terça-feira, 15 de dezembro de 2020

orelha ledoux



só o amor escapa por entre os dedos da ilusão, ledoux, solto animal que a vida refugiou. feito folhas de outono caindo no inverno frio. em câmera lenta. onde estiver um bem te quer, quem mal te quer despetalou, em lentidão e sutileza, por entre afetos que te infestam e afetam desde feto. o amor que vai se libertar: seio do afeto na fúria de se alimentar. força escondida num simples gesto, modus operandis de se agir e se pensar, a abrir teus olhos todas as manhãs com a ponta dos dedos, pois, se não houver amor, não haverá humildade, clareza e perdão, o perdão aos atrasos diários e às imperfeições em dias de amargar e de chuvas torrenciais. tudo em tua retina retinta, ledoux, pintura detalhista em grande escala, abrigo que te convém nesse destino. vento que vem leve, vento que vem furacão e delírio. vento que há de te levar, força da tua voz e verbo. feito o sol, bola de bilhar que brilha nas águas de espelho de teu olhar e se acaba na fruta do brincar: desatino, abraço, amasso e estrepolia. a beleza nos olhos de jabuticaba e a certeza do fim do trabalho de mais um dia. o que querer mais dessa vida, não é mesmo, ledoux? tu que, com esse novo trabalho, mostra-nos como tuas músicas são a singeleza exibida na moldura da alma, a flor da esperança e do encontro.

ítalo puccini

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

orelha edu



edu me convidou a escrever esta orelha quando em mesa de bar comemorávamos meu aniversário, duas ocorrências que beiram o nonsense mas dialogam com a realidade, logo, combinam com ele e este novo livro.
depois de os primeiros escritos alçarem voos em leves calopsitas líricas e irônicas, eduardo silveira apresenta a nós, leitores, versos-poemas densos e maduros, agora conduzidos por um animal de hábitos predominantemente terrestres e mais pesado. isto porque os textos deste “tamanduá/bandeiras” versam, de repente, sobre personagens que comem tijolos e políticos a dormirem de sapatos, ou seja, é necessário ao animal da vez saber suportar as desgraças históricas, o enfado do trabalho diário e inclusive as notícias bonitas.
com este livro, edu nos convida a aceitarmos a imaginação como parte do mundo, de maneira próxima à que ele consegue, ao carregar na cabeça os próprios mapas: políticos, cotidianos, líricos e satíricos. e é pelo viés literário o convite de edu para aturarmos por exemplo a burrice e aquele-que-não-pode-ser-nomeado, sinônimos que, sem metáforas, são impossíveis de tolerarmos.
o que edu quer com estes poemas, também, é encontrar um lugar do caralho pra amar o amor possível – na faixa de gaza, nas repartições públicas, num beliche – e, para isso, ele extrai da linguagem o prazer e milita a favor do cerne da carne e contrário aos toscos bons costumes. depois, ainda, edu descansa a língua da linguagem e escolhe palavras com cuidado, capacidade restrita a poucos poetas, o que configura a singularidade desse escritor por quem sou amor da cabeça aos pés.

ítalo puccini

sábado, 5 de setembro de 2020

haicais de brás cubas

i
meu pai
a aparência
da razão contra a sandice
 
ii
prudêncio
meu cavalinho da infância
o adulto do vergalho
 
iii
sabina
a prataria enquanto
herança para uma copa digna
 
iv
cotrim
o caráter como
efeito de relações sociais
 
v
marcela
meu amor
um cativeiro pessoal
 
vi
eugênia
olhos pretos e tranquilos
mas coxa de nascença
 
vii
virgília
um pêndulo
um instante menos de vida
 
viii
lobo neves
supersticioso e ambicioso
e corno
 
ix
d. plácida
cúmplice
por cinco contos
 
x
eulália
viva ou morta
eu nada senti
 
xi
o quincas humanitas
entre o osso e o cão
nem todos os problemas valem 5 minutos de atenção
 
xii
dormir
um modo interino
de morrer
 
xiii
das memórias
às negativas
o legado das nossas misérias
 
ítalo puccini 

domingo, 2 de agosto de 2020

formação leitora

um pouco sobre como me formei leitor eu contei ao samuel kühn, em entrevista a ele, no projeto de sua autoria, denominado "rumores da arte em nós", no qual há também outros interessantes entrevistados narrando as próprias experiências de formação artística. meu nascimento leitor, por exemplo, ocorreu não na infância, mas na adolescência somente, a partir da minha paixão pelo futebol. e, a pedido do samuel, escolhi falar de dois autores catarinenses responsáveis por despertar em mim um rumor pela arte: minhas referências foram rubens da cunha e cristovão tezza. se você tem 22 minutos e 3 segundos para ouvir a palavra do ítalo, assista. 



segunda-feira, 22 de junho de 2020

o homem e a terra: a literatura enquanto testemunho



   ignazio silone, escritor italiano oriundo de “pescina dei marsi”, na província de l’aquila (itália meridional), na região do abruzzo, escreveu “fontamara”, aquele que se tornou o principal best-seller italiano do século xx, romance no qual o autor retrata a miséria da vida campesina, o amor à terra e o orgulho de quem cuida desta terra – os cafonis, um povo devoto a deus, muito trabalhador, ingênuo, humilde, cujo objetivo diário era lutar pela própria sobrevivência. e uma das marcas da vida do próprio autor envolve justamente a realidade do trabalho braçal – por coincidência, silone nasceu no dia 1º de maio de 1900 – dedicando-se à defesa de seus irmãos de localidade, que sofriam envoltos à miséria e à opressão, agravadas com a ascensão do fascismo, na itália, na década de 1930. 
o que silone apresenta em “fontamara”, pois, é um testemunho, ou seja, um fragmento sobre as questões existenciais vividas por ele mesmo e pelo seu povo, ressignificadas em um novo viés, este de natureza literária, desdobrando-se no âmbito da estética e não restringindo seu corpus à produção dos sobreviventes. assim, configura-se a obra um retrato de uma sociedade presente na itália no início do século xx, quando os habitantes do campo lutavam pela conquista de direitos e das próprias terras onde eram agricultores e trabalhadores. e “fontamara” é isto: um romance – formado por dez capítulos mais um prólogo – cuja história se divide nas vozes de três narradores e aborda a vida dos cafonis, camponeses socialmente oprimidos que descobrem a ação de um empresário, recém-chegado à localidade e já nomeado novo dirigente político do local, responsável por desviar o curso do rio do qual provinha o fornecimento de água para o cultivo das plantações. 
          nesse contexto, a ação dos cafonis é, em essência, na narrativa, quase uma falta de ação: sentem-se desnorteados, sem sabedoria sobre como devem agir diante da onipresença intelectual e física daqueles que exercem o que bourdieu, ao final do século xx, denominou violência simbólica: exercida por um corpo social, sem agressão corpórea, responsável por causar danos morais e psicológicos nas vítimas – com a diferença de que fisicamente sofrem os camponeses na obra. há, dessa forma, em “fontamara”, em um aspecto, a perspectiva social de personagens oprimidos, e, em outro, a daqueles com acesso à cultura e aos meios necessários para se promover alguma mudança coletiva – preferencialmente restritiva à elite. além disso, nesse ínterim, estabelece-se um impasse de comunicação entre esses dois grupos, tão distintos e compartilhando uma mesma realidade: os cafonis, apegados a provérbios e dialetos e lendas próprias – definidores de verdades perpétuas – e os homens da cidade, representantes dos tempos modernos e totalitários e violentos em ascensão à época. 
          nessa perspectiva, o tema central de “fontamara”se refere à familiaridade dos personagens com a terra, temática recorrente nas obras de ignazio silone, refletindo uma herança familiar, visto que seu pai foi um pequeno produtor agrícola, e desse modo o autor desenvolveu essa identificação. também, é característica dos textos de silone a presença de terrenos áridos, de regiões íngremes, simbolizando a dureza da vida enquanto espelho do lugar, este bastante áspero, que se torna o objeto de desejo principal dos personagens da narrativa, dispostos a qualquer confronto pela defesa de uma propriedade, alimentando ainda mais a luta por aquilo sobre o qual eles detêm direito. é, pois, a narrativa de silone que mais apresenta seu estado de homem enraizado a uma terra, a uma causa, a um almejo contínuo pelos direitos sociais. e há, ainda, uma temática de solidão e de nostalgia na descrição das ações vividas pelos personagens camponeses, representando o temor – deles e do autor – de desvincular-se da própria origem.
          inclusive, silone foi, além de escritor, militante político, sendo “fontamara” uma obra escrita em davos, na suíça, em 1933, quando ele se exilou, fugindo do fascismo dominante na itália à época. dessa maneira, construída pela e a partir da memória de ignazio, essa narrativa-testemunho contempla traços autobiográficos, responsáveis nesse caso pela clareza sobre as relações entre a luta dos personagens e o conflito de vivência e de objetivos do próprio autor, um cafoni a desafiar, até onde conseguiu, a imposição fascista. 
          postura artística, a do escritor italiano, que dialoga com a afirmação de francisco de assis barbosa a respeito de lima barreto: aquele que “passou a ver o homem em função da sociedade em que vive e não apenas dentro de si mesmo”, cujos romances se apresentam mais como um relato pessoal do que necessariamente um trabalho literário apurado em aspectos do gênero. e essa característica de silone e teorizada em lima, de retratar, a partir da literatura, um povo e o local de origem deste, encontra-se igualmente em graciliano ramos, escritor alagoano e resistente político, que não escapou da prisão quando vargas a decretou, também na década de 1930, sem provas e sem processo, sob a alegação de o escritor envolver-se com o comunismo. 


         contudo, não se limita a isto a semelhança entre os autores, uma vez que a história de vida de graciliano da mesma forma abraça a realidade sertaneja, rural, humilde e oprimida. de modo que não há como ler “fontamara” e não evocar à memória “vidas secas”, escrito por graciliano em 1938, um exemplo do testemunho como literalização e fragmentação – ideia de seligmann-silva, em ensaios sobre memória, arte e literatura. um romance composto em fragmentos, contendo 13 capítulos independentes, cuja sequência consta definida porém permite maleabilidade ao leitor, e a narrativa reflete a secura do ambiente, uma localidade conhecida pelo escritor, de pobreza e terra seca, onde uma família – formada por um pai, uma mãe, dois filhos e mais um cachorro e um papagaio – luta para sobreviver, enfrentando as diversidades lhes impostas pela ingenuidade e dificuldade de trabalho e de subsistência. ou seja, há, na obra de graciliano, igualmente a iminência de perda da terra que serve de moradia e de sustento. 
         nesse sentido, são dois os mundos apresentados ao leitor em “vidas secas”: um envolve a família do personagem fabiano: a esposa sinhá vitória, os dois filhos – filho mais velho e filho mais novo – a cachorra baleia e o papagaio; e o outro engloba a sociedade na qual tentam viver fabiano e família, aquela representada principalmente pela figura de duas pessoas – ou duas nomenclaturas sociais: o patrão (do exploratório e mal pago emprego de fabiano) e a polícia (no enredo do romance, presente na figura do soldado amarelo, responsável por prender fabiano em determinado momento da trama).
assim, o que se apresenta ao leitor entre esses dois grupos não é um sistema de trocas, mas sim um mecanismo de opressão e de bloqueio, similar ao existente em “fontamara”. todavia, se na obra de silone se encontram personagens que lutam ao menos um pouco por alguma forma de mudança no tratamento recebido e na condição em que vivem, no romance de graciliano se evidencia fabiano, indivíduo inofensivo, um pobre diabo, passivo, incapaz de mudar o rumo dos acontecimentos e que, quando tenta provocar alguma mudança, age de maneira intempestiva, sem pensar nas próprias atitudes e nas consequências destas.
há também, em “vidas secas”, uma simbiose entre humanos e animais, num processo de humanização. ou de animalização: fabiano é ou pode ser baleia, o cachorro que acompanha a família, o animal que vive a caçar preás, enquanto fabiano caça trabalho; fabiano é um homem, mas é ou pode ser um bicho, enquanto baleia é um bicho, mas é ou pode ser quem mais apresenta um equilíbrio humano dentre todos os integrantes da família; fabiano e baleia não falam, mas sim grunhem, rosnam, entendem-se e se fazem entender por meio dessa linguagem própria, ausente de palavra. 
“vidas secas”, ainda, é obra de quadros justapostos: o cenário é de paisagem seca, onde há urubus procurando mortos, e humanos, comida. há uma zoomorfização e uma antropomorfização das personagens, figurando-se as pessoas enquanto coisas, personagens diluídos no ambiente. e a linguagem é um problema, não uma solução, porque se configura uma impotência existencial e verbal diante da realidade, sendo os pensamentos dos personagens fragmentados, a partir dos quais o silêncio é o elemento preponderante. na natureza e na família. 
dessa maneira, na narrativa de “vidas secas”, graciliano ramos se utiliza da linguagem para propor uma reflexão sobre a miséria da não-linguagem, característica a partir da qual as personagens se limitam a sobreviver, um dia de cada vez, num processo de morte lenta e irreversível. de modo dissonante ao vivenciado pelos personagens de “fontamara”, em que ignazio silone apresenta a resistência pela vida, um dia de cada vez, num processo de distanciamento da morte, que, se acontecer, será violenta. mas também esvaziada de linguagem. 
duas obras, portanto, representativas da literatura enquanto testemunho e do potencial da linguagem para refletir o quanto justamente a ausência dela impacta na (sobre)vivência do ser humano. de modo que o mais marcante nos romances de silone e graciliano é o cuidado dos autores em explorar a ingenuidade do camponês e sertanejo, em apresentá-los ao leitor compostos de incompletude, fragilidade e mesmo assim desejo por uma vida melhor. e as descrições dos autores nessas duas narrativas conduzem o leitor por uma linha do tempo memorialista e atual, cuja força reside na resistência pelo corpo – dos cafonis, dos fabianos e famílias – ou pela palavra – dos ignazios e dos gracilianos. ambas representativas daquilo em que acreditava e produzia também lima barreto: a arte enquanto fenômeno de representação e, quiçá, transformação social.
 
ítalo puccini

sexta-feira, 8 de maio de 2020

a sobrevivência enquanto instinto


– Você já desejou ter morrido?
– Não. É bobagem querer luxo em tempos como estes.

     não existe força para chorar, apenas para ir adiante, mesmo que ir não garanta chegar a algum lugar muito diferente daquele em que já se está. assim podemos pensar “a estrada”, do norte-americano cormac mccarthy, de quem já li também de “onde os velhos não têm vez” e “meridiano de sangue”, publicados no brasil, respectivamente, em 2007, 2006 e 2009, cujas temáticas se assemelham: personagens no limiar da vida, em uma realidade passada, presente ou futura similar, de abandono e desesperança.
     a epígrafe deste texto é um dos diálogos estabelecidos entre pai e filho na infinita estrada por onde caminham. são os dois os personagens a partir dos quais a narrativa desse livro se estabelece – “cada um o mundo inteiro do outro” – e, no caso do diálogo acima, é a pergunta do filho para o pai. e há muitas perguntas assim com um quê de ingenuidade. afinal, o garoto é apenas uma criança de mais ou menos oito ou nove anos, que se vê caminhando para o sul e litoral dos estados unidos com seu pai, em um cenário de destruição total, em que não restou nada do mundo como o conhecemos. são pouquíssimas as pessoas que sobreviveram a esse fim do mundo tão recorrente nas produções de cormac. 
     essa obra de mccarthy, inclusive, foi filmada para o cinema em 2009, em produção homônima, assim como “onde os velhos não têm vez” – esta em 2007, pelos irmãos coen, com uma mudança no nome: fracos no lugar de velhos – ambas vencedoras de prêmios renomados no meio cinematográfico. “onde os fracos não têm vez”, por exemplo, venceu o oscar 2008 de melhor filme, além dos de melhor ator coadjuvante, melhor roteiro adaptado e melhor diretor; enquanto “a estrada” ganhou melhor filme no bafta 2010 e o leão de ouro no festival de veneza 2009. tanto nessas duas películas quanto nas obras literárias das quais se originaram, é possível sentir uma vontade de ajudar os personagens nos conflitos internos e externos que vivenciam, em virtude da capacidade narrativa de imersão psicológica em meio à violência mundana. 
     sobre “a estrada”, o sentimentalismo, se existe, é do leitor. pois a escrita oferece a concretude dos fatos e no máximo as dúvidas de uma criança que quer entender um pouco mais sobre o que vive. é uma história de persistência para a sobrevivência. uma persistência por algo que não se sabe aonde chegará, mas simplesmente ficar onde se está é um atestado de óbito. desse modo, o pai conduz o filho – ambos personagens sem nome – numa infinita caminhada contra a fome, o frio e os perigos de se depararem com as “pessoas do mal”. é assim que o pai apresenta ao filho aqueles de quem vez ou outra eles fogem ou se escondem, que, caso os encontrem, não só os matarão, como os tornarão alimento. e essa ausência nominal se entende uma vez situada uma realidade pós-apocalíptica, na qual viver é uma condição de estrita sobrevivência, de manter o funcionamento do organismo corporal e mental, nada mais sendo relevante. 
     ainda, em contraste aos que são “do mal”, talvez como uma forma de não deixar morrer no filho a capacidade de nutrir esperança – ou de aprender a não desistir – o pai lhe ensina sobre as “pessoas do bem”, mais raras mas ainda existentes. e assim cormac constrói uma personagem criança com suaves características de amadurecimento que se desenvolvem durante a narrativa, como a preparar-lhe para o que acontecerá ao final, quando será preciso tornar-se capaz de escolhas independentes e racionais, desprovidas de apego emocional, sem contudo perder a ternura, tão peculiar a ele no decorrer da história.
     há um momento, inclusive, no qual o leitor se sente também esperançoso de encontrar nas páginas seguintes um mundo mais próximo ao que hoje conhecemos: cores e construções vivas, ir e vir de pessoas, comida nos supermercados. é mais ou menos na metade do livro, quando pai e filho descobrem um esconderijo subterrâneo em uma das casas ainda não destruídas. um esconderijo repleto de alimentos enlatados e conservados. um esconderijo onde eles ficam por dias, não se sabe quantos exatamente – pois  outra característica do livro é a ausência de elementos temporais para situar o leitor, algo compreensível, afinal, se pai e filho não sabem que dia, mês ou ano é, por que nós deveríamos saber?
     eles caminham em direção ao sul, onde é menos frio, segundo o pai. e em direção ao litoral, à água do mar, onde podem encontrar ainda, quem sabe, animais, algum elemento da natureza, sabe-se lá. caminham porque ficar parado não adianta nada. caminham carregando alguns cobertores puídos, um carrinho de compras com alimentos cada vez mais escassos e um revólver com poucas balas. poucas e marcantes balas. o mundo pós-apocalíptico descrito por mccarthy, além da quase ausência de cor e dos destroços materiais, apresenta ao leitor uma necessidade de sobrevivência inexplicável racionalmente, uma questão animalesca de instinto: ao mesmo tempo em que nos deparamos com um pai sobrevivendo pelo filho, há personagens que sobrevivem por e para comerem os outros poucos ainda vivos.
     por fim, “a estrada” marca também pela forma como é narrada. uma narrativa tão seca quanto o que sobrou de um mundo destruído, cujos detalhes não nos são explicados – e nem há necessidade de. conforme diz um dos raros personagens secundários que aparecem na história: “Acho que em tempos como estes quanto menos se disser melhor”. é o que faz cormac mccarthy nessa obra, característica mais uma vez observada num dos últimos diálogos entre pai e filho, em que aquele inicia com uma pergunta:
     “Quer que eu conte uma história?
     Não.
     Por que não?
     O menino olhou para ele e desviou o olhar.
     Por que não?
     Essas histórias não são verdadeiras.
     Elas não têm que ser verdadeiras. São histórias.
     É. Mas nas histórias estamos sempre ajudando as pessoas e nós não ajudamos as pessoas.
     Por que você não me conta uma história?
     Não quero.
     Está bem.
     Não tenho nenhuma história para contar.
     Você podia me contar uma história sobre você mesmo.
     Você já conhece todas as histórias sobre mim. Você estava lá.
     Você tem histórias por dentro que eu não conheço.
     Quer dizer como sonhos?
     Como sonhos. Ou coisas em que você pensa.
     É, mas as histórias deveriam ser felizes.
     Elas não têm que ser.
     Você sempre conta histórias felizes.
     Você não tem nenhuma história feliz?
     Elas são mais tipo vida real.
     Mas as minhas histórias não são.
     As suas histórias não são. Não.
     O homem o observava. A vida real é bem ruim?
     O que você acha?
     Bem, acho que ainda estamos aqui. Um bocado de coisas ruins aconteceu mas ainda estamos aqui.
     É.
     Você não acha que isso seja tão bom.
     Está bem para mim”.

ítalo puccini