terça-feira, 26 de novembro de 2019

e essa taça vamos conquistar

     vamos flamengo não há palavras com que eu possa definir não há palavras com que eu possa exprimir o que é ser flamengo é uma glória no cenário mundial eu sempre te amarei onde estiver estarei ó meu mengo e domingo eu vou ao maracanã flamengo joga amanhã eu vou pra lá o maraca é nosso vai começar a festa sai do chão sai do chão a torcida do mengão a bola rola e essa galera vai vibrar diz o gramado sai da frente é o mengão sempre amado o mais cotado seja na terra seja no mar quando o flamengo joga é casa cheia o maraca é nosso somos uma nação é lindo ver o mengão contagiando essa torcida essa cidade são dez estrelas a brilhar no céu do meu mengão o céu na noite que reluzia não vai ser de brincadeira ele vai ser campeão encantou o estácio ó paixão que arde sem parar cobra coral papagaio vintém vestir rubro-negro não tem pra ninguém acima de tudo rubro-negro teu manto é minha pele no meu peito teu escudo campeão o teu destino é ganhar em terra e mar ele vibra ele é fibra é time de tradição raça amor e paixão ó meu mengo estou sempre contigo somos uma nação os meus olhos estão brilhando meu coração palpitando de tanta felicidade fecho os olhos e lembro em dezembro de 81 botou os ingleses na roda e quem enfrenta reconhece o maior da história é mengo tengo no meu quengo é só flamengo tens na torcida uma força sem igual flamengo da dona de casa do povo sofrido do trabalhador meu glorioso flamengo cada jogo uma vitória cada vitória um carnaval flamengo do sul e do norte de todos os cantos de toda nação ó meu mengão eu gosto de você no asfalto e no morro é o bonde do mengão sem freio três a zero no liverpool ficou marcado na história vamos flamengo vamos ser campeão vamos flamengo time consagrado pelo povo preto encarnado idolatrado sua história sua glória seu nome é tradição é samba amor e paixão a minha maior alegria é ver o mengo campeão vamos fazer desse samba oração e do clamor dessa massa procissão cem anos de uma história quanta tradição vai flamengo balança a rede do adversário quero cantar ao mundo inteiro a alegria de ser rubro-negro lembrar você sou campeão mundial vamos buscar no sonho na filosofia na ciência e na magia explicação pra essa religião que a gente só pode sentir com o manto sagrado e a bandeira na mão é o ai jesus que torcida é essa por isso que digo uma vez flamengo sempre flamengo e agora o seu povo pede o mundo de novo zum zum zum zum zum zum a torcida quer mais um e o nome dele são vocês que vão dizer dale dale dale ô dale dale dale ô flamengo maravilhoso cheio de encantos mil mengão do meu coração flamengo maravilhoso campeão do meu brasil eu sempre hei de ser não importa onde esteja sempre estarei contigo que o seu futuro ainda será mais lindo que o seu presente que tão lindo é

ítalo puccini

terça-feira, 12 de novembro de 2019

fazer poema lá na vila é um brinquedo

     e ouvir tuas composições, noel, é conhecer um cotidiano rio de janeiro de outrora – cidade sensível, irresistível, cidade do amor, cidade mulher – ou, mais precisamente, a vila isabel, tão bem retratada por ti: “são paulo dá café / minas dá leite / e a vila isabel dá samba”. é o viés que pega o ouvinte e o leitor no contrapé, que faz dançar os galhos do arvoredo, que faz a lua nascer mais cedo. são teus versos os que fazem isso ao cronicar assim em forma de samba, noel. 
     samba este que não se aprende no colégio, sabemos, cujas rimas não são ai love you. nem no teu tempo, nem no meu. e por isso mesmo que vezemquando apresento a estudantes algumas amostras musicais desse gênero tão brasileiro, pensando que talvez se identifiquem com o ritmo ou com os escritos. se não pela possibilidade de se sentirem tocar pelos versos, ao menos apresento uma composição assim rica: “o sol da vila é triste / samba não assiste / porque a gente implora / sol, pela mor de deus / não vem agora / que as morenas / vão logo embora”. 
     e ouvindo-te eu aprendi que a vila não quer abafar ninguém, e sim apenas mostrar que faz samba também e que é uma cidade independente, não disposta a tirar patente. é o tal feitiço que há na vila, lugar onde o que não faltava era conversa de botequim e exigência de um bom atendimento do garçom. aliás, qual foi o resultado do futebol por aí? aqui só dá flamengo. também não sei vestir casaca, não sou um tipo zero do tipo que não tem tipo que com todo tipo se parece. 
     e, tendo ou não cem mil réis, não há quem não cantarole o refrão de “com que roupa?” nos momentos, bastante frequentes, em que ficamos a matutar o que vestir. ah, tu sabias o que dizias. ô, se sabias: “quanto a você da aristocracia / que tem dinheiro mas não compra alegria / há de viver eternamente sendo escrava dessa gente / que cultiva a hipocrisia”. machado de assis te aplaudiria, tenho certeza. inclusive, um dia eu gostei de uma vida boêmia. hoje, eu prefiro os amigos. afinal, onde está a honestidade? eis o xis do problema, tal qual estava lá naquela carta que tu recebestes: “quem é da boemia / usa e abusa da diplomacia / mas não gosta de ninguém”. 
     permita-me, noel, para finalizar esta breve conversa, uma pergunta-cretina: paixão não te aniquila? olha que te vejo muito naquele gago apaixonado, hein? mas não vou insistir nessa vereda, não. com paixão não se brinca. é preciso um bocado de respeito pelo sentimento do outro, afinal, “um grande amor tem sempre um triste fim” e “quem suportar uma paixão / sentirá que o samba então / nasce do coração”. como um último desejo. 

ítalo puccini

terça-feira, 5 de novembro de 2019

a escrita enquanto reparação




     até que ponto a escrita é capaz de reparar algo? é o que tenho me perguntado desde que assisti novamente ao filme “desejo e reparação”, dirigido por joe wright, baseado no livro “reparação”, do ian mcewan. e essa indagação se origina no que nos apresenta a narrativa: a escrita de uma história, por uma das personagens, como forma de reparar um erro cometido por ela há muitos anos. então que eu refaço a pergunta: até que ponto a escrita é capaz de reparar, ou seja, consertar um erro? repara a ação já cometida? ou se transforma em uma obsessão? em portugal, por exemplo, o romance saiu intitulado “expiação”, que, de acordo com o dicionário, significa “ato ou efeito de expiar; reparação ou sofrimento pelo qual se expia uma culpa; castigo”. escrever expia o sentimento de culpa? para responder a isso, acredito que seja bom direcionar a questão, especificar este ato de reparar: a quem ele faz referência?

reparação
briony tallis, com 13 anos e uma mente muito criativa e imaginativa, acusa robbie, o filho de uma das empregadas que trabalhavam para a família tallis, de tentar violentar sexualmente lola, 15, prima de briony, em uma noite – esta que era muito especial, devido à visita do irmão das meninas, leon. tal acusação ocorre quando os primos gêmeos desaparecem durante o jantar, e todos se dispersam para procurá-los, pela grande propriedade onde reside a família. de fato lola estava sendo violentada, mas não por robbie. porém, briony resolve dizer a todos que tinha visto com seus próprios olhos que havia sido ele. 
por que culpá-lo? ciúmes, talvez. egoísmo, como uma tentativa de tornar o dia de alguém tão insuportável quanto fora o seu, repleto de frustrações: uma peça teatral, escrita por ela – para recepcionar o irmão – que não pode ser encenada, por má vontade dos envolvidos (lola e dois primos gêmeos, de dez anos) e duas surpresas desagradáveis, envolvendo a irmã, cecília, e o próprio robbie: a leitura de um bilhete escrito por robbie para ceci (quero beijar sua boceta molhada) e o flagra no momento em que os dois transavam na biblioteca da casa da família. estava completo o dia de briony. havia motivo, na cabeça da menina, para incriminar o garoto pobre cujos estudos foram bancados pelo pai das meninas. 
consequência desses fatos: robbie preso, cecília arrasada, um amor impossibilitado de ser vivido, uma família, a partir de então, dividida. 
a narrativa prossegue mostrando robbie nas forças armadas durante a 2ª guerra mundial, o pouco contato entre ele e ceci – por meio de cartas, como uma forma de manterem viva a paixão interrompida – e briony tentando receber o perdão da irmã, reconhecendo o erro que cometera. 
a menina de imaginação ímpar, que muito arriscara a escrita de histórias quando na infância, realiza o sonho de tornar-se escritora, alcançando, inclusive, bastante sucesso com seus livros publicados. e, já idosa, ao lançar seu 21º primeiro romance, ao qual dá o nome de “reparação”, narra a história de sua vida, assim como da de ceci e de robbie, a partir daquela noite que marcara todos eles. porém, no seu livro o casal se reencontra após a guerra e pode, enfim, viver uma apaixonada e sincera vida a dois, algo que, na realidade, não ocorre: ele morre na guerra, pouco antes de as tropas voltarem ao país, e ela falece, doente. ambos ainda muito jovens. 

escrita consciente e inconsciente
sem nunca ter sido capaz de escrever sobre o acontecimento que causou, briony consegue fazer isso no último livro, no fim da vida, como uma tentativa de reparar o erro que cometera, de ser perdoada pela irmã e pelo filho da empregada, oportunizando-lhes, na ficção, viverem o que em vida não puderam. e eu retomo a pergunta: até que ponto a escrita desse romance, por parte de briony, reparou o erro que ela cometera? a escrita é capaz de tal reparação? 
não desenvolvi esse texto para alcançar uma resposta. sinto essa questão com muitas variáveis, então que retomo um olhar para o fato: a quem esse ato de reparar faz referência? sendo assim, somente com o movimento de colocar-se no lugar do outro para dar conta de responder a isto. e a personagem, tanto no livro quanto no filme, não me pareceu curada da dor da culpa que durante toda a vida esteve com ela, percepção que me induz a pensar no quanto a escrita é apenas paliativa: nunca solução concreta e efetiva para as dores que carregamos conosco, e sim um meio de nos suportarmos, por mais que tentemos fugir delas a todo custo, pelo tempo que for. 
quantas são as vezes em que escrevemos a alguém com o intuito de nos desculparmos, de reatarmos um elo rompido por algo que causamos? e quando escrevemos para acusar, para gritar aquilo que nos dói, causado, em nossa opinião, pelo outro? é também a escrita como reparação, é também, a meu ver, esse almejo – que nos persegue e nós perseguimos – de colocarmos a vida em um trilho equilibrado, envolvendo princípios como justiça, talvez coerência ou moral. 
é suficiente tal escrita? ou, ampliando a indagação: em algum momento a escrita nos é suficiente? torço para que não, uma vez que a incompletude nos é necessária. prefiro pensar que escrevemos também como uma forma de conversarmos conosco mesmos e com aqueles que nos leem, de olharmos para o que nos rodeia, de nos ressignificarmos. daí a possibilidade de alcançarmos o que nos é consciente e inconsciente, ora desejando uma sensação de cura, ora uma de fuga. 
por exemplo: tenho desgostado do que escrevo – reconhecendo o quanto isto é um clichê. esse não gostar se deve a uma repetição: parece que todo texto meu é o mesmo há anos. acredito que seja o ritmo de escrita e de leitura que consegui fazer presente em mim – fator importante para quem inicia – entretanto, um vício que pode impedir-me de apresentar algo que eu considere novo. e essa situação se deve ao fato de que escrevo principalmente – e quase apenas – aquilo que vivo e conscientemente sinto. é uma escrita agarrada às vivências, ou seja, uma zona de conforto. 
mais difícil do que criar uma voz narrativa talvez seja liberar-se dela. e o caminho para uma mudança nessa quase crise-existencial-criativa passa por produzir o que não foi vivido, ficcionalizar de fato, ir para além daquilo que penso sobre mim e de como os outros possivelmente me veem. como me disse o enzo uma vez, “nesse além você se sabota e é capaz de um novo estilo”. e, de repente, alcanço traumas e culpas que saracoteiam dentro de mim. 
acredito nessa dupla possibilidade, de quem se esconde e se escancara a partir do texto, como se fosse possível optar por apenas uma forma. não é. mostramo-nos mais do que pressupomos mostrar, da mesma maneira que deixamos escondidas características nossas, por mais que tentemos escancará-las. isto porque é a escrita fuga e aproximação. dos outros e, principalmente, de nós mesmos.  

ítalo puccini

segunda-feira, 6 de maio de 2019

não é impossível ser feliz sozinho

     e me desculpe, tom, se a partir do título estabeleço um diálogo. veio-me tão forte que desejo expor sem cerimônias. porque algumas frases sabem ser porradas, cabendo-nos, então, bem utilizá-las com essa função. é o caso. 
     quem é que nunca teve medo de amar, não é mesmo, tom?
     o pescador, por exemplo, tem dois amores. um bem na terra, um bem no mar. 
     às vezes, é saudável ser sozinho, você não acha? até a beleza passa sozinha, a da garota de ipanema. acredito que de conflito o mundo já está repleto, portanto, um cadim de paz é sempre bem-vindo. e com isso defendo a ideia de que muitas das relações que estabelecemos com as pessoas nos causam dores e infelicidades. o que era para ser bom, assim não o é. fundamental é mesmo o amor, sem dúvidas. porém, é possível amar lá de longe, lá do mar, daquilo que não sabemos contar. o que nos encaminha a relativizar esse estar sozinho: isoladamente numa ilha não vivemos, então sozinho não somos. é condição humana básica a interação com outros seres, afinal, até mesmo robinson crusoé criou formas de sentir-se acompanhado na ilha onde esteve por mais de trinta anos. contudo, desassociando-nos da condição amorosa, por exemplo, torna-se possível tal viver. sendo assim, confundindo-me todo e quase vulgarmente falando, dá e não dá para ser feliz sozinho. 
     pois há quartas-feiras em que é só jogar a rede. e puxar. 
     joão ninguém que nos diga. 
     mudando um pouco de assunto, e ouvindo outra música, no peito dos desafinados também bate um coração, canta você. e eu leio a palavra desafinados para além do significado básico de alguém que não canta afinadamente: desafinado sou eu, muitas vezes grosseiro; desafinado somos nós, incompreensíveis e insatisfeitos; desafinada é a vida, essa alternância de sentires e razões. e que bom. seria tão mais desgastante se nos mantivéssemos sempre os mesmos, não é? tão insuportável se todo o dia acertássemos acordes e tons. vezemquando é válido ser vinícius de moraes. 
     quem não pede perdão nunca é perdoado. e também é preciso dizer adeus. à insensatez. 
     é pau é pedra é o fim do caminho. é o apito da fábrica de tecidos. ora é o corpo na cama ora é a lama é a lama. é a tristeza que não tem fim, a felicidade como a pluma que o vento vai levando pelo ar. que culmina com o medo matando o coração, afinal, é desconcertante rever o grande amor. e se você faz uma canção para esquecer luiza, tom, há quem escreva textos para exorcizar paixões também. minha alma, por exemplo, não canta, ela escreve. mesmo que seja um texto assim tão desprovido de energia. como uma vez me disse uma amiga: é que nos falta intimidade, a mim e a ti. 
esperemos, pois, o passarim pousar. 

ítalo puccini

domingo, 28 de abril de 2019

o que é saudade?


     um dia a josi me disse que o sentimento de saudade, pra ela, representa paz, porque, ao sentir saudade de alguém, ela se sente em sintonia com este alguém, como se um vivesse em estado de plenitude dentro do outro, de modo que esse sentimento – a saudade – pra ela nunca é dor ou sofrimento, mas aconchego e reciprocidade. e, assim, diferenciamos saudade de falta, esta responsável por machucar porque associada à perda e ao distanciamento eterno, como se cortassem um pedaço de nosso corpo, como se arrancassem de nós o sentido da existência. 
      e essa confusão de sentires e conceitos se dissemina socialmente muito em virtude da quantidade de músicas que discorrem sobre a saudade enquanto sinônimo daquilo que é falta e carência – segundo a definição do dicionário, inclusive, “saudade é sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, acontecimento ou lugar”, mas eu prefiro a definição da josi. e talvez a letra de música que melhor exemplifique esse conceito social seja “pedaço de mim”, do chico, na qual ele repetidas vezes se refere à pessoa amada assim “oh, pedaço de mim, oh, metade afastada/arrancada/exilada/amputada/adorada de mim”, definindo saudade como “pior tormento, pior que o esquecimento, dói como um barco, dor latejada, uma fisgada, o pior castigo”. 
     há de se cuidar também com a errônea crença de que saudade é exclusividade da língua portuguesa, pois, derivada do latim, existe em outras línguas românicas, envolvendo outros conceitos semânticos: no espanhol, soledad, e em catalão, soletad, ambas com sentido de nostalgia de casa; e na romena saudade tem o mesmo conceito semântico de dor – diz-se durere – mais próximo do nosso significado usual. ou seja, na língua portuguesa se romantizou tanto esse sentimento que se popularizou o apego a ele como se exclusivo: somos possessivos até com as palavras. 
     de modo que lá fui eu novamente mexer com as pessoas mais ou menos próximas a mim, indagando-lhes: o que é saudade? e mais uma vez me senti em êxtase diante das respostas e de tudo o que as envolve, porque não é somente na resposta que presto atenção, mas também na escolha das palavras, no tempo em que elas vêm, na reação de cada um diante das minhas provocações, quando inclusive o silêncio, ou seja, a não-resposta, representa muito. e adorei a analogia que me apresentaram de que saudade é como quando se assiste a um show do artista preferido, e ele não volta para o bis: você espera vivenciar mais daquilo que foi tão maravilhoso, mas, mesmo diante da ausência desse a mais, você se sente preenchido em felicidade e plenitude pelo que recém-viveu.
     ainda, gostei de quem me respondeu com outra pergunta: “o que não é mais saudade?” – fiquei pensando no quanto é horrível querer se livrar de um sentimento do qual não se consegue – e também agradeço a quem demonstrou preocupação comigo: “tá tudo bem, ítalo?”. assim como foram divertidas as três respostas irônicas: “nunca senti pra saber”; “é o que você sente por mim”; e “é meu coração palpitando quando ítalo lembra que eu existo”. eu gosto da ironia enquanto demonstração de carinho.
      carinho às vezes é coincidência: uma pessoa me disse justamente estar escrevendo sobre saudade, e do texto dela eu destaco o dizer de que “saudade é o lado bom da falta”, pois essa ideia se aproxima do conceito proposto pela josi e também apareceu em outras duas respostas: “saudade é bom, a despeito de toda dor que carrega” e “saudade é uma falta que move, uma ausência que faz companhia”. e dessa maneira eu me despertei para outra definição, igualmente distante da ideia de dor associada a esse sentimento, de que saudade é uma aposta e só existe enquanto virtualidade: no encontro ela já deixa de ser e se transforma em prazer ou decepção. 
      e decepção é a acepção mais comum sobre saudade, sempre associada à falta, em especial na literatura, no cinema e na música. responderam-me ser a saudade: “formigamento no peito, um aperto que sufoca e queima um pouco a garganta”; “é um negócio completamente desnecessário”; “falta de algo que fez parte, que se confundiu um dia com aquilo que eu era”; “vontade de ter pra vida toda o que já não se pode mais”; “desejar o que se sabe que não existe mais”; “uma falta que a gente cria”; e “é prego, e o coração, martelo”. definição dolorosa e de igual viés poético essa última, reverberada em outras três: saudade “é o revés de um parto”; “é reflexo do meu eu de mim apartado”; e “é uma pétala a menos de flor”. 
      nessa perspectiva metafórica, canta o lenine que “saudade é um bicho grande / muito maior do que eu penso / quanto mais se expande, mais denso / quão mais denso, mais se expande / saudade é um bicho imenso”, em”bicho saudade”, letra na qual ainda se versa ser a saudade “um lindo bicho / que da fome se orienta” – inclusive, uma pessoa a mim respondeu associando saudade à fome, quem sabe significando serem ambas inerentes a nós humanos. 
      e sentem os animais saudade? também perguntei aos queridos e queridas. e a maioria acredita que sim, principalmente quando há vínculo de convivência com humanos e filhotes; há quem tenha certeza da presença desse sentimento nos demais seres – isto porque sentimento envolve alma, e alma os animais têm – mas também houve quem assegurasse que não, porque estudos indicam que por exemplo os cães, quando veem seus donos saírem, sentem como se estes nunca mais fossem voltar, de tal forma que a alegria no reencontro é um renascimento, não uma saudade. porém, duas pessoas consideraram a saudade nos bichos presente justo no momento do reencontro e não enquanto um sentir a distância. 
      na próxima croniqueta, pois, direcionarei perguntas aos animais, afinal, conforme versa drummond, “o homem não é assim tão importante” – drummond, aliás, morreu doze dias após a morte da filha, diz-se que de saudade. 
      finalizo, portanto, novamente com a promessa de enviar a cada um dos participantes dessa entrevista uma playlist criada por eles mesmos, a partir das músicas que sugeriram a mim, momento no qual solicitei a cada um: envie-me uma ou mais músicas sobre saudade. afinal, conforme diz a pitty, em vinheta no novo disco, “saudade é vontade daquilo que já se sabe que gosta”, constatação à qual eu acrescento esta, de uma das pessoas a quem dirigi a pergunta-tema deste texto: “saudade é o desejo de reviver momentos de prazer e alegria com aqueles que nos fazem bem”.

https://open.spotify.com/playlist/0teWmczLxRt4aJRED199aQ?si=RbqMZMXrSUCcN9B37y_1xg

ítalo puccini

domingo, 7 de abril de 2019

tierra debaixo d'água

      hoje uma música morou em mim, levou-me à praia, ao mar, àquilo de que mais sinto falta, àquilo de que me afastei há anos. eu me afastei de mim mesmo há anos, e quando a consciência disso atravessou o esconderijo e se estabeleceu diante de mim, eu esmoreci. então, planejei uma maneira de fugir da minha memória: fumei um cigarro, caminhei, fiz compras, pintei, assisti a uma partida de futebol. e ouvi: “o mar promete terra seca ao viajante exausto”.
      porém não há facilidade em se alcançar o mar.
      eu era o viajante exausto, que não visitava mais o mar, logo, sem a promessa da terra seca. eu olhava para mim e para o universo de símbolos e pessoas ao meu entorno como se estivesse ausente, todo dia, vagando pela história da minha própria vida, “sonhando a cada dia em alcançar a praia”. e a mim, ao contrário do que canta a canção, sempre me acontece pensar que nada é para sempre, então eu me deixava mergulhado em frieza e infelicidade. eu desisti e me deixei, sabendo que “o mundo seguirá girando quando já não há mais nada”. 
     eu esperava pela “vida que sempre guarda algo que supera a melhor das fantasias”, mas era preciso que viesse de dentro de mim o inesperado. foi quando toda a dor me existente eu direcionei ao outro, a quem me alimentou dor – a dor que advém do desejo de não sentirmos dor. disparei, pois, “partes de poemas que eu tinha abandonado”, rimas de uma mente fatigada, melodias perdidas e descobri que a vingança – principalmente retórica e silenciosa – é sentimento libertador. 
     entretanto não suficiente. 
     às vezes, o trauma, vestido de lembrança esporádica, rouba-nos a coragem de viver o presente e exerce sobre nós dúvidas capciosas, originadoras de angústias outrora escondidas. assim, sentindo-me manipulado pelo passado, embaralho os quereres e desvirtuo a realidade, visualizando por exemplo maldade em ações nas quais ela não existe. e a desconfiança diante daquilo que se vive é sentimento corrosivo e sufocante, é pior que amígdala inchada e unha encravada ao mesmo tempo.
      escrevo, pois, para alcançar a praia, entrar no mar e debaixo d’água gritar até renascer, feito fênix, formando-me novamente um feto: sereno, confortável, amável, completo, em especial sem contato com o ar. porque o ar me faz provar um gosto de final, ele peca em excesso de seriedade e aqui fora sufoca e dificulta a mim inclusive o engolir a saliva – lugar onde o trauma faz morada também e alimenta a insegurança. e debaixo d’água tudo é mais bonito mais azul mais colorido: só nos falta respirar. 
      mas temos de respirar.
      e a escrita a mim é como um aparelho médico que auxilia esse processo automático – e portanto inconsciente, no entanto de tanta exigência – denominado respirar, é ela quem me conduz à tierra, ao mar, ao debaixo d’água, a um lugar por agora desconhecido, que me lembra de freud: não é nossa a casa onde moramos. e eu ainda não me tornei morada de mim mesmo, por enquanto, “porque faz tempo que eu já me fui, pois sempre estou partindo” e reconheço o erro em ansiar esse desejo, pois o vazio não apenas está em mim, ele me é, eu o sou. 
      logo, é importante aprender o exercício da resiliência, e para isso nesse momento eu vivo com o objetivo de não saber, ou seja, de desconhecer o que acontece ao meu entorno, uma vez que o ato de saber me causa temor, associado ao trauma de me sentir manipulado, usado e traído. assim, quando eu não vejo, não ouço e não sei, eu me defendo, e essa defesa não é do outro, mas de mim mesmo, do meu passado, de marcas ainda indeléveis, amenizadas quando entro no mar e escrevo. 

ítalo puccini

domingo, 31 de março de 2019

des


      assim sem acento é prefixo de oposição, negação ou falta; com acento – dês – é preposição antiga, substituída atualmente por desde, também ação do verbo dar conjugado na segunda pessoa do singular no presente do subjuntivo – que tu dês atenção a quem te ama – e no imperativo negativo: não dês atenção a quem não te quer. e entre essas duas acepções da palavra me interessa mais a primeira, mesmo que as frases de exemplo da segunda sejam muito oportunas.
      meu olhar para a palavra des enquanto falta existe desde que li, há anos, a terceira parte do “conto de facas”, do enzo, cujo título é justamente des, e nos textos ali presentes se entoa a dor de um fim de relacionamento, sendo o primeiro texto dessa parte justamente o motivo do término: “Descaso sm. 1. desatenção 2. falta de importância ou cuidado 3. desconsideração 4. neblina que se perfila nos olhos daquele que perdeu a única pessoa com quem se casaria em vida; espera, breu branco”. e nos demais textos do livro enzo trabalha com palavras como descuido, desejo, desterro, descida, descrença, desaparecer, desperto, descartar, desconhecido e andes. 
      segundo enzo, ainda, des é nome a ser dado a quem abandona a pessoa amada – no texto intitulado “Quatro minutos de olhar”, há a seguinte explicação: “Texto sobre Yashodara, a esposa que foi abandonada por Sidharta Gautama, o Buda. Seu des”. e esse significado desde então mora em mim, mais ou menos latente de acordo com os acontecimentos cotidianos e com a intensidade da memória nas veredas das vivências. de modo que minhas recentes separação matrimonial e demissão profissional me reacenderam essa lembrança.
     pois há poucos dias eu criei uma playlist com o propósito de reunir músicas cuja temática fale sobre o sentimento de falta do eu lírico, oriunda de um abandono amoroso, ou seja, que contenham letras expressivas de mentiras sinceras, migalhas dormidas, raspas, restos e pequenas porções de ilusão – atitudes típicas de uma pessoa apaixonada quando em desespero diante da perda de um amor. não exatamente porque eu vivencie tal caso, e sim devido ao meu interesse por esse recorte poético: não há nada melhor do que ouvir canções sobre dores amorosas quando estas não compõem o seu ser naquele momento. 
      e eu escolhi, também, saber de algumas pessoas próximas palavras cujo início seja com des, com a finalidade de ampliar o repertório de significados possíveis a essas três letras. e a experiência foi sensacional, a começar pela quantidade de palavras propostas por cada um dos convidados a esse exercício de pensar: houve quem me dissesse uma só palavra, foram duas pessoas – uma disse deslexia, enquanto a outra, despacito – escolhas bastante representativas de cada uma. em contrapartida, vieram 88 palavras de uma só pessoa, bastante destemida. e um convidado teve a desfaçatez de não participar: xablau pra você, irmão. 
     as palavras mais repetidas entre os dezessete participantes foram desespero, desdém e desculpas, ditas por sete deles, e dentre essas a de que eu mais gosto é desdém, pela sonoridade – gosto também, pelo som, de desditoso, deslize, desvario, desapego, desfile, desuso, desleal, desumano, deserto, desvio, desvelar, desaguar e desmembrar. inclusive, foi pensando nesses diferentes aspectos de se olhar para uma palavra que eu constatei quantas, por mais que comecem com esse prefixo cujo significado é de oposição à ideia da palavra original, não simbolizam sentido negativos, até mesmo porque são conjunções, preposições, conceitos ou variações verbais: destarte, desde, dessa, destro, desinência, desktop, desporto, design, destaque, desbravar, descer, desenhar e destino. e também há as que sugerem conotações positivas: desmentir, destemido, desinibido, destreza, despir, desejo, desencalhar, desbloquear, descomplicar, desarmar e desabafar.
     eu procurava, desde o início da brincadeira, por quatro palavras: descaso, desapaixonar, desonra e deslembrar. e elas apareceram assim: a primeira, três vezes; a segunda, duas vezes; a terceira, uma única vez; e a quarta, nem uma vez – só a encontrei no grande sertão do guima. enquanto tantas outras, ainda, alegraram-me porque tiradas do esquecimento em que viviam no meu mundo invertido: desordem, desatino, déspota, desdêmona, desamor, descanso, descaminho, desinteirar, desalinho, desalinização, desiluminador e desvelar. 
      por fim, gostei da reação dos participantes – menos do completo silêncio de um deles, atenção devidamente já chamada nesta croniqueta. a maioria não me questionou o porquê da minha intervenção, que foi: diga-me palavras que comecem com des. porém, alguns reagiram, mais ou menos surpresos, mais ou menos desconfiados, mais ou menos indignados, mais ou menos felizes: um me disse “tá faltando google na sua vida”,  demonstrando fina educação; três expuseram cansaço ou preocupação ao perguntarem “ajudei?”, “deu?”, “tá bão?”; um se assustou e questionou “assim do nada?”; outro dissertou raivosa indignação diante da minha recusa em explicar o motivo do meu pedido; e um me deixou muito feliz ao dizer que nunca mais pararia de pensar nessas palavras. 
     e esta croniqueta eu espero que cumpra essa função também, de instigá-los a continuarem à procura de palavras, no modo mais aleatório possível, relembrando-as, ressignificando-as e compartilhando-as. e a recompensa por mim prometida a cada um dos convidados – grato. daqui uma semana você receberá a recompensa – é este texto, em conjunto ao link da playlist, esta na qual há pelo menos uma música sugerida por cada um deles sobre dor amorosa, pra ser ouvida nos momentos bons e ruins, a depender da coragem e do impacto de um des na vida de cada um. 
ítalo puccini

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

são vírgulas

      as pernas, inclusive, têm vida própria, elas não sossegam, mesmo o corpo assim estando, parado, como exemplo, ao sentar-se para um lanche, uma refeição, alguma atividade de estudo ou trabalho, este corpo citado às vezes relaxa, mas elas, as pernas, as irrequietas pernas, balançam ao ritmo de algo que apenas a elas compete saber, parecem dançar ao som de alguma música, por ninguém mais ouvida, somente por elas, levando-as a um abrir e fechar, frenética  ou calmamente, entrecruzadas ou espaçadas, juntas-batendo-joelho-com-joelho, a um lado e ao outro, ritmadas, ou, enquanto uma descansa, a outra sacode para cima e para baixo, para cima e para baixo, descontroladamente, como se em poucos segundos fosse desgrudar-se do corpo e sair quicando, ainda ritmadamente, ainda ao som daquela música que lhes é própria, ou, também, há a perna que balança quando sobrecruzada à outra, típica posição culturalmente imposta às mulheres, porém tão comum aos homens, aos que são capazes de realmente cruzar uma perna sobre a outra e deixá-la a balançar, como se ali coubesse uma criança ou um cachorro ou um gato recém-nascidos, dependurados nesta perna que, da mesma forma, com igual ritmo, sobe e desce, sobe e desce, talvez assim descansando, talvez simbolizando a inquietação daquele a quem elas pertencem, ou são eles que a elas pertencem, não se sabe, mas elas não param, as pernas, enquanto parado está o corpo, há um movimento contínuo, independente, comum a todos os seres humanos, em alguns mais frenético, em outros menos perceptível, porém existente, constante, apesar das mudanças de posições e de ritmos, são gestos entre vírgulas, condutores de uma linearidade rítmica ao corpo no momento de este levantar-se, quase uma intervenção artística, uma espécie de empurrão justamente para este ato de levantar-se, algo inclusive com nome próprio, a síndrome das pernas inquietas, ou síndrome de ekbom, diagnosticada clinicamente, cujos sintomas envolvem alteração de sensibilidade e agitação motora involuntária, palavras bonitas, mas que não alcançam o significado preciso deste ato, ao contrário, podem até mesmo distorcê-lo, através da alegação de uma qualidade de vida comprometida ou da sensação de desconforto, outras expressões consideradas importantes, porém irrisórias, não há dores, não há formigamentos, não é predisposição genética ou ausência de dopamina e ferro em áreas motoras do cérebro que provoca este balançar das pernas, a ciência não alcança o que a arte faz acontecer com elas, as pernas, essa música própria, essas vírgulas, esse gesto espalhafatoso, deve ser realmente bom balançá-las,

ítalo puccini