até que ponto a escrita é capaz de reparar algo? é o que tenho me perguntado desde que assisti novamente ao filme “desejo e reparação”, dirigido por joe wright, baseado no livro “reparação”, do ian mcewan. e essa indagação se origina no que nos apresenta a narrativa: a escrita de uma história, por uma das personagens, como forma de reparar um erro cometido por ela há muitos anos. então que eu refaço a pergunta: até que ponto a escrita é capaz de reparar, ou seja, consertar um erro? repara a ação já cometida? ou se transforma em uma obsessão? em portugal, por exemplo, o romance saiu intitulado “expiação”, que, de acordo com o dicionário, significa “ato ou efeito de expiar; reparação ou sofrimento pelo qual se expia uma culpa; castigo”. escrever expia o sentimento de culpa? para responder a isso, acredito que seja bom direcionar a questão, especificar este ato de reparar: a quem ele faz referência?
reparação
briony tallis, com 13 anos e uma mente muito criativa e imaginativa, acusa robbie, o filho de uma das empregadas que trabalhavam para a família tallis, de tentar violentar sexualmente lola, 15, prima de briony, em uma noite – esta que era muito especial, devido à visita do irmão das meninas, leon. tal acusação ocorre quando os primos gêmeos desaparecem durante o jantar, e todos se dispersam para procurá-los, pela grande propriedade onde reside a família. de fato lola estava sendo violentada, mas não por robbie. porém, briony resolve dizer a todos que tinha visto com seus próprios olhos que havia sido ele.
por que culpá-lo? ciúmes, talvez. egoísmo, como uma tentativa de tornar o dia de alguém tão insuportável quanto fora o seu, repleto de frustrações: uma peça teatral, escrita por ela – para recepcionar o irmão – que não pode ser encenada, por má vontade dos envolvidos (lola e dois primos gêmeos, de dez anos) e duas surpresas desagradáveis, envolvendo a irmã, cecília, e o próprio robbie: a leitura de um bilhete escrito por robbie para ceci (quero beijar sua boceta molhada) e o flagra no momento em que os dois transavam na biblioteca da casa da família. estava completo o dia de briony. havia motivo, na cabeça da menina, para incriminar o garoto pobre cujos estudos foram bancados pelo pai das meninas.
consequência desses fatos: robbie preso, cecília arrasada, um amor impossibilitado de ser vivido, uma família, a partir de então, dividida.
a narrativa prossegue mostrando robbie nas forças armadas durante a 2ª guerra mundial, o pouco contato entre ele e ceci – por meio de cartas, como uma forma de manterem viva a paixão interrompida – e briony tentando receber o perdão da irmã, reconhecendo o erro que cometera.
a menina de imaginação ímpar, que muito arriscara a escrita de histórias quando na infância, realiza o sonho de tornar-se escritora, alcançando, inclusive, bastante sucesso com seus livros publicados. e, já idosa, ao lançar seu 21º primeiro romance, ao qual dá o nome de “reparação”, narra a história de sua vida, assim como da de ceci e de robbie, a partir daquela noite que marcara todos eles. porém, no seu livro o casal se reencontra após a guerra e pode, enfim, viver uma apaixonada e sincera vida a dois, algo que, na realidade, não ocorre: ele morre na guerra, pouco antes de as tropas voltarem ao país, e ela falece, doente. ambos ainda muito jovens.
escrita consciente e inconsciente
sem nunca ter sido capaz de escrever sobre o acontecimento que causou, briony consegue fazer isso no último livro, no fim da vida, como uma tentativa de reparar o erro que cometera, de ser perdoada pela irmã e pelo filho da empregada, oportunizando-lhes, na ficção, viverem o que em vida não puderam. e eu retomo a pergunta: até que ponto a escrita desse romance, por parte de briony, reparou o erro que ela cometera? a escrita é capaz de tal reparação?
não desenvolvi esse texto para alcançar uma resposta. sinto essa questão com muitas variáveis, então que retomo um olhar para o fato: a quem esse ato de reparar faz referência? sendo assim, somente com o movimento de colocar-se no lugar do outro para dar conta de responder a isto. e a personagem, tanto no livro quanto no filme, não me pareceu curada da dor da culpa que durante toda a vida esteve com ela, percepção que me induz a pensar no quanto a escrita é apenas paliativa: nunca solução concreta e efetiva para as dores que carregamos conosco, e sim um meio de nos suportarmos, por mais que tentemos fugir delas a todo custo, pelo tempo que for.
quantas são as vezes em que escrevemos a alguém com o intuito de nos desculparmos, de reatarmos um elo rompido por algo que causamos? e quando escrevemos para acusar, para gritar aquilo que nos dói, causado, em nossa opinião, pelo outro? é também a escrita como reparação, é também, a meu ver, esse almejo – que nos persegue e nós perseguimos – de colocarmos a vida em um trilho equilibrado, envolvendo princípios como justiça, talvez coerência ou moral.
é suficiente tal escrita? ou, ampliando a indagação: em algum momento a escrita nos é suficiente? torço para que não, uma vez que a incompletude nos é necessária. prefiro pensar que escrevemos também como uma forma de conversarmos conosco mesmos e com aqueles que nos leem, de olharmos para o que nos rodeia, de nos ressignificarmos. daí a possibilidade de alcançarmos o que nos é consciente e inconsciente, ora desejando uma sensação de cura, ora uma de fuga.
por exemplo: tenho desgostado do que escrevo – reconhecendo o quanto isto é um clichê. esse não gostar se deve a uma repetição: parece que todo texto meu é o mesmo há anos. acredito que seja o ritmo de escrita e de leitura que consegui fazer presente em mim – fator importante para quem inicia – entretanto, um vício que pode impedir-me de apresentar algo que eu considere novo. e essa situação se deve ao fato de que escrevo principalmente – e quase apenas – aquilo que vivo e conscientemente sinto. é uma escrita agarrada às vivências, ou seja, uma zona de conforto.
mais difícil do que criar uma voz narrativa talvez seja liberar-se dela. e o caminho para uma mudança nessa quase crise-existencial-criativa passa por produzir o que não foi vivido, ficcionalizar de fato, ir para além daquilo que penso sobre mim e de como os outros possivelmente me veem. como me disse o enzo uma vez, “nesse além você se sabota e é capaz de um novo estilo”. e, de repente, alcanço traumas e culpas que saracoteiam dentro de mim.
acredito nessa dupla possibilidade, de quem se esconde e se escancara a partir do texto, como se fosse possível optar por apenas uma forma. não é. mostramo-nos mais do que pressupomos mostrar, da mesma maneira que deixamos escondidas características nossas, por mais que tentemos escancará-las. isto porque é a escrita fuga e aproximação. dos outros e, principalmente, de nós mesmos.
ítalo puccini