsão por doces. transitei por padarias, especialmente nas quais estive com ele. eram encontros frequentes que nós tínhamos e dos quais muito gostávamos: um café, um salgado, mais um café, um doce, um suco de laranja, outro doce, talvez um último cafezinho. lembro-me do nosso último café. e do último cigarro que ele fumou.

sempre pensei na morte de meu pai. desde a infância vivi o medo de perdê-lo, especialmente para o cigarro ou a bebida. e nas minhas sessões de análise entendo o quanto esse pensamento representava uma morte simbólica de um medo meu de repetir meu pai. eu quero encontrar uma maneira de viver com autoria minha própria vida. e por consequência contradizer belchior: não necessariamente seremos os mesmos a vivermos como nossos pais. 

quando eu tinha dez anos, meu pai colocou pra tocar o álbum "vício elegante", do belchior. tenho até hoje esse cd de capa azul e essa marca de nascença.


nas sessões de análise, pois, percebo que pela morte de meu pai posso agora fazer fluir de dentro de  mim uma represa chamada filho.

*

ítalo puccini


terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

ser tão mar

        



            minhas férias de verão eram na praia de itaguaçu. sessenta dias de mar. e durante os outros meses também íamos para lá, em algum final de semana, feriado ou recesso escolar. o pai morou em itaguaçu por alguns anos, e em minha memória eu guardei inclusive dias nublados e chuvosos. foi quando aprendi na infância a escutar aquela curva de água explodindo na própria água: a metalinguagem marítima. por isso o mar de um vendaval e de uma chuva sempre me encantou mais do que uma enseada de água salgada - mas nesta o nado faz mais sentido, parece-me.
        de todo modo, todo mar requer coragem. para ver tocar entrar tornar-se um. coragem da personagem mulher do conto "as águas do mundo", da clarice, de que paola me lembrou após eu enviar a ela bethânia cantando "e eu que não sei quase nada do mar / descobri que não sei nada de mim" - versos que moraram aqui durante todo um dia e a levaram a esse conto e a mim a este ensaio.
            e o conto de clarice começa com: "Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões."
            entrega feita com coragem, palavra à qual clarice chega no decorrer dessa narrativa: "A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem."
           entendi, clarice. por mais que seja para senti-la, eu a entendi. quando meu não saber me deslocou para o mar. tanto que este texto eu nasci há alguns meses para encarar esse medo: aprender a desver o mar gravado na retina da minha infância e criar uma nova cartografia dele em mim. incentivado por josi, que me propôs dois aprendizados - do deslocamento do mar e da escrita - a partir de um novo caminho geográfico do mar que eu navego, não mais do mar que me navega. ok, paulinho?
            nos últimos anos, tenho ido com frequência a itaguaçu. e quando nas sessões de análise também me desloco em memória para lá. naquele mar eu construí, a partir da solidão, meu ideal de mim mesmo. era eu o eu lírico de "dois barcos", do marcelo camelo: sobre estar só eu sabia no mar aonde eu ia. e para transformar o ideal do eu em meu eu ideal - um palíndromo psicanalítico - escolhi uma sequência de praias nos últimos meses do ano passado e em direção a elas fui, sozinho, acessando lembranças de quando eu ia visitar o pai em itaguaçu e assim sozinho me sentia. deslocar-me pela solidão, no meu caso, implica ressignificar as ondas de mar que formam as rugas do meu rosto. sinto-me mais próximo de rodrigo, o narrador de "a hora da estrela": "isso será coragem minha, a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis".
            não preciso mais ser santiago, o personagem do hemingway em “o velho e o mar”, que aceitou a solidão como essência de vida e especialmente a materializou durante os 84 dias nos quais nada pescou. santiago lutou sozinho, com sucesso, para pescar um peixe de tamanho descomunal e depois, sem sucesso, para evitar que tubarões atacassem a presa. foi e voltou desacompanhado de outros humanos, mas não sem estabelecer conversas consigo mesmo e com os animais marinhos que cercavam o barco. lembro-me de sentir em santiago uma companhia na minha adolescência: minha solidão-leitora acompanhava-lhe a solidão-marítima e a paciência diante das frustrações diárias.
            não sei se rubel compôs a canção homônima ao livro de hemingway pensando em santiago, mas ao cantar "e se perder / calma" o poeta parece descrever o personagem. e me ensina a como agir diante das perdas.
            inclusive aprendi a escolher perder, às vezes. afinal, a vida não é sobre justiças. e são tantos os fantasmas que nós criamos.
          "perdido a me perder mar adentro" cantam o vitor ramil e o jorge drexler, em “viajei”. exatamente como me sinto nos últimos meses, aprendendo a perder - um duro exercício, segundo a rosane, com quem compartilhei leituras que fiz de versos da bishop e do drummond sobre o perder: para o poeta mineiro, "Amar o perdido / deixa confundido / este coração", enquanto a poetisa norte-americana reitera três vezes que "A arte de perder não é nenhum mistério".
         mas a mim sempre foi. a solidão me era uma derrota. que por mecanismo de defesa eu transformei em uma forma de vitória e arrogância - e nessa condição perder sempre é mais doloroso. e me lembro de que eu me dirigia para a frente do mar tentando entender o motivo da minha sensação de desamparo. "o mar [que] promete terra seca ao viajante exausto", cantado por ramil em "tierra" era o lugar onde eu acreditava ser capaz de preencher o meu vazio perdido e onde eu também fiz todo o meu pranto, parafraseando o teago oliveira.
            eu tentava incorporar os versos de “vento no litoral” e cantarolava junto com renato, deixando a onda me acertar e o vento levar tudo embora. o vento sardo cantado pro drexler e marisa: que levanta a onda e ondula o mar. meu vazio esticava minha solidão ao infinito. e quando eu via o mar algo me dizia que a vida continuaria e que se entregar seria uma bobagem. renato tinha razão. nando também tem: "quando a gente fica em frente ao mar a gente se sente melhor". ainda mais se o sentimos - o mar - como apenas nosso, tal qual nos versos de sophia de mello breyner andresen: “mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim / a tua beleza aumenta quando estamos sós / e tão fundo intimamente a tua voz / segue o mais secreto bailar do meu sonho / que momentos há em que eu suponho / seres um milagre criado só para mim”.
            no ano passado, então, cantando belchior, eu morri. e, angustiado em uma crise existencial, o mar foi o lugar para o qual me dirigi, por sugestão da josi, que me disse "vá ao mar para se curar e se libertar". fui, não sem receio: olhava enviesado para aquele infinito. fingia não vê-lo. desviava do som dele. mesmo assim eu estava lá: no farol de santa marta, nas praias de laguna, na guarda do embaú, na praia do rosa, no campeche e, claro, em itaguaçu. lugares sugeridos por fox, com quem inclusive ainda vou percorrer de moto algumas praias da ilha de santa catarina em um final de semana qualquer adiante.
            aliás, se eu pudesse mudar de nome por um tempo, escolheria ser chamado de itamar. não somente por admirar o autor de "torto arado", mas porque este ensaio nasceu em mim nos últimos meses, momento em que as ondas habitaram minhas memórias e ecoaram essas sílabas: ita e mar.
                ser tão mar.
            não literalmente o sertão que vira mar como na canção "sobradinho", de sá e guarabira, mas metaforicamente sim: o medo que dá no coração de um dia me virar apenas sertão. o mar na minha história adulta de vida eu quero que se torne plural, pela liberdade. tal qual a personagem de clarice, que tomou o mar por dentro e nele caminhou. ela ganhou a liberdade na amplidão cantada por bethânia em “o quereres” de caetano. ela foi pela imensidão do mar e o abraçou na lua cheia.
                tenho certeza de que essa personagem anônima é a própria bethânia.
             eu ainda não aprendi a abraçar o mar na lua cheia, nem fui por sua imensidão ou amplidão. sinto que vou entrar verdadeiramente nesses versos quando começar a nadar no mar. inclusive, meu primo cadu tem nadado no mar de canto grande, em bombinhas, e a qualquer dia vou até lá conversar com ele entre braçadas e respiradas, deslocando a solidão, pelo afeto, no mar.
            experiência também vivida pelo personagem palomar, do meu xará calvino, que pratica sua natação vespertina: "Entra na água, afasta-se da praia, e o reflexo do sol se torna uma espada cintilante na água que do horizonte se prolonga até ele". o mesmo palomar que por vezes para diante do mar e tenta fazer a leitura de uma onda, enfrentando toda a complexidade que essa tarefa implica, para quem sabe poder cantar no mesmo tom que jobim: "agora eu já sei / da onda que se ergueu no mar". e palomar assim age porque "tende a reduzir suas próprias relações com o mundo externo e para defender-se da neurastenia geral procura manter tanto quanto pode suas sensações sob controle".
                o resto é mar, palomar. e é impossível ser feliz sozinho.
            por isso, inclusive, convido a quem teve fôlego de chegar até aqui para juntos nadarmos em mares versados em memória e afeto e melodias.
                bom mergulho a nós:

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

palavra corpo

meu texto começa no meu estômago vem daquilo que me embrulha e eu tento sublimar com as mãos com o toque nas palavras as palavras me saem das mãos depois de eu as sentir no meu estômago primeiro pela catarse depois pela estética e por isso preciso conversar mais com minhas mãos quero aprender a sentir melhor aquilo que tateio e percorro e agarro aquilo que me faz tremer quando alcanço uma palavra com as mãos e para isso me dispo de algumas palavras juízo uma delas e é pelo verbo que me sou é pelo verbo que me sinto verbo enquanto ação movimento estado de ser verbo desejar eu tremo quando me sinto em desejo um desejo de me entregar sem receio sem controle com as mãos livres em direção ao que eu ainda não conheço mas sem o qual sinto que não posso viver


ítalo puccini


domingo, 31 de julho de 2022

#paris2024: em defesa do pilates


o título desta croniqueta é uma brincadeira que faço com as pessoas mais próximas a mim. desde o encerramentos das olimpíadas do ano passado, digo constantemente que estou me preparando para os próximos jogos olímpicos, a serem realizados em paris em 2024, mas para disputar uma modalidade ainda não existente porém facilmente acrescentável, o trítalo: natação, bike e pilates. 

isto porque tenho me exercitado nessas três atividades semanalmente, mais ou menos da seguinte forma: bike 1 vez e natação e pilates 3 vezes cada na semana, sendo que neste último eu não consigo computar a distância, afinal, são exercícios de alongamento e fortalecimento muscular, mas o nado é de mais ou menos 25 km/mês, e o pedal, mínimo 100 km/mês.

essa entrega à atividade física não é exatamente uma novidade na minha vida, mas talvez eu nunca tenha me dedicado tanto para ela - sendo inclusive uma breve salvação durante um período de adoecimento mental e emocional. mas voltando ao passado, na infância e na adolescência eu pedalava todos os dias e jogava bola toda semana, obviamente sem planejamento para isso, o que me deixa feliz e triste ao mesmo tempo, pois daquele modo sempre senti a atividade física como um prazer, no entanto não a tornei parte da minha rotina nos anos seguintes, assentado-se uma lacuna a qual acredito que tento preencher agora adulto.

na infância, comecei pelas bicicletas de rodinha, incentivado por meu pai a aprender a me desgarrar delas; durante a adolescência, ia e vinha dos encontros com amigos e até levava a namorada para passear na garupa ou na barra de ferro; e já adulto eu me dirigia ao trabalho e à faculdade pedalando e suando sob duas rodas, pois só tive vontade de tirar a carteira de motorista aos 24 anos.

mas dos 18 aos 24 anos, mais ou menos, eu abandonei os poucos e desorganizados exercícios diários ou semanais em troca de trabalhar e estudar - até hoje me pergunto se é possível a uma pessoa, de maneira saudável, realizar alguma atividade física regularmente quando sua agenda ocupa dois períodos para o trabalho e um para o estudo. talvez nos finais de semana, mesmo assim me parece pouco para o acúmulo das tarefas dos dias. mas como fui office-boy por cerca de 2 anos, à época eu fazia os "corres" de bike, ou seja, completamente parado eu não ficava. contudo, quando me tornei professor meu ir e vir envolvia primeiro pegar vários ônibus e anos depois circular de carro vários quilômetros. foi quando meu corpo gritou de dor. 

mais precisamente minha lombar.

eu recém-retornara à natação, depois de mais de dez anos distante. o pouco tempo durante o qual nadei na infância me deixou saudade e memória muscular, pois com facilidade retomei os movimentos dos nados crau, peito, costas e até borboleta, justamente no qual me machuquei. e após realizar uma ressonância magnética descobri ter um sério desgaste nas últimas vértebras da coluna, na região lombar, na l4 e na l5. o motivo? anos e anos sentado incorretamente em uma média de oito horas por dia e nenhum cuidado com alongamento ou fortalecimento muscular. 

nadar me significa o relaxamento do corpo e a clareza da mente. tenho a impressão, ao estar na água, de que sou capaz de sentir todos os músculos do meu corpo se acalmando, enquanto o cérebro se alivia dos pensamentos que não prestam. ao sair da piscina após um treino, por exemplo, eu uma vez decidi terminar um relacionamento e, em outra, pedir demissão.

porém eu descuidei da atividade física por um tempo na minha vida e, ao retornar e sentir as dores, meu então professor de natação me sugeriu trocar a academia, onde eu sofria há três meses e me sentia muito burro, pelo pilates. foi quando, feito fênix, eu renasci. e aqui eu chego ao tema central desta croniqueta, proposto no título.

há dez anos, toda semana vou lá ao estúdio e faço de tudo com meu corpo. inclusive sou a pessoa que ri de quem diz que pilates é só alongamento e monotonia. com o djavan - o nome do meu professor de pilates é djavan - aprendo a prestar atenção em músculos, posturas, movimentos, dores, respiração, órgãos, tudo isso enquanto sou conduzido pelos tatames do solo e pelos aparelhos instalados no estúdio, que demandam força, sincronia, equilíbrio e sempre coragem. no meu caso, coragem porque tudo em mim fisicamente dói, devido ao meu encurtamento de membros, o que só descobri quando lá iniciei as atividades.

dessa forma, faz-me tão bem o pilates que vou enviar esta croniqueta ao comitê dos jogos olímpicos reivindicando a inclusão dessa modalidade atlética como uma nova forma de triatlo, cujo nome remete ao meu afinal a ideia é minha. e tenho certeza de que o dja é capaz de fazer suar qualquer atleta olímpico, inclusive estabelecendo critérios para definir os vencedores. eu obviamente não seria um deles, mas sendo o criador do esporte já me sinto feliz.

por fim, então, vou comprar minhas passagens para #paris2024, levando comigo a sunga, a bike e a coragem. 


ítalo puccini

terça-feira, 31 de maio de 2022

sempre há o que se guardar no melhor canto do coração


e é tão estranho como nos damos bem tiago. como tua presença me alegra. a pureza do momento que chegou para ficar e dar o que é devido a quem nunca se entregou. a gente sempre foi aquele instante de modo que eu exijo mais pra lembrar do que eu não fiz por te respeitar demais. apostaram alto contra nós e eu paguei o preço e te espero aqui e esqueço em breve o dissabor. avante com os novos planos pois é muito cedo pra se despedir e você não vai me encontrar onde todos esperam muito menos longe de mim escondendo o que eu também construí. 

como uma viajante que chegasse sem partir eu não quero que ninguém me leve pela mão nessa estrada na contramão e passo a achar estranho tudo o que eu mesma fiz e me desfaço de tudo o que decai. é que é lento meu passo e estou sempre atrasada contra essa distância que se impõe. tanto que as dez mil horas que me faltam pra eu me tornar quem eu quiser também foram postas pra vender sem eu nem saber. 

uma quimera gratuita de um destino pouco afeito a me agradar.

eu fui te buscar na lembrança mas você já não estava lá tiago. na fria escuridão desse porão vazio sua respiração não me alcança tampouco assume o peso que tem. e se essa noite dura mais do que deveria enquanto o sono não chega eu morro como se perdesse um tempo precioso e esbarro em sonhos que às vezes nem são meus. na fenda que me trouxe a escorregar pela imensidão eu me sinto mais só do que quando eu nasci mas mesmo assim quero saber onde vai dar sem ter que te pedir perdão logo depois. e sem parecer infantil é como se eu tivesse um mar de histórias pra contar do que restou de mim rindo das desgraças do dia no parque de diversões das perdas diárias nas quantas vezes em que já me descuidei sem prejuízo algum. quando as belezas que o mundo me mandava ficaram entupindo a caixa de correio do prédio onde não moro. 

não é tão triste quanto é óbvio.

e tudo o que te digo é só pra esconder o que eu pensei em te falar sobre coisas impossíveis que imagino e não entendo o que imagino. eu te oferto o meu dizer que é tanto e tão pouco e não repare no desastre que a vida se tornou afinal a disciplina faz manter a calma em um gole de cada vez desse fernet que de amargo lembra um pouco o que é viver. então pra que sair assim todo de mim só porque eu vejo prazer no que você tatuou com fogo pra lembrar que o tempo é mais completo no teu corpo. a alegria que isso me traz é sobre o dever de sofrermos juntos e todo esse empenho em ser sincera é porque algo entre nós não ia bem. e eu toco o embalo dessa nostalgia que só pra ti vai fazer sentido ouvir. 

mas que sentido tudo isso faz se na primeira vez demora a se acostumar com o vazio. 

quando eu olho pra você tiago a vontade é a chave pra te abrir. seria um grande prazer enlouquecer contigo. você que é vasto o bastante cuja falta inventa um novo dia da semana e se contradiz sem se importar. não me pergunte mais o que também já se respondeu sobre as canções que extraem tua dor. teu riso é breve pequeno e discreto teu rosto não mais que intenção. tua inocência dizendo com todas as letras como se faz e se existe algum segredo eu nem penso em desvendar e perder tua atenção. agora é uma lei e eu não vou querer ser pega se a tua sorte é o meu azar.

eu lido agora só com o que é mais urgente. 

enquanto o sol aquece tudo lá fora eu me despeço desse frio e imagino precisos nuances de vida. algum tipo de adeus pra quem quer partir você encontra em mim tiago porque é bom dizer adeus estando em boa companhia. as auroras que um dia hão de brilhar em mesas redondas de salas distantes sob o olhar complacente de deus e sobre o prazer de vivermos juntos. parece tão fugaz esse meu prazer rindo das promessas do dia como queria que fosse a estação inteira ao fim da qual restaria palavra. um atalho. o fim do mistério que me leva até você sobre as ruínas dos muros de toda elevação. porque não há nada que não se cure com cinismo e boa fé. 

e de fé nós entendemos bem.


ítalo puccini